quarta-feira, 31 de julho de 2013

Take a walk

A mulher mergulhou a colher na sopa e disse:
– Há uma universidade no Japão em que as mesas da cantina têm um separador no meio para que as pessoas que estão frente a frente nas mesas não se vejam. – O homem olhou para ela e arqueou as sobrancelhas: “E eu com isso?”. A mulher, antes de levar uma colher cheia de sopa à boca e engoli-la, esclareceu: – Se calhar era o que nós precisávamos. Uma mesa “forever alone”.
O homem pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos sobre o prato vazio, unindo as pontas dos dedos, levou as pontas dos indicadores à ponta do nariz e, no fim, olhando para a ponta da colher, perguntou, levantando a hirsuta sobrancelha esquerda (a direita, menos peluda, era mais recatada):
– O que é isso?!
A mulher, que mantinha a cabeça levantada como se estudasse o tecto, levou a mão direita à boca, onde introduziu o indicador e o polegar e puxou lentamente a colher, que reapareceu intacta mas vazia.
– Há quem o faça com espadas – disse a mulher.
O homem pensou que havia quem o fizesse com outras coisas mas não o disse, ao mesmo tempo que se imaginava como objecto daquele súbito e inesperado talento da mulher.
– Sabes o que era de valor? – Perguntou o homem, com maus modos, aborrecido por ter a certeza de que nunca estaria envolvido naquele número. A mulher, que voltara a introduzir parte da colher na sopa, acenou com a cabeça negativamente. O homem disse: – Que a colher viesse cheia quando saísse.
A mulher, procurando reter a resposta que lhe apetecia dar mas que não pretendia emitir, mordeu o lábio inferior e fixou-se no prato de sopa. O homem levantou-se, pegou no seu prato vazio, que não chegara a utilizar, e devolveu-o ao móvel da cozinha onde estavam os copos, o que fazia diariamente para afrontar a mulher.
– E a mesa? – perguntou a mulher.
– A mesa?
– Sim, a mesa “forever alone”.
– Nós não precisamos de uma mesa dessas – respondeu o homem. – Já comemos os dois a olhar para a parede.
– Tu não comes – disse a mulher.
– Às vezes, como – replicou o homem, num tom que insinuava um outro sentido para o verbo.
A mulher riu para si.
– Já ouviste uma música dos Passion Pit?
– Quem?
– Um grupo, Passion Pit.
– Não conheço.
– Take a walk.
– Take a walk?
– Sim, Take a walk. É o que deves fazer.
– Ah!
– Mas antes tiras o prato do sítio dos copos.
O homem, sorrindo satisfeito porque o seu acto fazia efeito, retorquiu:
– Tira tu os copos do sítio do meu prato.
A mulher levantou-se, pegou no seu prato de sopa vazio, com a colher lá dentro, olhou para o homem e explicou:
– Sabes, quando eu comecei a treinar o truque da colher fi-lo para outros fins. A minha ideia não era enfiar colheres pela garganta abaixo. – A mulher pousou o prato no lava-loiças. – Fi-lo para ti, ou melhor, fi-lo com o propósito de o vir a fazer contigo… – A mulher fez uma pausa e emendou, com um sorriso resignado e triste: – Fi-lo com o propósito de o vir a fazer em ti.
Junto à porta do móvel da cozinha onde estavam os copos arrumados e o seu prato desarrumado, o homem ouvia imóvel e em silêncio, sem saber o que responder.
A mulher aproximou-se dele e pediu-lhe licença com um gesto. Ele afastou-se.
– Mas isso nunca vai acontecer – continuou a mulher, abrindo a porta de onde estavam os copos e o prato. Tornou a sorrir, um sorriso ainda resignado mas menos triste. – Ou, pelo menos, não vai acontecer contigo.
O homem sentiu a frase como um murro na barriga, que lhe doeu fisicamente, que o fez encolher num acto reflexo e ficar mesmo com falta de ar.
A mulher viu-o encolher-se ligeiramente mas isso não lhe interessava e, certa do que queria fazer, ergueu o braço, esticou os dedos da mão que enfiou entre os copos e a madeira do móvel, pôs os dedos num ângulo de quase 90º em relação à palma da mão e puxou a mão e o braço para si evitando o prato em que não tocou e trouxe todos os copos de uma vez até ao fim da prateleira do móvel, fazendo com que se estatelassem com estrondo no chão da cozinha. Então, anunciou, com expressão de dever cumprido:
– Já tirei os copos do sítio do teu prato. – A mulher sorria enquanto saía da cozinha, com cuidado, evitando os pedaços maiores dos vidros e, junto à porta do apartamento, disse: – Vou fazer uma caminhada. A walk.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

