quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O Almoço Dulcineia


– Isto é como uma ocupação – gracejou Paulo.
– É – concordou Pedro, rindo. – Vamos ocupar o Santa Maria!
– Isso é premonitório – disse José, sério. – O antigo regime começou a cair por aí. Pelo assalto ao Santa Maria!... Foi um bocado antes do tempo – ponderou o filósofo  mas com a aceleração dos nossos tempos, os onze anos de há cinquenta anos...
– Treze  – corrigiu Pedro, como se pedisse desculpa.
– Ou treze – José encolheu os ombros desvalorizando o pormenor. – Os treze anos dessa altura agora são um mês ou dois. Assaltamos hoje o Santa Maria e sabe-se lá o que acontecerá daqui a uns dias!
– E também já temos lá os nossos infiltrados – acrescentou Pedro.
– O Galamba e o Sousa Pinto já chegaram? – perguntou José, desconfiado.
– Já – respondeu Pedro. – Já chegaram e já ocuparam os seus lugares…
– Estamos totalmente prontos para dar início às hostilidades – interrompeu Paulo, em tom marcial.
José estacou, fez uma careta de aborrecimento, cerrou o punho direito que ergueu ligeiramente com o braço num ângulo de noventa graus e cruzou o ar em frente ao peito com o punho cerrado num gesto teatral que os outros, parados a contemplá-lo, acompanharam com expectativa.
– Se eu me tivesse lembrado… – censurou-se José. Pedro e Paulo entreolharam-se sem perceberem nada. – Isso é que tinha sido! – riu-se José e recomeçou a andar. Os dois homens seguiram-no como sempre faziam.
Três passos depois, Pedro encheu-se de coragem e perguntou:
– Se te tivesses lembrado de quê?
José parou e olhou-os com ar de animal feroz. Os subalternos encolheram-se.
– Vocês, minhas andorinhas, é que se deviam ter lembrado – disse José, em tom grave e sério, que enregelou os dois “andorinhas” até aos ossos, mas que acabou num inesperado sorriso (o vento frio que vinha do mar parecia que lhe fazia cócegas e dispunha-o bem; o velho ar apalermado e aflito de Pedro e Paulo fez-lhe lembrar bons tempos e também isso lhe quebrou a simulada seriedade). Os dois homens sorriram em resposta e José continuou em tom de gracejo: – Ou pelo menos o Galamba… Sim, isso era coisa que o Galamba dos bons tempos se havia de lembrar. Vocês são demasiado… – José hesitou na escolha da palavra e olhou-os com ternura, que os dois homens sentiram como uma bênção. – Vocês são demasiado hirtos para pensarem numa provocação dessas. – José abriu os braços e pô-los sobre os ombros dos dois homens, que se queixavam silenciosamente do vento marítimo para justificar os olhos marejados de lágrimas e o nó na garganta que sentiam, e puxou-os reiniciando a marcha.
– À abordagem, meus piratas – gritou José. – Hoje não se fazem prisioneiros! Não há carabineiros, nem lagostas, nem nada que venha para a mesa que nos escape! Vai ser a rapar até ao fundo!
– Como nos velhos tempos – suspirou Paulo, limpando a vista direita com as costas da mão.
-- Como nos velhos tempos -- repetiu Pedro, num murmúrio lacrimejante mas cheio de esperanças. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O Pantomineiro senhor S.

O senhor S. aproximou-se de mim com ar conspirativo, sorriu para as pessoas com que eu falava, pediu-lhes desculpa sem convicção e, agarrando-me o braço direito, puxou-me à parte e afastou-nos do pequeno grupo. Então, seguro que ninguém mais o ouvia, declarou num sussurro:
– O doutor L. está maluco. – Olhei para o doutor L., que bocejava no meio da sala com ar alheado e ligeiramente lunático, e depois voltei a fixar-me no senhor S. que, satisfeito com a minha atenção, continuou no mesmo tom: – Sabes o que ele me disse ainda agora?
Acenei com a cabeça o óbvio, que não sabia, e ironizei num lamento:
– No entanto, algo me diz que vou ficar a saber, mesmo que isso não me interesse nada.
– Lá estás tu – repreendeu-me o senhor S. e, puxando-me ainda mais para si, reafirmou: – O homem está maluco. Não brinques.
