quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Espuma dos Dias (xiii. fim)

Quinta-feira. 26/11/2015. 11:55

O engenheiro olhou para o advogado com ar de gozo. O causídico arregalou as sobrancelhas e desafiou:
– Diga lá, engenheiro…
O engenheiro abanou a cabeça, com uma expressão contida:
– Não é nada.
– Diga lá, homem – insistiu o advogado. – Desembuche!
O engenheiro abriu um enorme sorriso mas não disse nada.
– A coisa correu mesmo bem, hã? – lançou o advogado, arrumando os papeis.
– Bem?! – riu-se o engenheiro. – Melhor era impossível, doutor. Oiça o que eu lhe digo, melhor era impossível!
– E a van Dunem?
– Ó doutor, essa é a cereja no topo do bolo. – O engenheiro levantou-se. – E, ainda por cima, ninguém pode dizer nada, doutor. Nada!... Ninguém pode dizer nada!
– A Alda disse-me que a Fernanda pôs no twitter que era uma grande notícia e a Estrela que melhor era difícil.
– Eu vi. Eu vi. – O engenheiro piscou o olho, fez uma careta e, com um súbito ar sério e compenetrado, declarou: – Mas isso foi porque era uma mulher e negra, doutor. Esses comentários resultam do avanço civilizacional que a nomeação da mulher encerra. Só isso. Aliás, logo à tarde, todas as almas progressistas deste país vão ficar emocionados quando ela tomar posse. Todas!
O advogado concordou com um aceno grave e circunspecto.
Os homens olharam então um para o outro e desataram a rir à gargalhada.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

A Espuma dos Dias (xii)

Terça-feira. 17/11/2015. 17:55

O homem sua e sorri enquanto a passadeira rola rapidamente debaixo dos seus pés. Envaidece-se dos quilómetros percorridos, da velocidade média e do sorriso descontraído que ainda ostenta no espelho à sua frente. Considera-se numa forma invejável – assim mesmo, invejável! – e, num bamboleio cheio de intenção e estilo, aumenta a velocidade do aparelho. E sua mais. Sente o esforço e convence-se que o faz sem dor, quase sem dificuldade. Continua a sorrir. As pernas ganham um ritmo frenético como se tivessem vontade própria. Só o suor denuncia a intensidade do exercício; o custo físico da corrida. Mais rápido. Mais forte. O homem à sua frente no espelho já não está a sorrir, apenas a escorrer e com os olhos a arder do suor. Com dificuldade, procura perceber se o estão a ver. A admirar. O corredor corre para si, o homem corre para os outros. Devia abrandar mas não consegue, a máquina vai apitar sempre que ele diminuir a velocidade. Não pode. Tem de continuar a correr mas o suor já não lhe deixa, justifica-se. Salta, põe os pés de lado e agarra-se para retomar o sorriso descontraído, sem sucesso, enquanto limpa a testa e os olhos com as costas da mão. Pára a passadeira e pisa-a com temor, um pé, equilibra-se, e só depois o outro. Inspira e expira profundamente. Concentra-se nas pernas que parecem ter gostado de ter vontade própria e não lhe obedecem. Tenta sorrir como se não fosse nada com ele, ainda que saiba que, se não estivesse agarrado, se estatelava na passadeira ou no chão ou de encontro aos outros aparelhos, para onde as pernas o levassem. Exagerou. Continua a tentar mas o seu reflexo não lhe mostra mais do que os dentes num esgar de flagelado. Exagerou demais. Rilha os dentes, semicerra as pálpebras, endurece a expressão. E vê que o homem no espelho à sua frente está furioso. Odeia. Está capaz de matar. “A esta hora já devíamos estar a formar governo”, expira. “A culpa é do Cavaco”, inspira. “A culpa é do Cavaco”, expira. “A culpa é do Cavaco!”, inspira.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (xi)

Quarta-feira, 28/10/2015. 18:10

O engenheiro brilha. O engenheiro cintila. O engenheiro refulge. O engenheiro não cabe em si e grita antes do Galamba se introduzir, com um sorriso de orelha a orelha, na sala:
– Viste, João? Viste, pá?! Enrabei o pasquim à força toda!
O Galamba, que se sorrisse mais chegava com o canto da boca ao piercing que lhe fura a fossa escafoide do pavilhão auricular esquerdo com intuitos decorativos, entra na sala com os braços levantados, pára, ajoelha-se no chão e, de braços esticados, genuflecte várias vezes em frente ao engenheiro.
O engenheiro ri à gargalhada e levanta-se a bater palmas.
O Galamba sem parar de genuflectir ergue-se e o engenheiro abraça-o e trocam vigorosas palmadas nas costas.
– Tenho me lembrado muito daquilo que pusemos no projecto do programa do partido – diz o engenheiro, subitamente sério, agarrando-o pelos ombros.
O Galamba olha-o embevecido mas inquiridor e o engenheiro recita:
– “A aparência da susceptibilidade dos detentores de cargos públicos e interesses alheios às funções que desempenham tem contribuído para minar a confiança dos cidadãos nas instituições.”
O Galamba recupera o sorriso.
O engenheiro pisca-lhe o olho e recomeça num tom panfletário:
– E o Partido Socialista promete tudo fazer para implementar e instituir – faz uma pausa e acabam os dois em coro: – “A garantia de protecção e defesa do titular de cargos políticos ou públicos contra a utilização abusiva de meios judiciais e de mecanismos de responsabilização como forma de pressão ou condicionamento.”
– Hum… – arrulha o Galamba. – Desresponsabilizem-me!
O engenheiro dá uma gargalhada. O Galamba rejubila:
– Está-se tudo a encaminhar, Zé. Tudo!
– Sabes o que decidi, João?
O Galamba abana a cabeça.
– Quando isto acabar e mesmo que não seja preciso chegarmos onde tínhamos falado…
– À amnistia?
O engenheiro anui com a cabeça e continua:
– Ou às alterações na lei…
– Nas leis.
– Nas leis. Mesmo que não seja preciso chegar a nada disso…
– Se isto continuar assim vai ser muito mais fácil do que pensávamos.
– Sim, mas mesmo assim. Seja como for decidi que vou tatuar um pequeno vinte e nove barra quatro ou um quarenta e quatro. – O Galamba olha-o com admiração. O engenheiro conclui: – Ainda não decidi é onde.
– Eu tatuava um 44 – diz o Galamba. – Tem mais impacto.
– O 29/4 é mais misterioso.
– É da Constituição, Zé.
– Sim, mas se tu não disseres ninguém pensa nisso, não achas?
– 29 barra 4 in fine.
– In fine!


