quinta-feira, 26 de março de 2015

A Conversa

– Tenho de te dizer qualquer coisa? – Perguntou a mulher, torcendo ligeiramente os lábios, depois de o ouvir falar durante mais de cinco minutos.
O homem olhou para ela e não respondeu; encolheu os ombros, esboçou um sorriso conformado que, no entanto, contradisse: – Se quiseres.
– O quê?
– O que quiseres.
– Não é isso – esclareceu ela. – Eu sei que posso dizer alguma coisa se quiser. O que eu queria saber era o que querias que eu te dissesse.
O homem encolheu os ombros e não escondeu uma careta de aborrecimento.
– Eu quero que digas o que quiseres. O que achares que deves dizer. Se quiseres dizer alguma coisa… – O homem calou-se, tirou um maço de tabaco do bolso do casaco e, enquanto o abria e extraía um cigarro, murmurou: – Não quero que me digas o que eu quero ouvir.
– Não podes fumar – anunciou a mulher, peremptória.
– Nã0? – Os olhos do homem não se decidiam entre o maço numa mão, um cigarro na outra e os olhos castanhos da mulher, que pareciam ter ganho um novo brilho.
– Não, aqui não podes fumar – repetiu a mulher. “E não encolhas os ombros, por favor”, pediu a mulher em pensamento.
O homem guardou o maço no bolso de onde o tirara mas ficou com o cigarro na mão. – Nem à janela? – perguntou. – Eu costumo fumar à janela.
A mulher acenou com a cabeça que não. – Mas precisas mesmo de fumar? – inquiriu.
Ele olhou para o cigarro, preso entre o indicador e o dedo médio da mão direita como se já estivesse a ser fumado, suspirou e abanou a cabeça para cima e para baixo.
– Então, tens de ir à rua – disse ela, num tom meramente informativo.
– E a nossa conversa? – inquiriu ele, sem deixar de olhar para o cigarro.
– A nossa conversa? – A mulher fixou-o, sem simpatia. "A nossa conversa foi mais um monólogo..."  A nossa conversa acabou. Tens de ir fumar, não é?
– Mas podemos continuar quando eu voltar… – sugeriu ele, pouco à vontade.
– Sim, claro. – Ela mostrou-lhe um sorriso irónico, a acompanhar o tom sarcástico e um olhar cáustico. – Claro que sim. Entretanto eu aproveito e vou pensar no que tu queres ouvir.
– Eu não quero ouvir nada – indignou-se o homem.
– Ah… – A mulher ergueu as mãos num gesto teatral. – Mas, assim, é muito melhor: tu não queres ouvir nada e eu não te quero dizer nada. O que poderia ser melhor que isso?
– E não vais dizer nada sobre aquilo que eu te disse?
Ela abanou a cabeça negativamente. – Não – reforçou.
– E ficamos assim? – insistiu ele, com ar incrédulo.
– Não, eu fico assim, tu vais ficar com mais nicotina e alcatrão nos pulmões. São escolhas.
– E não me dizes nada?
– Não, tu és maior e vacinado, fumas se quiseres. Eu não tenho nada a dizer a isso.
– Eu não estava a falar do tabaco.
– Eu calculei que não estivesses.
– Mas…
– Mas nada – interrompeu a mulher, sem paciência. – Tu não tinhas de ir fumar?
– Posso ir depois – respondeu o homem.
A mulher apontou para o cigarro e pediu-o com um gesto. O homem estendeu-lhe a mão com o cigarro. Ela tirou-lho.
– Tens lume? – perguntou.
O homem, sem outra reacção, tirou um isqueiro do bolso e deu-lho.
– Afinal eu é que vou ficar com a nicotina e o alcatrão – disse ela, encaminhando-se para a porta do gabinete. – Quando saíres apaga a luz – e saiu.

quarta-feira, 18 de março de 2015

O Hino

(os nomes foram alterados para proteger os inocentes)

