terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O Secretariado

A reunião decorria numa sonolenta unanimidade e a caminhar para o fim quando Galamba pediu a palavra e afirmou, enfático:
– Há outro caminho, camaradas…
– O caminho da floresta… – sussurrou Patrão, gutural e com sotaque brasileiro. Ao que se ouviram risinhos abafados entre os mais velhos.
Galamba lançou-lhe um olhar homicida e recomeçou:
– Há outro caminho, camaradas, há um caminho de intervenção, de subversão, de instigação. Retomar o protesto. Refazer a história. Recuperar o passado. Devemos reabrir o nosso próprio caminho. Criar esperança. Abrir perspectivas de futuro… – Galamba olhou directamente para Costa. – Não me parece que seja suficiente fazer-se de morto. O nosso caminho…
Costa devolveu-lhe um olhar enfadado e suspirou ruidosamente.
– Acho que não devemos fechar-nos a outros caminhos, camaradas – concluiu apressadamente Galamba e calou-se.
Costa respirou fundo, conferiu as horas no relógio de pulso de Medina, que estava sentado à sua direita, e perguntou, virando-se para o secretário da reunião:
– Está tudo, não está?
O secretário passou rapidamente os olhos pela ordem de trabalhos, confirmou que colocara vistos em todos os pontos e respondeu afirmativamente.
Costa agradeceu com um sorriso torto e, tornando a encarar os participantes, perguntou:
– Alguém tem mais alguma coisa a acrescentar?
– E o engenheiro? – Perguntou uma voz, num estilo teatral.
– O engenheiro… – Costa seguiu os olhares para perceber quem lançara a desagradável atoarda. Os olhares desaguavam em Pinto, que mantinha, sem dificuldade, um sorriso apalermado e irritante. Surpreendido, Costa hesitou e, arriscando no que lhe pareceu o ar provocatório mas vazio que autor da pergunta mantinha, decidiu-se por um tom casual e um meio sorriso: – O que é que tem o engenheiro?
Pinto pousou o cotovelo direito na mesa, segurou e afagou o queixo com a mão, olhou em volta com ar sério e grave e respondeu com uma pergunta:
– Quem é que lá vai para a semana?
Bacelar deu uma gargalhada e bateu com a mão no braço de Pint0.
– Tu és um ponto, pá, um ponto.
Toda a mesa se juntou à gargalhada.
Todo sorrisos, Costa olhou interrogativamente para o secretário, que lhe acenou positivamente com a cabeça, e então levantou-se, pôs-se sério, levou a mão ao queixo e, imitando os restantes trejeitos e o tom grave de Pinto, anunciou:
– Essa vertente da situação do nosso amado ex-secretário-geral está controlada: a nova escala já está pronta. – Costa fez sinal com a mão para os que estavam ao redor da mesa se levantassem, pondo fim à reunião, e, já sem imitar Pinto, a quem lançou um último olhar de esguelha, determinou: – A escala será comunicada como até aqui. E toda a operação mantém os mesmos moldes. Boa noite a todos.


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Aviso

“Depois, não digas que não te avisei.”
A frase, sibilina e feroz, não lhe saía da cabeça.
“Depois, não digas que não te avisei.”
Ouvia-a para si no timbre e no tom em que a ouvira e, sem outros pormenores da expressão de quem lha dissera, lembrava-se de sentir um olhar duro, quase maléfico, e no entanto ligeiramente trocista, que a fitava a acompanhar a frase.
“Depois, não digas que não te avisei.”
“Avisaste e depois?”, perguntou-se, tentando ultrapassar a frase. “Avisaste como se quisesses que acontecesse. Mais do que desconfiares ou saberes que ia acontecer, querias que acontecesse! Querias ter razão.”
“Depois, não digas que não te avisei.”
“Querias poder dizer que me avisaste. Que já sabias. Provavelmente vais-me dizer que preferias estar errada. Que esperavas não ter razão. Mas o teu olhar não era esse. Querias. Não sabias, nem te interessavas; querias. Querias ter razão.”
“Depois, não digas que não te avisei.”
“E tens. Tens razão e não te posso dizer que não me avisaste… E depois? O que é que eu faço com isso? Com a tua razão profética e com o meu desgosto anunciado? De que me serviu o aviso? De que me serviria o aviso?”
“Depois, não digas que não te avisei.”
“Avisaste e depois? Avisaste... E se o teu aviso inquinou tudo? Se o teu aviso me condicionou e nos encaminhou inexoravelmente para a sua concretização? Se foi a tua profecia que estabeleceu os fundamentos e abriu o caminho para a sua realização?”
“Depois, não digas que eu não te avisei.”
– Está descansada, não digo. Não vou dizer.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Da implantação de uma república