– O que é que ele lhe disse? – Perguntei para o apaziguar, enquanto tentava, pelo menos, voltar à posição inicial: agarrado pelo braço mas sem parecermos siameses colados da cintura até ao ombro.
– Que a D. anda a enganar o marido – respondeu o senhor S. de pronto.
Olhei-o perplexo, enquanto ele abanava lentamente a cabeça para cima e para baixo e me olhava com os olhos muito abertos e esbugalhados e os lábios firmemente cerrados, provavelmente numa tentativa – frustrada – de conferir uma acrescida gravidade à frase.
– E eu não lhe perguntei nada – acrescentou o senhor S., em jeito de justificação. – Cumprimentei-o e perguntei-lhe como iam as coisas. Só lhe perguntei isso. Dei-lhe um aperto de mão e perguntei-lhe: "Então, doutor, como vão as coisas?". Ele suspirou, olhou para mim e disse-me: "Do pior, S., do pior". Eu larguei-lhe a mão e fiz uma careta de desinteressada compreensão para…
– Desinteressada compreensão? – Interrompi.
O senhor S. abanou a cabeça para cima e para baixo com vigor e, sorridente, disse em dois tons:
– É a cara de "coitadinho...-mas-o-que-é-que-isso-me-interessa?"
– O senhor tem uma cara para isso? – perguntei. O senhor S. não respondeu mas fê-la. E tinha! – Também serve para "vai-te encher de moscas" – disse eu.
O senhor S. riu-se.
– Foi mesmo isso que eu pensei: "Ó doutor, vá-se mas é encher de moscas!"
– E depois? – perguntei.
– Ele não percebeu ou fez que não percebeu a minha ostensiva e quase ofensiva desinteressada compreensão e disse-me: "Ó S., acabei de saber que a senhora D. engana o marido..."
– Foi?
– É – corrigiu o senhor S. – Parece que ainda é, ele falou no presente.
– Não era isso – esclareci. – Estava a perguntar se foi isso que ele lhe disse.
– Ah! – O senhor S. largou-me o braço, deu-me uma palmada nas costas a acompanhar a interjeição e sorriu e acenou para o doutor L. que olhava para nós com ar desconfiado mas, ainda assim, não menos lunático, apenas um pouco mais focado nalguma coisa. – Disfarça – ordenou-me o senhor S., ainda a sorrir para L. – O gajo não gosta que falem nele.
– Eu não estou a falar nele – disse eu.
– Mas estou eu, parvo!
O doutor L. cumprimentou um indivíduo qualquer que se aproximou dele cheio de salamaleques e o senhor S., puxando-me para junto de um grande vaso com uma planta enorme e desproporcionada para o tamanho da sala, preparava-se para continuar quando eu me antecipei:
– Mas quem é essa D.?
O senhor S. olhou para mim com um misto de espanto e desconsolo e, num tom ainda mais sofrido do que a expressão, disse:
– Isso queria eu saber... – Fez uma pausa e, adequando o tom e a expressão pela mais carregada das duas, concluiu pesaroso: – Pensava que tu soubesses quem era a adúltera senhora D. – Nova pausa e, depois, no mesmo tom e cabisbaixo e a abanar a cabeça na horizontal. – Eras a minha maior esperança, meu rapaz... A minha maior esperança.
– Para saber quem era a senhora D.? – Aquilo parecia-me um grande exagero mas com o senhor S. nunca se sabe.
– Sim, claro… – O senhor S. levantou a cabeça e deixou-me ver os seus olhos que brilhavam num sorriso trocista, que eu já conhecia, mas concluiu no mesmo tom e com o mesmo semblante: – Eu cheio de esperança de conhecer uma adúltera para me animar os dias e tu não sabes quem ela é... É uma tristeza. Uma tristeza... – No fim, piscou-me o olho e sorriu. Abanou os ombros e, como se fosse tudo normal, explicou: – Daqui a nada tenho de ir falar com o doutor C. – apontou com a cabeça para o homem que ainda não tinha saído de junto da mesa onde serviam as bebidas – e tenho de pôr este ar de desvalido para ver se ele me faz um favor. Sou convincente, não sou?
Eu abanei a cabeça na horizontal mas disse-lhe que sim. – E pode-lhe perguntar se conhece alguma senhora D. – acrescentei.
O senhor S. olhou para mim e depois para o doutor C.