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (x)

Quinta-feira. 22/10/2015. 18:30

O telemóvel toca e a cara da mulher aparece sorridente no ecrã. Atende:
– Maria.
– Aníbal.
– Maria.
– Aníbal.
– Não estejas a brincar, Maria. O que foi?
– Não estava a brincar, Aníbal.
– Está bem. Boa tarde. Como estás, amor?
– Assim está melhor. Boa tarde. Estou bem… mas podia estar melhor.
– Então?
– Estive a ler a tua comunicação…
– E?
– Não gostei. É a última versão?
– É, porquê?
– Não vais fazer outra, mais macia?
– Não, essa é a definitiva. É o mais claro e macio que consigo ser.
– E se fores menos claro? Às vezes, a claridade fere a vista.
– Não estou a perceber.
– Acho que tens demasiada palha e que essa palha vai servir mais para alimentar quem tu não queres do que quem tu queres, ou melhor, que eu acho que queres mas que, depois de ler isto, já nem sei bem.
– Achas?
– Não acho, tenho a certeza. A palha que ali tens, e que é completamente desnecessária, só vai alimentar quem está contra ti, vai servir para a rapaziada fazer um grande piquenique à tua conta e no fim, ainda enrolam as sobras, e fumam-nas.
– Estás a falar de quê, Maria?
– Daquela conversa toda, Aníbal: da Europa, das Instituições, dos credores, da Nato, do regime… Aquilo é tudo palha, tudo! E só vai servir para te queimarem e para eles se aquecerem.
– Achas?
– O Costa quando te ouvir, no fim de te ouvir porque a meio não vai perceber e vai estar a espumar como um louco furioso, mas, no fim, vai ficar radiante. Tu é que vais uni-los, estás a dar-lhes a motivação que falta. A desculpa que ele tem estado à espera para agarrar o PS, para encostar alguém que o critique à direita e, pior, a ti. E ninguém do PS, por mais que discorde do que o Costa está fazer, vai querer ficar com o ónus de te ter apoiado, de te ter dado razão. De ter traído o partido depois de tu, tu, Aníbal, vê lá isso para os socialistas, de tu lhes pedires que fizessem isso. Esta comunicação é estúpida, senhor Presidente.
– Maria!
– É o que eu sinto.
– Mas eu estou apenas a ser claro. Estou a comunicar a minha decisão…
– Que é certíssima.
– Estou a dizer que o Costa não me apresentou nada que se visse…
– O que toda a gente percebeu.
– Invoco a constituição, os formalismos, as tradições e as regras que foram sempre seguidas…
– Do que ninguém pode discordar.
– E que é o parlamento que deve decidir sobre a sorte dos governos.
– Ok. E?
– E?
– E o que dizes mais?
– E digo o que acho do Costa, do PC e do Bloco.
– E?
– E, o quê?
– E isso serve para quê?
– Para clarificar as coisas, para comunicar o meu pensamento, as minhas ideias, para que percebam que não vale tudo. Para deixar linhas orientadoras…
– Palha, palha, palha e muita palha, Aníbal. O Costa vai fazer uma pilha enorme com essa palha, um fogo que lhes vai aquecer a alma e os corações. A Catarina vai ser a Senhora da Luz, vai usar a palha para te queimar e para se tornar ainda mais indispensável, ainda mais responsável. Vão todos ganhar pontos.
– E o Jerónimo?
– O Jerónimo nem precisa de dizer nada. Estás a tornar a dar trunfos ao Costa e vais enredar o Passos numa teia de que ele não vai conseguir sair…
– Quero que o Costa se lixe e que o Passos faça o que tem de fazer, mais nada! Aquilo é o que eu acho e não me sentiria bem se não o dissesse. Já há demasiada cretinice e jogos de sombras e porcaria na nossa politica para eu ainda ter de esconder o que penso. As coisas têm de ser ditas e de sê-lo claramente. Aliás, até acho que estou a ser correcto e polido, para o que têm dito de mim, até podia ir mais longe.
– Tu és o Presidente.
– Mesmo por isso. E eles vão-me destratar seja como for, Maria. Eles vão ser contra e chamar-me todos os nomes logo que percebam que eu não faço o que querem, por isso…
– É a tua comunicação?
– É.
– Definitivamente?
– Sim.
– Então, é a minha também, Aníbal. Boa sorte.
– Obrigado.