12:55


Avançou para o espelho e observou-se. Cuidadoso, estudou os pormenores e, então, ajeitou ligeiramente o nó da gravata, alisou os colarinhos da camisa como se precisassem, conferiu a perfeita esquadria do risco do cabelo e o rigor milimétrico da barba aparada, passou a língua pelos lábios, humedecendo-os, e experimentou o seu melhor sorriso, verificando se se transmitia aos olhos ou se ficava pelos lábios. Queria sorrir completamente. Desejava do mais fundo de si que o sorriso se reflectisse em toda a sua expressão, em todo o seu ser; que todo ele desse a entender a alegria com que a via.
Satisfeito, fechou a porta do roupeiro onde estava o espelho e vestiu as calças, engomadas e vincadas com minuciosos cuidados, que tirou de um cabide de pé em madeira, que lhe guardava com formalismos de velho mordomo as calças, o casaco e, sobre um estrado de cinco finas ripas, os sapatos, lustrosos e brilhantes.
Enfiou a camisa nas calças e constatou a certeza com que fizera o nó da gravata, cuja ponta tocava ligeiramente no cinto. “A medida perfeita”, vangloriou-se. Alisou suavemente as pernas das calças junto aos bolsos, certificando-se, cautelosamente, que aqueles estavam completamente estendidos e não provocavam quaisquer inestéticas rugas visíveis.
Baixou-se para pegar nos sapatos, tão formais como o cabide, pegou na calçadeira de prata que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira e sentou-se no sofá junto à cama para se calçar. Ajeitou-se, prevenindo a formação de vincos, e dobrou-se para iniciar a operação.
Em pé, sem recorrer ao espelho, tornou a conferir o perfeito alinhamento e bem posta rigidez das calças, da camisa e da gravata. Não sorriu mas, sentindo-se pronto e animado, esfregou as mãos uma na outra.
– Boa tarde – disse, para ouvir a sua própria voz, para a modular, para lhe ajustar o volume. – Boa tarde – repetiu, fazendo uma pequena vénia com a cabeça. – Boa tarde – voltou a dizer, enquanto desmiolava o casaco, separando-o do elegante cabide de ombros largos, bisando a vénia a que acrescentou o sorriso que treinara ao espelho. – Boa tarde.
Vestiu o casaco, sem levantar os braços, fechou o primeiro e segundo botões, deixando o terceiro propositadamente fora da sua casa, e abriu a porta do meio do roupeiro, para uma última análise ao espelho.
– Boa tarde – ensaiou, pela última vez, com uma subtil e delicada vénia e um sorriso discreto mas luminoso.
Fechou a porta do roupeiro com um suspiro, apesar de tudo receoso, e caminhou batendo os pés, tanto para os aquecer como para afastar o sentimento incómodo de dúvida que lhe embaciava o olhar, condicionava a postura e lhe toldaria a voz se permanecesse.
Olhou para o relógio: 12:55.
“Está na hora” pensou, sentindo formar-se um nó na garganta. Engoliu em seco. Ajeitou a franja com a mão esquerda. Passou a mesma mão pela barba como se a conseguisse alisar, aprimorou o nó da gravata e, confiante, dirigiu-se à porta da rua, passando pela cozinha. Seguiu um trajecto repetido diariamente, com passos certos, contados e cronometrados, sem pausas, até parar junto da porta da rua, que não abriu, à espera.
Ouviu a carrinha subir o passeio e imobilizar-se, depois uma porta abrir e fechar-se. Não evitou um sorriso ligeiro quando reconheceu o som dos passos, curtos e rápidos mas elegantemente compassados, dirigindo-se primeiro até à porta traseira da carrinha, que ouviu abrir e, depois, aproximando-se da sua porta. Ergueu as sobrancelhas num tique nervoso e abriu a porta.
Olharam-se, ela sorria radiosamente, tal como ele antevira, e ele abriu o seu sorriso, já não o ensaiado mas o espontâneo, que lhe rejuvenescia a face, a expressão, o corpo. Compenetrado, fez a sua ligeira vénia enquanto a cumprimentava com o seu mais caloroso tom de voz que, por mais que tentasse, nunca conseguiria repetir em frente ao espelho:
– Boa tarde, menina.
– Boa tarde, senhor Faria – respondeu ela. – Não sei como é que arranja isso mas o senhor está cada dia mais bonito.
Ele sorriu como um menino tímido, agradeceu com nova vénia e passou-lhe o estojo com as três marmitas vazias recebendo em troca as cheias com a sopa, o almoço e o jantar.
– Até amanhã, senhor Faria. – A funcionária que distribuía as refeições ao domicílio piscou-lhe o olho. – Amanhã à mesma hora, não se esqueça.
– Doze e cinquenta e cinco!
– Nem mais. Até amanhã!
– Até amanhã, menina.
11/2/2008