– Nã… É melhor não. Eu sei lá se é a mulher dele.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A Entrevista

José soprou, rosnou, resfolegou e riu. Depois, pegou no telemóvel e ligou:
– Eu não chamei filho da mãe a ninguém – disparou José logo que reconheceu a voz feminina que o cumprimentara.
– Bom dia, engenheiro – repetiu a voz feminina, certa que o homem não a ouvira da primeira vez.
– Só se for para si, Clara – replicou José, com secura.
– Já viu a prova da entrevista? – perguntou Clara, adivinhando a razão do telefonema.
– Do texto – corrigiu José. – Já, já vi. É por isso que lhe estou a ligar – reconheceu e, de pronto, reincidiu: – Eu não chamei filho da mãe a ninguém!
A voz feminina trinou num riso forçado.
– Nisso tem razão, engenheiro, o senhor não chamou filho da mãe a ninguém…
– Nem chamei bandalho ao Santana.
– Pois não – apressou-se a concordar a voz feminina –, também não foi bandalho o que chamou ao Santana.
O estado de espírito de José mudou com a rapidez com que Clara lhe dera razão.
– Podia ter-lhe chamado bandalho – admitiu José, com bonomia. – Se quer saber a verdade, já nem me lembro o que é que lhe chamei… O que é que eu lhe chamei?
– Ó engenheiro… – Clara lançou um risinho pueril. – Há palavras que não ficam bem na boca de uma senhora…
José deu uma gargalhada.
– Uma senhora… Essa é boa! E aquilo que me disse no fim do almoço?!
– O que se diz no fim dos almoços… – Clara fez uma pausa procurando ser mais engraçada e original, mas, antes que perdesse o tempo da piada, concluiu: – O que se diz no fim dos almoços, fica no fim dos almoços.
José riu com espalhafato.
– E de resto? – perguntou Clara, aproveitando o bom-humor do engenheiro.
– Está excelente. Está muito bem.
– E os filhos da mãe e os bandalhos e…
– Podem ficar assim – interrompeu José, divertido.
– Tem a certeza? – Troçou Clara. – Não quer que coloquemos os exactos termos que usou?
– É melhor não… – José riu. – Nem sei se podiam pô-los. – José deu duas gargalhadas cheias de si próprio. – De qualquer maneira, assim até é melhor, se for preciso, eu posso sempre dizer que vocês alteraram e deturparam aquilo que eu disse.
– Mas eu tenho a gravação… – respondeu Clara no mesmo tom divertido e amigável.
– E ainda bem, Clara, ainda bem que a tem: assim não me pode desmentir se eu disser que não usei aqueles termos. – José continuava a falar no mesmo tom animado. – Não os usei, pois não?
– Não, na realidade, o engenheiro não usou os termos que vamos publicar – Clara respondeu no mesmo tom descontraído mas algo não lhe soou bem, o que a levou a usar o plural e um tom quase subserviente ao concluir: – mas nós podíamos mostrar a gravação original…
– Podiam – aceitou José, ainda em tom jocoso –, poder podiam mas não era a mesma coisa. – José não se riu da sua graça e Clara ouviu-a como um mero interlúdio para o que o engenheiro ainda lhe ia dizer. Então, após o necessário momento de silêncio dramático, José explicou sussurrante: – E não era a mesma coisa porque eu também tenho uma gravação igual à sua, Clarinha. Igualzinha... Só que a minha não acaba no fim do almoço… – José estalou a língua e inspirou ruidosamente como se lhe custasse o que ia dizer e, após expirar pelo nariz, concluiu ainda sussurrante mas em tom mais grave: – Foi uma pena não termos ido almoçar a Las Vegas, Clara, uma grande pena. É que sabe o que dizem não sabe? – Clara não lhe respondeu. José continuou, melífluo:   Claro que sabe, até faz piadas sobre isso. O que se diz no fim dos almoços em Las Vegas, fica em Las Vegas, agora o que se diz no fim dos almoços em Lisboa pode-se ficar sempre a saber... E muitas vezes sabe-se. E isso é uma chatice, Clara. Um grande incómodo, realmente...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um livro.Um cd.

– E de quem foi a culpa, afinal? – questionou Isabel, sentindo um nó na garganta no final da pergunta.
João ouviu-a e levantou os olhos na direcção da mulher mas sem erguer a cabeça.