A Espuma dos Dias (ix)

Segunda-feira. 19/10/2015, 19:33

– E o país?
– O país?
– Sim, o que acontece ao país com o Costa?
– Como assim, o que acontece ao país?
– Se o Costa for primeiro-ministro, achas mesmo que o país vai ficar melhor?
– Fica melhor do que se a direita continuar a governar, qual é a duvida?
– Ele não vai nacionalizar nada. Não vai combater os interesses instalados, aliás, ele é a ponta do iceberg dos interesses instalados. Não vai combater a Europa, o Tratado Orçamental, a austeridade. Não…
– Claro que não, ninguém está à espera disso. Ele não vai fazer nada disso mas também não vai fazer nada em sentido contrário.
– Então?
– Então, então é que passamos a estar em jogo. Deixamos o banco e vamos a jogo. O PS vai dar-nos o estatuto que nos falta: podemos estar no governo. Podemos ser ministros. Deixa de haver voto útil à esquerda. Passamos a ser mainstream sem deixar de ser quem somos.
– Mas para isso o governo PS vai ter de cair para o ano que vem.
– E vai cair. Não vai ser carne nem peixe. Vamos todos cozê-lo em lume brando…
– Mas não o podemos fazer cair.
– Por isso é que o Marcelo tem de ganhar.
– O Marcelo?
– O Marcelo.
– …
– Se o Marcelo ganhar, a direita tem legitimidade para dizer que o país mudou, que a esquerda precisa de ser re-legitimada, que precisamos de ir para eleições. Nessa altura, temos de pedir uma clarificação ao PS: ou bem que governa com a esquerda à esquerda ou bem que nos esquece, porque não cumpriu os compromissos e anda a ziguezaguear e a levar o país para o pântano.
– Mas para isso o país também vai ter de estar pior.
– Isso é evidente e vai estar mas a culpa não vai ser nossa. É que, entretanto, nós fomos dignos representantes da esquerda, não capitulámos, nem tirámos o tapete ao Costa, ele é que não foi quem diz ser. Quis ser primeiro-ministro, para quê? Quis unir a esquerda e, entretanto, foi governando sem rumo. Nas próximas eleições comemos-lhe entre mais 5% a 10% do eleitorado à esquerda. Há muita gente que ainda não vota em nós mas que, daqui a seis, oito meses, não tem razões para não o fazer.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (viii)

Quarta-feira, 14/10/2015. 19:10.

O engenheiro esperou que os convivas se sentassem nos sofás, depois sentou-se no seu cadeirão e foi directo ao assunto:
– Vocês têm falado com ele?
Os convivas entreolharam-se comprometidos e, num pacto silencioso feito de olhares e acenos, nomearam um deles para responder.
O nomeado cerrou os lábios, arqueou as sobrancelhas, respirou fundo pelo nariz e, no fim, disse:
– Todos os dias algum de nós fala com ele. Eu falei ontem várias vezes. Ele – apontou para a esquerda com a cabeça. – Ele tem estado com ele quase em permanência. E ela também…
– E nas entrevistas? – interrompeu a Fernanda, que estava em pé atrás do engenheiro.
Os convivas tornaram a olhar uns para os outros.
– Ele falou à vontade – reconheceu o nomeado, encolhendo os ombros.
– Ele tem falado pouco mas quando fala… – suspirou a Fernanda.
– Sim – disse o engenheiro, apoiando as mãos nos joelhos. – Ontem abriu o jogo todo à Reuters. Hoje diz que… Como é que ele disse?
– “É como se estivéssemos a deitar abaixo o resto do Muro de Berlim” – respondeu a Fernanda, com uma careta.
– Pois. Obrigado. – O engenheiro levantou-se e repetiu como se discursasse: – “É como se estivéssemos a deitar abaixo o resto do Muro de Berlim”… O homem está doido ou quê? Quem é que ele pensa que é?! O Gorbachov, o Kennedy?! Eu está-me a parecer, mas posso estar enganado e foi por isso que os quis ver pessoalmente, eu está-me a parecer que o homem começou a acreditar naquilo que vocês lhe têm dito. A acreditar mas a acreditar demais. – O engenheiro abanou a cabeça e sorriu. – E o pior é que não estou a dizer isto como se fosse uma coisa boa. Parece-me que o nosso homenzinho está a começar a ficar cheio de si. Como dizia o Medina Carreira ontem, ele já julga que é alguém, ou coisa parecida.
O engenheiro calou-se e dirigiu-se ao móvel onde estavam as bebidas.
– Vocês sirvam-se – anunciou, enquanto se servia um whisky.
Os convivas anuíram com a cabeça mas não se moveram.
– E, as últimas vezes que isso aconteceu, não foi bom para ninguém – concluiu a Fernanda, retomando a conversa.
– Vejam lá a gravidade da coisa que eu estou a concordar com o zarolho do Medina Carreira, esse velho lúbrico, que só não me arreia quando não pode.
Os convivas esboçaram uns sorrisos de conveniência e a mulher justificou:
– O problema foi as conversas com o Bloco e com o PC, Zé, havias de ter lá estado. Aquilo foi surreal. Se o Marx ou o Lenine descessem à terra aquela gente não os endeusavam mais do que fizeram ao Costa. Foi uma coisa sem explicação. Era Deus no céu, com o Marx, o Lenine e o Mao à volta, e o Costa na Terra: só ele, só ele nos pode trazer a esperança; só ele pode alimentar as criancinhas; só ele pode devolver o sorriso aos velhotes; só ele pode dar dignidade aos trabalhadores; só ele… Só ele.
– E não só cá, para eles isto tem condições para ser um movimento que alastra à Europa, ao Mundo – acrescentou o conviva que tinha permanecido calado. – Segundo eles, o nosso exemplo, com a maravilhosa e brilhante liderança do Costa a derrotar a direita e a criar um país novo, tem tudo para frutificar. Tudo!
– O homem não se pode aturar depois de cada reunião: incha que parece um balão quase a rebentar.
– Ainda mais? – gracejou a Fernanda, obrigando todos a rir.
O engenheiro, de costas para a sala a estudar o movimento circular do whisky no copo, bufou com estrépito, causando o imediato silêncio na sala.
– É porque, entretanto, com tanta bazófia, começamos a perder o controlo da situação. Os Páfes estão quase a mandá-lo pastar, aliás, o Passos já o fez e se fosse eu fazia o mesmo. Uma coisa é engonhar sem mostrar as cartas, outra é querer engonhar e andar a mostrar as cartas que se têm e a dizer que se quer jogar é com os outros. Aí já demos o flanco. Ontem, a coisa também tinha se ser muito mais soft porque tínhamos de desmentir a Catarina e a conversa do fim do governo…
– Que amanhã vai-se encontrar com o Tsipras – lançou a Fernanda.
– Quem? – perguntou com ar idiota o conviva que havia sido nomeado para falar.
– A Catarina Martins – respondeu o engenheiro. – Estão a ver no que é que a pesporrência do Costa vai dar, não estão? Já anda tudo à vara larga! O Bloco marca encontros secretos com o Tsipras. O Jerónimo deve ir ligar ao gajo da Coreia do Norte ou ao Putin, sei lá… – O engenheiro voltou-se para a Fernanda: – Com quem é que esses gajos ainda falam?
– Podem falar com…
– Não interessa – interrompeu o engenheiro. – O que interessa é que nos estamos todos a desconjuntar e ainda não conquistámos nada. Damos tiros nos pés e perdemos pontos sem ser forçados a isso. Tudo merdas que nos vão dividir, que lhes vão dar força, que nos vão custar o governo. – O engenheiro tornou a bufar e deixou-se cair no cadeirão, sem nunca deixar de abanar a cabeça de um lado para o outro. – A Catarina vai-se encontrar secretamente com o Tsipras, o Jerónimo diz que podemos ser governo mas, pela conversa, escusamos de contar com ele lá dentro, o Costa quer acabar de derrubar o Muro de Berlim e a seguir deve ir querer começar a destruir a Grande Muralha da China ao sopro e vão ver que ainda se vai sair com mais alguma atoarda depois de falar com o Hollande, esse choninhas… Foda-se! E eu aqui com uma trabalheira do caralho para, no fim, o Portas se ficar a rir… Nem falo do Passos que esse, coitado, nem é dos piores. Agora o Cavaco, o Portas… O Portas outra vez para o governo? Foda-se… O gajo que anda todo borriti e parece que até já tinha começado a ensaiar a gaivota voava e no fim, safa-se por causa da parvoíce do Costa? – O engenheiro soprou, desalentado. – Mas que país é este, pá? Mas que políticos temos nós? Em quem, digam-me lá, em quem é que se pode confiar?