– Indícios… – bufou Sócrates, largando com desprezo as folhas de papel em cima da mesa.
– Indícios?
– Sim, meros indícios. Insidiosos indícios.
– Uma cabala – acrescentou o Dr. Araújo, ajeitando as folhas do Acórdão.
– Pois, isso. Uma ardilosa construção para enganar e condicionar os juízes à solução preconizada…
– Uma ficção jurídica…
– Jurídica e de facto. Uma narrativa. Uma má narrativa. Um romance de terceira categoria – Sócrates riu-se.
– Ainda posso dizer que está divertido?
– Essa é outra, ó doutor. Mas que merda de conversa foi essa? Acha que é de bom-tom mandar as pessoas tomarem banho a meio da manhã e à tarde dizer que eu estou divertido? Isso não lembra, ó Camões, homem. E ele era zarolho.
– O engenheiro é que me disse, na segunda-feira, lembra-se?
– Mas eu não sabia tudo o que se tinha passado e o doutor tem que ter discernimento! Tem que ler o ar dos tempos. Perceber até onde pode ir... – Sócrates calou-se e olhou para as mãos do causídico, o indicador e o dedo médio estavam amarelecidos do tabaco. – Ah… E outra! Mas que raio foi aquilo de se pôr a cravar cigarros?! A cravar cigarros?!
– Nem todos temos um amigo como o Santos Silva...
Sócrates fixou o advogado, com um olhar mortífero.
– Isso quer dizer exactamente o quê?
– Que se o engenheiro fumasse ele fornecia-lhe cigarros, só isso. Não tinha de os cravar.
– Ah… Estou a ver. Não tem graça.
O advogado baixou a cabeça e encolheu os ombros.
Sócrates recomeçou a falar, pensativo:
– Se calhar, o velho tem de cá vir outra vez…
– Olhe que ele já não está a ajudar, engenheiro, e nunca sabemos o que ele diz quando sai daqui.
– Pfff… Pelo menos, não se põe a cravar cigarros.
O advogado suspirou, encolheu os ombros e desviou:
– E afinal, vamos para os indícios? Para a posição privilegiada do Ministério Público e do Juiz de Instrução para só apresentarem o que lhes favorece; o que se enquadra na versão que querem fazer prevalecer?
– Sei lá… E o Costa?
– Não deve querer cá vir… Ele já da outra vez foi um caso sério para cá vir.
– Esse sacaninha! O gajo é que se ficou a rir. Com o Supremo e com a Relação. Mais do que os outros. Se eu saísse rebentava com isto tudo. Tudo! Agora assim…
– O importante é que ele ganhe. De preferência, com maioria.
– Não sei. Se ele ganha com maioria é gajo para virar o bico ao prego. O gajo é um sacaninha, doutor, oiça o que eu lhe digo. Tem de estar sempre a ser apertado. Sempre.
– O engenheiro aperta-o. E a sua rapaziada também. Isso não me preocupa muito. O que me preocupa é o agora, estas duas decisões vão provocar-lhe muitos danos…
– Danos?! Você viu os jornais de hoje? Não dizem quase nada! Os danos estão a ser contidos, o Acórdão da Relação foi abafado pelo Habeas Corpus e eu para a semana escrevo outra carta ou dou uma entrevista: o Ministério Público escreveu um romance. Um romance para me tramar.
– E o hino, engenheiro?
– O hino?
– Sim, aquele do “Sócrates sempre presente. José Sócrates sempre.” Mas que raio de cena é aquela?! Aquilo é macabro, engenheiro…
– Ah!... O hino! Deixe estar o hino. É ruído. Uma manobra de diversão. Temos de ir criando ruído de fundo, já lhe disse. Distracções. E aquilo saiu tão mau que não se conseguia fazer melhor.
– Lá isso é verdade. Em questões de ruído: quanto pior, melhor.
– Bem visto, meu caro, bem visto. E deixe-me que lhe diga: nessa perspectiva, o doutor também não vai nada mal. Nada mal.