Entre os dois haviam decidido que a separação era a única solução. Uma separação mais indiferente que pacifica mas que se fizera sem atritos, nem discussões, ao contrário do resto do tempo que haviam passado juntos.
João, sentado no sofá da sala da casa de Isabel, onde os dois haviam habitado, tinha minutos antes gracejado com a situação: “Se calhar, devíamos ter estado em continua separação”. Mas Isabel não lhe respondera, nem sequer sorrira. E ele, já com tudo arrumado no automóvel – na verdade, apercebeu-se então que tinha levado muito pouca coisa –, deixou-se ficar sentado no sofá de três lugares, em silêncio, à espera de qualquer coisa que servisse de ponto final, olhando para ela sentada num sofá individual, na outra ponta da pequena sala. “Já levaste tudo?” perguntou ela, quebrando o silêncio. Ele respondeu que sim. “Era aquilo tudo?”, ironizou ela, sem esconder uma ponta de desconsolo na voz. “Já tinha levado a roupa” disse ele, comprometido. “Também pus coisas nas malas da roupa”, mentiu como se tivesse de justificar o pouco volume de bens pessoais que tinha trazido para casa dela. Ela encolheu os ombros, sorriu sem vontade e ouviu-se perguntar: “E de quem foi a culpa, afinal?”.

– Não sei... – respondeu João, desviando o olhar. – Acho que foi dos dois.
Isabel lançou-lhe um olhar inquiridor mas, antes que ele o visse, corrigiu:
– Isso agora não é importante. Desculpa.
Olharam-se os dois, João concordou com a cabeça e trocaram pálidos sorrisos resignados.
Isabel pousou as mãos na ponta dos braços do sofá e ergueu-se, decidida. Já em pé, olhou para a televisão apagada e constatou:
– As coisas são o que são e não só não morreu ninguém como não saímos disto pior do que entrámos.
João levantou-se, respirou fundo, cerrou os lábios, concordou com um aceno de cabeça e, por fim, disse:
– Sim, isso é verdade... – João sentiu que lhe faltou nomeá-la no fim da frase. “Sim, isso é verdade, Isabel” mas custava-lhe dizer o nome dela. “Isabel.” – Acho que ficámos melhores. Pessoas melhores.
Isabel percebeu que ele não entendera que ela só se estava a referir à televisão que tinham comprado e que ficara para si, mas não o esclareceu, e saiu da sala em silêncio. Ele seguiu-a para o hall de entrada.
– Gostava de te dar uma coisa, João.
– O quê?
– Vou buscar.
Perplexo e a tentar adivinhar o que seria, João ficou a vê-la entrar no quarto, ouviu-lhe os passos a contornar a cama, o som de uma gaveta a abrir e a fechar e os passos a voltarem na sua direcção.
“Um livro”, pensou João à vista do embrulho.
– Eu… – João hesitou, estava a estranhar o embrulho. – Eu… – João esticou a mão direita para a agarrar o livro embrulhado. Agarrou-o e confirmou que era um livro. – Abro?
Isabel encolheu os ombros:
– Se quiseres.
João tentou decifrar o tom mas não conseguiu.
– Eu… Eu deixei-te um cd – disse João, agarrando o livro embrulhado com ambas as mãos, curioso mas sem se decidir a desembrulha-lo.
– Foi?
– Sim, dos…
– Sabes que eu vou deitá-lo fora – interrompeu Isabel.
– Vais?!
– Sim – confirmou a mulher – e provavelmente parti-lo. – João olhou assustado para o embrulho que tinha nas mãos. Isabel disse a rir: – Está descansado, é só um livro.
– Vais mesmo deitar fora o cd?
Isabel abanou a cabeça para cima e para baixo e completou:
– E provavelmente, parti-lo – repetiu, com gosto.
– Mas… – João sentia o livro queimar-lhe os dedos. – Mas se nem sabes qual é.
– Seja qual for. – Isabel ergueu o ombro direito e fez uma careta. – Não é isso que interessa.
– Posso ir buscá-lo?
– Ao cd?
– Sim, se vais deitá-lo fora.
– Não – disse Isabel, secamente. – Não mo deste?
– Dei. – João olhou para o embrulho que mantinha na horizontal agarrado pelas duas mãos. – E se eu deitar o livro fora?
– Deitas. É teu.
– Não ficas chateada?
– Fico.