terça-feira, 13 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (vii)

Terça-feira. 13/10/2015. 17:38

Uma gaivota voava voava, asas de vento, coração de mar
– Estás maluco ou quê?
Como ela, somos livres, somos livres de voar
– Desculpa lá!
– Temos de entrar no espírito da coisa, Pedro.
– “Somos Livres”?!
– Parece-me que vamos começar a ouvi-la muitas vezes, à Gaivota. Temos de estar preparados.
– Sempre é melhor que o Grândola.
– É capaz.
– Eu com essa ou com o Grândola posso bem. Agora o que me lixa é que ainda estou para perceber é como é que nos deixámos cair nesta situação. Porque é que o Cavaco se pôs a inventar?!
– Tu não lhe disseste?
– Disse. Já te disse que sim. Disse-lhe claramente que não entendia a razão para alterar os procedimentos normais e constitucionais. Que faria o que ele me disse, não sabia bem como mas faria. Mas disse-lhe que não era a favor, ele devia ouvir todos os partidos e…
– Os gajos foram rápidos e nós a apajar o Aníbal, armados em parvos!... O Costa é um macacão e ninguém me tira que o engenheiro está por trás disto tudo.
– E se ele os tivesse ouvido logo, os gajos ficavam condicionados, assim…
– Assim, aqui estamos nós a caminho de ver a fronha do Costa, o arzinho maniento do Pedro Nuno, o ar apalermado do Centeno e a pose de estadista de meia-tigela do César, que só apetece é esmurrar. Era como se o Pedro Guerra se pusesse calado a olhar para nós, com aquele ar de superioridade imbecil…
– O Pedro Guerra não é teu? Ele não é assessor do vosso grupo parlamentar? Não foi teu assessor no Ministério da Defesa?
– Sim mas isso não invalida a comparação. Ou achas que invalida?
– Eu nem o conheço.
– Vamos lá, então.
– Onde?
Uma papoila crescia, crescia, grito vermelho num campo qualquer. – Os dois em coro: – Como ela somos livres, somos livres de crescer.


A Espuma dos Dias (vi)

terça-feira, 13/10/2015. 9:32 H.

– Eu só quero saber: ele sabia ou não sabia?
– Ó doutora… – O homem incomodado e surpreendido pela agressividade explosiva da pequena candidata repetia-se, enquanto esbracejava e ensaiava pequenos passos que a levassem a segui-lo para lá da entrada da Sede. – Ó doutora… suba.
– Nem doutora, nem meia doutora… – interrompeu a candidata. O homem riu-se inopinadamente à alusão “meia doutora”. A mulher franziu o sobrolho e levantou a cabeça para o fixar. – Está-se a rir de quê?!
– Nada, doutora. Desculpe.
– Porque é que me está a pedir desculpa?
– Por nada, doutora. Desculpe. Suba, falamos lá em cima.
– Eu tenho de me ir embora. Não subo para lado nenhum. Garante-me que ele não está?
– Garanto, doutora. Isso garanto.
– E ele sabia ou não sabia?
– Ó doutora… O quê, doutora? O Secretário-Geral sabia o quê?
– Você é parvo?! Já lhe disse! – A candidata suspirou profundamente e olhou para a escadaria à sua frente, meneando a cabeça com desprezo. – Sabe o que eu lhe digo?
O homem acenou que não. A candidata continuou:
– Haviam de mandar fazer análises à água que se anda a beber aqui na sede, é que me parece que há quem ande completamente a alucinar. Deve ser da água ou dos fumos que certos camaradas utilizam e que empestam os gabinetes e os corredores.
O homem fez uma careta e não respondeu. A mulher virou-se para a porta e declarou:
– Diga-lhe que eu sabia que ele sabia e que lhe agradeço. Como disse o Nódoa: há momentos clarificadores.
O homem anuiu com a cabeça e, sem disfarçar o alivio por vê-la dirigir-se à rua, acompanhou-a. A candidata semicerrou as pálpebras e cerrou os punhos contendo a fúria e completou, num tom magoado mas solene:
– O senhor Secretário-Geral marcar a reunião com o Passos exactamente há hora em que uma ex-Presidente do seu partido já tinha agendado a apresentação da sua candidatura a Presidente da República é um desses momentos. Um momento absolutamente clarificador. Diga-lhe que eu fiquei absolutamente esclarecida sobre o seu carácter, sobre a sua ausência de respeito pelo partido e pelos seus militantes e sobre as suas tristes e mesquinhas intenções pessoais que todo este teatro que ele anda a ensaiar representa. Transmita-lhe isso, por favor. E agradeça-lhe. Bom dia.