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Selvagens

Com a desenvoltura dos actos diariamente repetidos, Aníbal atou mecanicamente o atilho das calças de pijama brancas e azuis às riscas verticais, deixando os dois laços perfeitamente simétricos. Satisfeito, sentou-se na cama para descalçar os chinelos, que alinhou perfeitamente entre si, com a cama e com a mesa-de-cabeceira. Olhou o relógio na mesa da cabeceira com apreensão, agarrou-0 com decisão e deslocou-o ligeiramente sobre o tampo da mesa-de-cabeceira até o colocar exactamente onde queria e pousou-o aí. Pôs-se de pé, levantou o lençol, tendo o cuidado de não destapar a mulher, sorriu-lhe e deitou-se. Deitado de barriga para cima, com as mãos juntas e arrumadas em cima do peito, Aníbal desejou boa noite a Maria, suspirou e fechou os olhos pronto para dormir.
Maria, que lhe respondera ao sorriso com um esgar inclassificável e ao “boa noite” com um resmungo, ficou calada sentindo a pressão crescer dentro de si, esperando, sem preferência, que ela se desvanecesse ou que explodisse. Explodiu:
– Boa noite?! – Maria sentou-se na cama como se se tivesse accionado uma mola na base da sua coluna vertebral. – Boa noite, Aníbal?!
Os olhos de Aníbal, escondidos pelas pálpebras que não abriu, moveram-se para a direita e para esquerda enquanto tentava adivinhar a razão da mulher. Sem ideias, engoliu em seco, abriu os olhos e sorriu com o seu ar mais inocente. Lembrou-se do bolo-rei que uma vez usara como desculpa para não falar e teve pena que não pudesse ser Natal todos os dias.
Se o olhar causasse danos indemnizáveis, o de Maria custar-lhe-ia muito caro e Aníbal ficaria com massa para poder comer bolo-rei até ao fim da vida.
– O que foi? – Inquiriu Aníbal, procurando na televisão uma pista para a fúria quase assassina da mulher, sem resultados. Num instante ponderou várias hipóteses: ela não tinha gostado nada do discurso; e ainda menos da solução que ele apresentou – “Qual solução, Aníbal? Achas que isto é alguma solução?!”, dissera-lhe quando ele lhe confidenciara o que pensava fazer –; nem da viagem às Selvagens; nem de ser quarta-feira e estarmos todos na mesma; nem…
– O que foi?! – Repetiu Maria, abanando a cabeça e mostrando-lhe uma careta de profunda desilusão.
– Foi o Portas? – Aníbal arriscou. – Fez mais alguma?
– Qual Portas, qual carapuça – disparou Maria, furiosa. – Foste tu!
– Eu?! O que é que eu fiz?
– Pouco – Maria deu uma gargalhada – ou nada mesmo, ainda que estranhamente esteja a resultar.
Aníbal olhava-a perplexo à espera de ser elucidado, sabendo que o "pouco ou nada" tinha que ver com o seu discurso mas que não era disso que ela o acusava agora. O “pouco ou nada mesmo” fora só uma farpa para o irritar. “A questão principal é outra”, suspirou Aníbal, à espera que a mulher acabasse de achar graça à sua própria piada, distraindo-se a olhar para as suas mãos ainda arrumadas sobre o peito e para os seus os braços nus, envelhecidos e secos de carnes.
– Ah! – sussurrou Aníbal. Então, levantou o tronco e fitou a mulher nos olhos. Descobrira. Maria parou de rir e encarou-o, ligeiramente divertida. Com ar sério e grave, Aníbal baixou a cabeça fixando-se na camisola branca de cavas e, depois, virou-a lentamente para o braço direito e para o braço esquerdo sinalizando a falta de mangas. Qualquer tipo de mangas. Então, ainda sério e grave mas forçando-se a um certo ar de inconsequente rebeldia, Aníbal levantou a cabeça e tornou a cruzar o olhar com o de Maria.
– É a camisola, não é? – Perguntou Aníbal, prolongando a interrogação com um longo suspiro. Maria confirmou com um simples aceno de cabeça. – Estamos na Madeira, Maria – justificou Aníbal.
Maria encolheu os ombros: – Não estamos em Boliqueime, pois não?
Aníbal cerrou os lábios e expirou ruidosamente pelo nariz, levantou-se e foi tirar a camisola de alças e vestir o casaco de pijama.
– E vamos às Selvagens – disse Maria, enquanto o marido abotoava o pijama. Ele olhou para ela, que concluiu, sorridente: – Vamos às Selvagens, Aníbal, ainda não vamos para selvagens.
Devidamente trajado, Aníbal tornou a deitar-se.
Antes de apagar a luz, Maria sorriu-lhe, desejou-lhe “Boa noite, senhor Presidente” e deu-lhe um beijo na boca.