– Mas deitas o meu cd fora…
– O meu cd. O teu livro. Tu. Eu. – Isabel deu dois passos de lado, aproximando-se da porta. – Lembras-te da gaivota?
– Qual gaivota?
– Da canção. – João acenou que se lembrava. Isabel continuou: – Como ela, somos livres. Livres. Queres deitar o livro fora? – Isabel abriu as mãos e os braços. – Be my guest. És livre. É teu.
João engoliu em seco e virou-se para a porta.
– Ok. – Olhou para a fechadura e anunciou: – Vou-me embora.
Isabel puxou o trinco e abriu a porta.
Deram dois beijos como se fossem amigos, olharam-se nos olhos, onde não se viram, e tentaram e conseguiram dizer adeus ao mesmo tempo, o que foi a última coisa que fizeram em conjunto.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Escuta 231 #06.06.2006

16:55. Ela/Ele:
“Encontramo-nos lá?
Onde?
Lá!
Ah! Sim, pode ser.
À mesma hora?
Sim.
Até já, então.
Até já.
Mas vais?
Vou, se estou a dizer até já é porque vou.”
18:38. Ela/Ele:
“Está?
Olá.
Então?
Então o quê?
Não vens?
Onde?
Onde?! Então, não ficámos de nos encontrar?
Foi?! Quando?
Agora.
Onde?
Aqui.
Que horas são?
Seis e meia.
Oh! Dá-me dez minutos.
Esqueceste-te?!
De quê?... Não! Não me esqueci. Dez minutos.
Dez?
Sim, esperas?
Está bem.”
18:55. Ela/Ele:
“Está?
Sim?
É só para te dizer que me vou embora.
Está?! Está?!”
18:57. Ele/Ela:
“Está?
O que é?
A chamada caiu ou foste tu que desligaste?
Fui eu que desliguei.
Ainda aí estás?
Estou aqui. Exactamente aqui.
Espera... Espera... Estás onde?
Estou aqui.
Sim, mas onde? Não te estou a ver.
Não? Tu estás aonde?
No carro, não consigo estacionar... Mas estou aqui em frente e não te estou a ver.
É natural, eu não estou aí...
Disseste que estavas... Não disseste que estavas aqui?
E estou. Estou aqui, não estou aí. Queres estacionar?
Quero.
Então, anda duzentos metros mais para a frente.
Estou a andar... Não há lugares.
Espera... Estás a ver um Astra preto com o pisca aceso?
Estou.
Vai sair, podes estacionar.
Está bem. Até já.”
19:02. Ele/Ela:
“Está! Desculpa lá... Estás a gozar?
Porquê?
Não eras tu que ias no Astra?
Era, ou melhor, sou.
E mandaste-me estacionar?!
Não mandei, perguntei. Perguntei se querias estacionar, tu disseste que sim e eu dei-te o lugar.
Estás a brincar?
A brincar?! Porquê não conseguiste estacionar?”
19:04. Ele/Ela:
“Está?!
Sim, o que foi agora?
A chamada caiu.
A chamada?
E o telefone!
Logo vi.
Logo viste, o quê?
Que tinhas atirado o telefone ao chão do carro.
Tu estás a irritar-me!
Estou?
O que achas?
Acho que sim, pelo menos estou a tentar.
Fiz-te algum mal, foi?
O que achas?
Foda-se!
Foda-se?! Disseste foda-se?
Não era para ti! Está um polícia a mandar-me parar. Já te ligo.”
19:32. Ele/Ela:
“Ouve lá, mas tu não passaste pelo polícia?
Multou-te?
E ainda me pregou um sermão por ter o kit de mãos livres e não ir a usar.
Azar.
Mas o polícia não te viu? Tu passaste por ele.
Eu sorri.
Sorriste?
Foi.
E ele?
Ele também sorriu.
Ah… E agora onde é que estás?
Vim à esplanada.
Do careca?
Sim.
Vou aí ter.
Para quê?
Quero falar contigo.
Porquê?
Porque quero. Até já...
Até já.
Esperas?
Espero, se estou a dizer até já é porque espero.”
19:44. Ele/Ela:
“Está?
Sim?
Não esperaste.
Tive de me vir embora.
Estás a gozar.
Não tanto como tu.
Diz?!
Estou a gozar, mas não estou a gozar tanto como tu.
Eu percebi! Mas porque é isso?