A Espuma dos Dias (v)

Segunda-feira, 12/10/2015. 19:45

“E as sondagens, Afonso?”
“Em principio, quinta ou sexa-feira.”
“Não podemos antecipar?”
“Hum… Acho que não. O engenheiro diz que ainda é cedo para pôr a carne toda no assador.”
“Mas temos resultados?”
“Temos. Temos todos os resultados que quisermos. Fizeram-se cinco perguntas. Vamos apresentar respostas a duas.”
“Às melhores?”
“Por acaso, não. As perguntas são as piorezinhas mas são as que nos favorecem.”
“A que diz que querem que o Costa vá a Primeiro?”
“Nessa não tivemos um grande resultado.”
“Não?”
“Não.”
“E a do governo do PS com o Bloco e/ou com o PC?”
“Também não.”
“Então?”
“Ganhámos na do “Teme um governo liderado pelo PS, aberto a independentes de várias áreas politicas e com o apoio parlamentar do PC e do Bloco?”
“E?”
“E as pessoas não temem.”
“É fraquinha e é pela negativa, mas não era isso. Eu estava a perguntar era qual é a outra que ganhámos?”
“Ganhámos não é a definição correcta mas pronto. A outra foi a “Entende que constitucionalmente é possível um governo liderado pelo PS nas actuais condições resultantes das eleições de 4 de Outubro?”
“Boa!”
“Pois, boa… mas tivemos de lhes explicar que era uma mera hipótese constitucional. Acho que não podemos apresentar isto como sondagem, vamos para consulta de opinião ou coisa do género.”
“Tem de dizer sondagem, Afonso. Tem de deixar as pernas do Cavaco todas a tremer.”
“O engenheiro sugeriu sondagem de opinião.”
“Ó pá, é isso, Afonso. É isso. Sondagem de opinião! O Zé sabe-a toda. O homem é um mestre. Olha lá, e se tivermos de antecipar?”
“Antecipa-se. Desde que o mestre concorde, por mim, está feito.”


segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (iv)

Segunda-feira, 12/10/2015. 16:45

– Viste as caras deles?
– De quem?
– Do Carlos César e do Mário Centeno.
– Não. Quando?
– Quando saíram da reunião com o Bloco. Quando o Costa estava a falar aos jornalistas.
– Não vi.
– Parecia que estavam em choque. Se estivessem a velar um morto estavam mais animados.
– Eu só ouvi o Costa e pareceu-me satisfeito.
– Qualquer morto que se oiça falar está satisfeito: tem a sensação que ainda está vivo.
– Ah! Bolas…
– E, ainda por cima, estão todos a facilitar-lhe a vida.
– Achas?
– A conversa com o Bloco, muito interessante; com o PAN, interessantíssima e ainda lhe prometeram um gato; com a CDU, muito produtiva; até a PàF já lhe facilitou a vida com um documento facilitador. Só falta o Aníbal prostrar-se aos seus pés.
– Isso é que era! E ainda dizes que o homem está morto? O Costa é um senhor. Um senhor. Está a encostá-los todos às cordas!
– O chato é que está preso pelo pescoço. Qualquer movimento na corda e é a morte do artista. A morte definitiva… Vai ver as caras do César e do Centeno e depois voltamos a falar.

A Espuma dos Dias (iii)

Sábado, 10/10/2015. 18:23

– Se calhar devíamos ligar ao Jerónimo – ouviu-se o Costa a dizer.
– Ligar-lhe, porquê? – Perguntou o Porfírio, atento.
– Isto está quase despachado com o Bloco – suspirou o Costa, titubeante –, se calhar devíamos dizer-lhe alguma coisa. Podemos estar a avançar demais com estes e depois os outros tiram-nos o tapete.
– Não podem, António – explicou o Porfírio. – Ou melhor, agora ainda podem mas depois já não.
– Mas alguém acredita que nós chegamos lá segunda-feira e duas horas depois a coisa está decidida e que nós nunca falámos antes?! Os gajos percebem que andámos a negociar às escondidas.
– Nós não estamos a negociar às escondidas – disse o João.
– E também estamos a negociar com eles – intrometeu-se o Pedro Nuno. – Eu ainda há bocado lhe respondi a um e-mail.
– E os gajos sabem uns dos outros, António. Há ali muita malta que anda enrolada uns com os outros…
– E com outras – intrometeu-se o Pedro Nuno.
– Sim mas isso é menos. Só se forem outras com outras.
E riram-se todos.
– Isso é um bocado sexista – disse alguém. – Se a Fernanda aqui estivesse, vocês não se riam assim.
– Ou a Isabel.
– A questão é que na igualdade podemos rir-nos de toda a gente – declarou o Mário. – Sexismo era se evitássemos piadas sexistas sobre homossexuais e lésbicas e se as fizéssemos ou tolerássemos apenas sobre os heterossexuais.
A mesa caiu num silêncio fúnebre e os olhares fixaram-se no declarante.
– Isso é um bocado reaças, Mário – sibilou João. – Isso é converseta para a Helena Matos, pá. Tu às vezes, meu…
– Vocês estão a falar de quê? – perguntou o Costa, acordando do seu torpor meditabundo.