Olha, Ferdinando, acho que mais vale ficarmos por aqui.
Assim, Imelda? Por telemóvel?
Sim, Richard, escusamos de nos ver.
Mas eu quero ver-te, Elisabeth. Acabar por telemóvel é para miúdos, Inês.
Oh! Pedro, acabar é acabar e pronto e tu não tens emenda, Denys George.
Denys George?!... Denys George?! Quem é o Denys George?
Perdeste?!
Se o Denys George existe, perdi.
Ah! Boa!
Mas quem é que eu te devia chamar?
Karen Christence, meu caro Mr. Hatton.
Oh, bolas!... Do África Minha! E tu eras a Karen Blixen! Apanhaste-me.
Ainda estás aí, Stan? – perguntou ela com um sorriso.
Na esplanada, Oliver?
Sim, estás?
Estou – respondeu ele, feliz.
Então espera por mim, estou mesmo a chegar.”

– Oiça lá – disse o superior, ríspido –, quando se fazem transcrições, transcreve-se.
– Não foi o que eu fiz? – perguntou o subalterno.
– Foi – respondeu o superior, alinhando as folhas –, até ela ter perguntado com um sorriso e ele ter respondido feliz.
– Ah! – O subalterno achou graça à explicação do superior e descansou, eram pormenores. – Eu acho que...
O superior que batia com as folhas na vertical na secretária, largou-as e interrompeu-o com maus modos:
– Você acha?! Ó... – O superior calou-se repentinamente, olhou para as folhas, voltou a pegar-lhe e recomeçou pausadamente: – Diga lá... Acha o quê?
Assustado, o subalterno olhou-o, viu as folhas voltarem a bater lentamente no tampo da secretária, constatou o ar interessado do superior e, ainda assim receoso, avançou:
– Acho que ela, quando lhe perguntou se ele ainda estava na esplanada deve ter sorrido. – O superior acenou ligeiramente com a cabeça, concordando, e ele continuou a explicação: – Para mais chamou-lhe Stan, Stan Laurel, o estica do Bucha e Estica...
– Eu sei quem é o Stan – interrompeu o superior. – E?
– Já não era um par romântico, mudou o princípio dos nomes, passou para uma coisa mais ligeira. Ela queria encontrar-se com ele, por isso, de certeza que sorriu.
– Estou a ver – concordou o superior. – E ele ficou feliz?
– Ficou, percebeu que a coisa se tinha resolvido. Que voltavam a falar.
– Sim, senhor. – O superior levantou-se com as folhas da transcrição na mão, rodou-as e segurou-as na horizontal. – Mas olhe, ó Sousa – rasgou-as ao meio e estendeu-lhe as duas metades –, eu até sou capaz de concordar consigo, a gaja deve ter sorrido e o gajo deve ter ficado todo contente – o subalterno pegou nas folhas rasgadas – mas, a verdade, é que aqui só transcrevemos, não romanceamos, ouviu?!

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O Parvo

Apesar de não desviar o olhar do recheio do decote que, graciosamente, a mulher lhe colocara à frente, o homem pôs um ar de sofrimento atroz e, num tom despreocupado que não casava com a cara de desvalido que ostentava com esforçado empenho, informou:
– Não há nada a fazer, querida, não tenho cheta.
Sentindo uma repentina fúria a tomar conta de si, a mulher semicerrou os olhos, mordeu o lábio inferior, inspirou pelo nariz e engoliu em seco para se controlar: o “querida” arranhara-a mas a desarmonia entre a expressão do homem e a frase e o tom em que ele a dissera doeu-lhe como uma bofetada. A “querida” conteve-se, respirou fundo, abstraiu-se do ar aparvalhado com que ele ainda rebolava os olhos nas suas mamas, e perguntou docemente:
– Tens mesmo a certeza que não queres?
O homem queria mas não podia ou podia mas não queria, ele próprio não sabia bem, mas, aparte isso, tinha a certeza da negativa, isso era certo e definitivo, apesar de estar maravilhado com o recheio do decote que lhe ocupava todo o campo de visão, de estar entusiasmado por ter uma mulher pendurada no seu colo e de estar a sentir uma forte pulsão primitiva que procurava justificar e tornar aceitável a rendição a um dos mais básicos ensinamentos cristãos. “Ainda que eu não me fosse multiplicar…”, riu-se o homem para si.
– Tens a certeza que não há nada a fazer? – Insistiu a mulher, em tom menos doce mas ainda agradável.
O homem levantou a cabeça e olhou-lhe para o rosto mas, no meio dos seus pensamentos, dúvidas e certezas, decidiu não vocalizar a resposta, não lhe dirigir a palavra e ser duplamente afirmativo e desagradável, acenando com a cabeça para baixo e para cima ("tenho a certeza que não há nada a fazer!") enquanto encolhia os ombros ("e não me interessas, nem quero saber das tuas expectativas ou acho que mereças que responda com a mesma educação e simpatia com que me estás a tratar"); o que, deu-se conta disso naquele momento, não conseguia fazer ao mesmo tempo.
– Não consigo – disse o homem, perplexo, sem parar de tentar conjugar os movimentos da cabeça e dos ombros, o que lhe saía cada vez mais ridículo e grotesco.
Pasmada, a mulher olhava para o bizarro espectáculo que o homem dava sem saber se havia de rir ou de chorar, se havia de se levantar e fugir ou dar-lhe um estalo e ajudá-lo a recompor-se do que lhe parecia um ataque qualquer.
– És parvo ou quê? – rosnou, por fim, a mulher, sem se mexer, cansada da noite que ainda não começara, farta dos clientes que ainda não tivera, desesperada com as escolhas que fizera na vida e que agora a faziam estar ali, ao colo de um louco furioso, sem dinheiro nem respeito por quem tenta trabalhar.
O homem, assustado com a fixidez penetrante do olhar dela, que achou ter relevância penal se ficasse registado, desistiu, ainda que contrariado, de tentar acenar com a cabeça e encolher os ombros ao mesmo tempo e manteve-se calado e quieto à espera do que ela faria ou diria a seguir. Mas a mulher não fez nem disse nada e acabou por distrair-se, desviando o olhar de forma natural, sem antipatia ou ressentimento, o que deu ao homem um suplemento de parvoíce e mania que se materializou no tom ríspido, antipático e com a barba por fazer com que lhe disse que estava aborrecido por não conseguir mostrar-lhe de duas formas o desinteresse nela e na pergunta que ela lhe fizera.
– Queria abanar a cabeça e encolher os ombros ao mesmo tempo mas não consigo – concluiu, como se isso é que fosse importante.
– Afinal, não és só parvo – A mulher suspirou profunda e ruidosamente e terminou com um esgar de asco que não a favorecia: – És parvo e mal educado e desagradável.
– Porquê, tu consegues? – Perguntou o homem que, na realidade, não a tinha ouvido, julgando tão-só que ela o estava a depreciar por não conseguir coordenar os movimentos que queria.
A mulher esticou-se, pôs os pés no chão (era pequena), levantou-se, saiu do colo do homem, baixou o mais que conseguiu a curta mini-saia que quase trazia vestida, e, abanando a cabeça na horizontal e fazendo ao mesmo tempo toda a espécie de movimentos com os ombros, com a boca e com os olhos sublinhando o seu desagrado e aborrecimento, comentou, sem que o fizesse particularmente para o homem que retomara as tentativas de abanar a cabeça e encolher os ombros:
– Se não querem por que é que nos deixam avançar? Porque é que não dizem nada e, pelo contrário, – a mulher fez uma pausa nas vírgulas que o homem, sem perceber porquê, apreciou – põe-se com conversas como se fossem alguma coisa de jeito e  ainda nos chamam queridas e lindas e…
– Eu não te chamei linda – corrigiu o homem, julgando que ela estava a falar com ele.
A mulher tornou a suspirar:
– Estás-me a chamar feia, é?!... Era só mesmo o que faltava...
Atrapalhado, o homem engoliu em seco, abanou a cabeça sem mexer os ombros (o que fazia com naturalidade) e, pensando ainda que ela falava com ele, que ela falava a sério, que ela ainda sabia que ele existia, justificou-se:
– Não, estou só a dizer que não te chamei linda, só te chamei querida.
O homem acabou a frase a olhar-lhe para os bicudos e brilhantes sapatos vermelhos de salto muito alto, que se viraram e se afastaram num silêncio estrondoso, o que lhe pareceu muito indelicado e rude da parte dela.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Periferia

Júlia fixou-se nos olhos de Marco e disse-lhe:
- Entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer, podia escrever-se um livro.