A Espuma dos Dias (ii)

Sábado, 10/10/2015. 17:55

“E eles?”
“Eles estão a trabalhar bem, engenheiro.”
“Quando lhes cheira a palha, eles são os maiores, João. Estou farto de te dizer. Só de imaginarem que podem mandar nalguma coisa, os gajos…”
“E as gajas!”
“E as gajas, João. Sim, as gajas principalmente. Tens razão.”
“A Mariana é muito boa, Zé.”
“Boa? Hum… Estás a falar de quê?”
– Vou já!
“Quem era?”
“O Lulinha.”
“Ah! Ah! Se ele vos ouve a chamarem-lhe isso…”
“Não ia perceber. Havia de pensar que era uma comparação elogiosa com o Lula.”
“Era parvo para isso.”
“O gajo sabe lá quem é o Theon Greyjoy.”
“Mas olha que o Theon redimiu-se.”
“Este não, este está afundar-se cada vez mais e a gostar. Está a chafurdar naquilo que o vai afogar e continua a achar que é um génio… Tenho de ir, Zé. Daqui a bocado já te torno a ligar. Eles já devem ter mandado mais mails, o Costa não se cala.”
– Estou a ir, António! Estou a ir.

A Espuma dos Dias (i)

Sexta-feira, 9/10/2015. 19:10

Com um sorriso de orelha a orelha, o engenheiro aperta a mão ao advogado e lança-lhe:
– Tem estado a gostar da semana, doutor?
O advogado hesita mas o sorriso do cliente não lhe deixa margem de manobra: tem de responder.
– Está a falar do que eu estou a pensar? – pergunta, com ar conspirativo.
O engenheiro responde-lhe que sim com um ligeiro aceno e indica-lhe o caminho da sala com um largo movimento do braço direito.
O advogado segue para a sala, encaminha-se em silêncio para a cadeira que o cliente lhe destinou e questiona logo que se senta:
– O engenheiro é que está por trás destes últimos desenvolvimentos?
O engenheiro não cabe em si de auto-satisfação mas contém-se, a custo, e segue outro caminho:
– E o Marcelo, viu?
– Não, não vi, estava a vir para aqui.
– O sacana está a perceber uma parte dos acontecimentos e viu que tinha de avançar depressa. – O engenheiro respira fundo e perde o sorriso por um instante. – E foi rápido, o sacaninha. Surpreendeu-me. Não estava à espera que o gajo fosse tão decidido. – O engenheiro recupera o sorriso. – Mas ele ainda que não perceba tudo o que se está a passar e as forças que se estão a mover, percebeu que há uma vaga de fundo para uma coisa qualquer. Que se está a criar uma realidade inesperada e a que ele não pode reagir, nem comentar.
– O engenheiro acha que o anúncio da candidatura é ele a resguardar-se?
– Não acho, tenho a certeza. O tipo é esperto, doutor, lê bem o ar dos tempos, a espuma dos dias e não se podia deixar enredar em comentários ou em posições que, mais à frente, o desfavorecessem. Preferiu dar o salto e ficar por cima da carne seca. Ninguém o pode vir a acusar de tacticismo, ainda que isso seja a sua maior culpa.
– Antecipou-se…
– Antecipou-se a tudo e a todos. Foi o mais esperto. Mandou um sms ao Passos às seis da manhã. Veja bem, às seis da manhã. Às seis da manhã já ele estava a pé há duas horas e já tinha chegado à conclusão que não sabe o que se vai passar mas que se vai passar qualquer coisa e que não vai conseguir saber em tempo útil. É só a certeza que ele tem mas percebeu que não podia esperar. “Chapeau”, Professor, “chapeau”.
– Mas não foi para isso que o engenheiro trabalhou…
– Eu estou a trabalhar em muita coisa mas nessa não. – O engenheiro ri. – De qualquer maneira, se quer saber, isso também tem algum interesse. Nem que seja por distrair os direitolas. Quando eles derem pelo molhe de bróculos em que o Aníbal os meteu, já vão tarde. – O engenheiro dá uma gargalhada. – Muito tarde!

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Cartaz

O recluso aproximou-se do 44, saudou-o com um respeitoso “Engenheiro” e uma ligeira vénia como ele gostava, e entregou-lhe uma folha de papel dobrada. O 44 agarrou a folha e ficou a olhar para o homem com ar desconfiado.
“Não é nada, engenheiro”, disse o homem. O 44 olhou em volta e voltou a fixar-se no colega recluso que lhe assegurou tranquilamente: “É só para ver o que lhe andam a fazer lá fora, não é nada de mal. É dos seus camaradas.”
O 44 abriu a folha e leu o seu conteúdo. Olhou embasbacado para o recluso que estava à sua frente, que abanava a cabeça com cara de caso e tornou a baixar os olhos. “Isto é uma montagem?”, perguntou, sem levantar os olhos da folha.
“Acho que não. Pelo menos, deram-me como bom”, respondeu o recluso.
“Há 5 anos é em 2010, pá. Que porcaria é esta?”, rosnou o 44, fixando o outro recluso, que encolheu os ombros em silêncio. “A mulher ficou desempregada no meu governo!”, vociferou o engenheiro, furioso a olhar para a reprodução do cartaz. “Os gajos mandaram isto para a rua?”
“Eu também perguntei isso”, disse o recluso.
O 44 arremelgou-lhe os olhos, “E?”
“Parece que estes são para substituir o da tipa a virar o céu.”
“Mas que merda é esta?!” O 44 encostou-se à parede exterior da cela. Vários reclusos aproximaram-se. Irritado, ele levantou a folha, virou-se e, com uma palmada, pô-la na parede. “Mas quem é que autorizou esta merda?!”, gritou. “O Costa anda a dormir ou anda armado em sonso… ou pensa que brinca comigo?!”
Os reclusos rodearam-no para ler a folha que ele prendia contra a parede. Ele recomeçou:
“A mulher ficou desempregada quando eu era governo. Em 2010. Comigo ninguém ficou desempregado! Ninguém!” O 44 olhou em volta. “Algum de vocês ficou desempregado em 2010?” Os homens negaram prontamente com a cabeça. “Ninguém ficou desempregado em 2010! Ninguém!”, bufou o 44.
“E, ainda por cima falta uma vírgula, engenheiro”, disse um dos reclusos.
Temendo a reacção do 44, os que estavam encostados ao que falara afastaram-se, deixando-o sozinho ante o olhar maníaco do engenheiro.
“Que vírgula, pá. Falta uma vírgula onde?!”
“Aí”, o recluso deu um passo em frente e apontou para “anos” enquanto lia alto: “Estou desempregada há 5 anos sem qualquer subsídio ou apoio.” Fez uma pausa e explicou: “E, com esta frase, nem sei se a vírgula era suficiente, parece-me que não. Mais valia porem: “Estou desempregada há cinco anos e há um ano, ou dois ou o que fosse, sem qualquer subsídio ou apoio… E a segunda frase…”
“O que tem a segunda frase?”
“Devia ter pessoas, não é só um número, 353 mil. São 353 mil pessoas. Podiam ter posto: Somos mais de 353000 pessoas.”
“Tem ali um asterisco no número”, indicou um recluso.
“Um asterisco nunca é bom”, respondeu o que estava a falar. “E depois não podem dizer, não brinquem com os números, respeitem as pessoas quando é o cartaz que as despersonaliza…”
“Mas temos aqui um analista de publicidade?!”, interrompeu o 44, furibundo. “Qual asterisco, quais números, quais pessoas! Isso não interessa nada. As pessoas não interessam nada! O que interessa é que eu há 5 anos era o primeiro-ministro e o PS era o governo.”
O 44 calou-se, amarfanhou a folha com raiva, lançando-a numa bola para dentro da cela, levou as mãos à cabeça, que abanava desesperado e, por fim, abrindo as mãos em prece, recomeçou:
“O PS põe um cartaz na rua com uma mulher que se diz desempregada desde quando eu era primeiro-ministro e o PS governo, e, ainda por cima, segundo o que a mulher diz e eles escrevem, nunca recebeu nenhum subsídio ou apoio. Desempregada há 5 anos sem qualquer subsídio. 5 anos! Mesmo quando nós éramos governo. Um ano e meio… Mas que merda de cartaz é este?!... O que é isto, pá?!... O que é isto?”
Os reclusos abanavam as cabeças como os cães de plástico com uma mola em vez do pescoço que se viam antigamente em automóveis seleccionados.
O 44 olhou em volta, semicerrou os olhos numa expressão maléfica e sussurrou para os reclusos: “Quem é que tem um telemóvel?”

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O Interior

O Costa encostou-se à janela a olhar para a rua. Cruzou os braços, descruzou-os e passou as mãos pela face, esfregando os olhos. Após uns momentos de reflexão decidiu voltar-se para o interior.
– Não vale a pena – disse o Galamba, peremptório.
– O quê? – inquiriu o Costa, virando as costas à janela.
– Virar-mo-nos para o interior – respondeu o Galamba. – Há pouca gente, poucos votos.
O Costa olhou para ele como se o estivesse a ver pela primeira vez e perguntou:
– Mas quem é que disse que nos íamos virar para o interior?
– Diz ali – apontou o Galamba.
O Costa olhou para ele outra vez como se o estivesse a ver pela primeira vez e explicou:
– Aquilo é o narrador a dizer que decidi voltar-me para dentro da sala, João. O interior é a sala.
– Ah… – O Galamba não parecia convencido e tornou a ler a frase. – É capaz, mas também se pode ler que te decidiste virar para o interior – teimou.
O Costa encolheu os ombros e encaminhou-se para o seu lugar, sem lhe ligar.
Ressentido, o Galamba engoliu em seco, respirou fundo e insistiu:
– Também se pode ler que estavas a reflectir e decidiste aprofundar essa reflexão interior.
O Costa abanou a cabeça, desesperado.
– E porque é que havia eu de cometer esse erro? – resmungou, já no seu lugar, no topo da mesa, mas sem se sentar. – Achas que isso me dá alguns votos, João?!... Uma introspecção?
– Acho que uma introspecção nunca fez mal a ninguém – replicou o Galamba, sem convicção. – Eu, pessoalmente, nunca fiz nenhuma – hesitou. – Quero dizer, tipo, eu acho que nunca precisei mas… um líder.
O Costa deu uma gargalhada. O Galamba encarou-o com um sorriso forçado.
– Havia de ser bonito… – disse o Costa, todo sorrisos. – E dizia o quê, João: Prometo que, se for primeiro-ministro, paro para pensar? Que, quando for primeiro-ministro, faço introspecções periódicas? Ou que, se for primeiro-ministro, me avalio e avalio o que ando a fazer? – A sala ria com o líder. – Achas que alguém acreditava, João? Achas?
O Galamba abriu um sorriso bovino e assentiu com a cabeça.
Satisfeito, o Costa sentou-se.
– Se é para continuar a prometer coisas à parva, ao menos que sejam coisas minimamente verosímeis, João. Minimamente… agora, introspecções… – O Costa deu uma gargalhada e concluiu absolutamente divertido e deliciado consigo próprio: – E ia olhar para o meu interior, para o ver o quê? Para ver o quê?

sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Grito

A mulher passa-lhe a mão pelo cabelo. Ele sente o gesto, que o enjoa, mas não o sinaliza, deixa-se ficar quieto, sentado como está, enfiado no cadeirão onde se enterrou com os cotovelos nos joelhos e as mãos a envolverem e a segurarem-lhe a cabeça.
Ouve a mulher sair do quarto e fechar a porta. Cerra as pálpebras com força, decidido a, quando abrir os olhos, levantar-se e reagir. Tomar banho e vestir-se. O telemóvel no silêncio vibra em sessões contínuas “como no Olímpia.” Ouve a vibração na mesa ao seu lado e fica a pensar se alguém ainda usa a expressão ou, sequer, se ainda saberão o que quer dizer. Adia o descerrar das pálpebras: ainda não está preparado. No meio da vibração, há toques que identificam sms e mails a entrarem em catadupa. Enfurecem-no: “Mas pensam que eu não vi? Que eu não sei? Pensam que me estão a dar alguma novidade?!”
Inspira pelo nariz, expira pela boca. Abre os olhos. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Solta a cabeça e levanta-a. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Olha em volta: a colcha está puxada para cima e a roupa para vestir já está em cima da cama. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Fixa-se na porta da casa de banho e imagina o que terá de fazer para lá chegar mas as pernas não lhe obedecem. Suspira. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Torna a suspirar. Levanta-se e repara no telemóvel, ainda a vibrar. Agarra-o e desliga-o. “Não,” censura-se, “o telemóvel desligado é ostensivo. Não deixa dúvidas.” Inspira pelo nariz, expira pela boca. Liga o telemóvel e atira-o para cima da cama.
A televisão está desligada mas quando olha para o écran, vê um 37 em 3 dimensões. Irrita-se mas não consegue desviar o olhar. O 37 ganha um sinal % e roda, já não é em 3D, é um holograma. Um 37% cor-de-rosa, que gira e que, de repente, cai para o chão. Ri-se com a sua imaginação e passa as mãos pelos olhos e pela face, como se estivesse a lavar a cara. Reabre os olhos, certo de que tudo voltou ao normal mas da televisão cai uma cascata de 37%'s cor-de-rosa que se espalham pelo chão. Foge para a casa de banho.
Abre a água do duche e lembra-se de outro desastre perto de acontecer: “E o Maxi?”
Decide que tem de ligar ao Vieira, fá-lo-á como um simples adepto, perder o Jesus e o Maxi em quinze dias é demais. É intolerável. Não lhe vai dizer, mas perder o Maxi no mesmo dia em que lhe dão 37% e o põem atrás do Passos, é demais para um homem só. Ri-se, um riso amargo, que lhe aviva a úlcera e que o faz engolir em seco e agoniar-se com o sabor ácido que lhe sobe à garganta.
António entra para a cabina de duche, sem despir o pijama, e debaixo do chuveiro corrige a posição do manípulo do misturador, tudo para o azul, “como o Maxi”, lamenta-se.
Esquece-se de tudo imediatamente, quando a água fica gelada.
“AAAHHHH!!!”


domingo, 24 de maio de 2015

Animais Fofinhos

O pelicano lança uma pensativa baforada e, esticando-se, passa o charro ao esquilo. Recosta-se na cadeira e fixa-se, com ar sonhador, na parede em frente, num poster de um enorme ajuntamento de pelicanos num lago. Dá um longo e profundo suspiro, levanta-se lentamente e caminha com solenidade até ao poster. Torna a suspirar.
Deitado no sofá, o esquilo segue-o com o olhar enquanto se coça com indolência. Tem um sorriso matreiro estampado no rosto e os olhos, enormes, brilham como se tivessem luz própria. Dá uma longa passa.
– Isto é que eram tempos – diz o pelicano, numa voz arrastada, parando em frente ao poster.
– E nem era preciso enrolar nada – acrescenta o esquilo, animado.
– Pois. – O pelicano abana lentamente a cabeça para cima e para baixo. – A água estava cheio de ácidos, meu… Aquilo era o céu, pá, era uma nuvem do céu.
– Duas, duas nuvens, Pel: uma de ácidos e outra de aves cor-de-rosa, completamente pedradas, em cima de umas perninhas de alicate.
– Pois. – O pelicano encosta o bico ao poster e, sem que o sinta, começa a lacrimejar. – Um gajo estava ali, no meio de milhares das mais belas aves do planeta, com as patas de molho e envolvido numa nuvem de paz e amor. Completamente envolvido, completamente integrado…
– Vocês têm bicos horríveis – guincha o esquilo, sentando-se muito direito. – E olha que nem toda a gente gosta de cor-de-rosa!
O pelicano vira a cabeça e fulmina-o com o olhar.
– Sabes que vais ser empalhado, não sabes?
O esquilo salta do sofá para a secretária, para a cadeira, para a estante à direita, para o candeeiro de tecto, para a porta, para a estante, para parede e para as costas da cadeira. Ri.
– Era preciso que me apanhassem…
Imóvel, o pelicano roda o pescoço, olha para o poster, bate as asas uma vez e torna a rodar o pescoço para encarar o esquilo.
– E antes de te empalharem, vão esventrar-te totalmente. Ficas uma casca oca de ti próprio.
– Um boneco.
– Um boneco – concorda o pelicano, satisfeito.
O esquilo encolhe os ombros e lança-se para o sofá.
– Desde que não me pintem de cor-de-rosa…