Marco cerrou os lábios, abanou resignadamente a cabeça, concordando, e perguntou:
- Não é sempre assim?
- Não sei - respondeu Júlia, levantando os ombros. - É provável que sim. Há sempre coisas que não se conseguem dizer, outras que achamos não valer a pena serem ditas e outras que não queremos dizer.
Marco afastou o seu olhar do dela e olhou em volta, para as outras mesas da esplanada mas não pensou em nada, nem, na realidade, viu o que quer que fosse, precisava apenas de se afastar dos olhos dela, de deixar de sentir que estava a ser lido, que ela o estava a perceber mais do que ele se percebia a si próprio. Quando voltou a olhar para ela, Júlia olhava para o tampo da mesa, absorta nos seus pensamentos. Marco esperou uns segundos e, depois, disse num sussurro quase inaudível:
- Também há coisas que não sabemos dizer. - Júlia levantou a cabeça e tornou a fixá-lo, Marco continuou no mesmo tom: - E há coisas que não dizemos no tempo certo e por muito que nos martirizem, pelo menos durante um tempo - relativizou, achando que estava a ser sério demais -, acabamos por nunca dizer.
- É?
Marco acenou com a cabeça que era, voltando a cerrar os lábios como a dizer que não só era como era evidente que sim.
- Houve coisas que não me disseste... - Júlia parou para se lembrar da frase exacta e adaptando-a, recomeçou: - Houve coisas que não me disseste no tempo certo e que, apesar de te martirizarem, acabaste por nunca me dizer?
- Tu não?
- Que me lembre, não. - Júlia baixou os olhos para um ponto indefinido da mesa e, após um momento, corrigiu: - Não, de certeza que não. Ainda por cima se ficasse a pensar nisso, a martirizar-me - sorriu com a palavra -, a martirizar-me por não te dizer, dizia-o. Tu não? - Júlia repetiu a pergunta que ele lhe fizera, bem sabendo que não: não só porque ele lhe dissera mas porque, conhecendo-o, sabia que quanto mais o tempo passasse, com martirização ou não, menos ele o diria.
- Eu não - reconheceu Marco que, sem se querer alongar por esse caminho, voltou ao inicio desta parte da conversa. - Achas que o que ficou por dizer dava para escrever um livro?
Júlia mantinha o sorriso que lhe surgira com o “martirizar-me”, ainda que na maior parte do tempo, o sorriso permanecesse confinado aos lábios, não alastrasse a qualquer outro elemento do seu rosto, como se simplesmente se tivesse esquecido que estava a sorrir.
- Acho mais do que isso... -  Júlia engasgou-se nas palavras e o sorriso triste, infrutífero, desalentado em que a frase se esgotou deu lugar a um sorriso maroto, quase infantil, com que recomeçou a falar: - Eu não disse isso. Eu disse mais do que isso: disse que o que dava para escrever um livro foi o que está entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer; não foi só com o que ficou por dizer. O que ficou por dizer também dava para escrever um livro, se calhar maior, mais completo, mais volumoso, mas... - Júlia sorria com todo o rosto e com um particular brilho nos olhos - mas, de certeza, de certeza mesmo, não teria nem metade do interesse do livro que tivesse tudo o que está entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer.
Em fundo, das colunas presas à parede da pastelaria, começaram ambos a ouvir uma musica que reconheceram: Periphery de Fiona Apple.
- É por isso que gosto de vir aqui - disse Júlia, referindo-se à musica, a olhar para as colunas e, subitamente, levantou a mão direita para chamar o empregado, a quem, como se escrevesse no ar, pediu a conta. Olhou para Marco, que lhe devolveu um olhar interrogativo, e anunciou-lhe: - Tenho de me ir embora.
- Já? - repetiu Marco o que os seus olhos já haviam dito.
Júlia acenou com a cabeça.
- Agora.
Marco olhou para o relógio.
- Não é por causa das horas… - Júlia hesitou e emendou: - Não é só por causa das horas, é que esta é a banda sonora perfeita para terminarmos esta conversa. Não quero ouvir mais nada.
O empregado aproximou-se com a conta e perguntou:
- É junta?
Julia levantou-se, ficou entre a mesa e a cadeira, olhou para Marco, que lhe devolveu um olhar em que ela não encontrou qualquer significado, e, ainda a sorrir, o tal sorriso esquecido, disse:
- A conta é.