Ela olhou para ele com tristeza. Ele devolveu-lhe um sorriso mais comprometido do que triste.
– Nunca percebi – começou ela, pausadamente, escolhendo as palavras e proferindo-as com uma certa solenidade defensiva. – Nunca percebi como é que deixaste de ser o rei…
– O rei, eu?! Rei de quê? – Ainda que soubesse que ela se ia explicar, ele interrompeu-a porque precisava de falar, de dizer alguma coisa; de se ouvir.
Ela sorriu com o mesmo ar triste mas um pouco mais desconsolado.
– E também nunca percebi isso – replicou ela, com um brilho decidido no olhar –, essa necessidade de me interromperes; de não esperares que as coisas sejam ditas. De quereres controlar o conteúdo e o ritmo das conversas.
Ele olhou para ela e não disse nada só para a contrariar.
Ela continuou:
– Se não me interrompesses e me ouvisses, ias perceber de que eras rei e do que estava eu a falar e depois, já nem digo no fim, depois de teres percebido isso…
– Foi só uma pergunta.
Ela assinalou a interrupção com uma careta e concluiu:
– É sempre só uma pergunta ou um comentário, como agora, mas a verdade é que não me deixas seguir com os meus raciocínios até ao fim: e isso é… – ela fez uma pausa para escolher a palavra.
– Chato – sugeriu ele, antecipando-se sem, sequer, um sorriso.
Ela olhou-o, abanou a cabeça e, após um longo e sentido suspiro, declarou:
– Horrível. Isso é horrível.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Segunda-feira de manhã

A aguardente queimou-lhe a língua, o céu-da-boca, a garganta, o esófago e, por fim, a úlcera. O homem fez uma careta de sacrifício e dor desde que levou o copo aos lábios até que sentiu um sabor ácido e doentio encher-lhe a boca.
– Sem tirar, nem pôr – disse alto, ainda que falasse só para si, depois de soprar e pousar o copo vazio no balcão.
O empregado olhou-o com ar desconfiado e nada amistoso mas, em silêncio e com outro ar, mostrou-lhe a garrafa como se desejasse prolongar o momento.
O homem abanou a cabeça negativamente e empurrou a nota que já colocara no balcão.
O empregado pegou nos cinco euros, arrumou a garrafa de aguardente numa prateleira de vidro ao lado da máquina de café, fez o troco, que pôs junto ao copo vazio e perguntou:
– É boa, não é?
O homem, de sobrancelhas subitamente arqueadas e com as moedas na mão a levitar acima do balcão, olhou sofregamente em volta.
– A aguardente – esclareceu o empregado, com um sorriso aparvalhado. – A aguardente é boa. É caseira. Lá de cima.
O homem olhou para o copo, para o tecto, para o empregado, para quem encolheu ostensivamente os ombros, e saiu.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

A polícia cercara-os e os dois homens faziam as suas preces prontos a morrer como mártires quando tiveram ambos uma dúvida que lhes toldou a até aí animada perspectiva da morte. Remoíam na súbita e perplexa incerteza quando, sem que sentissem fisicamente o que quer que fosse, se viram na presença do profeta.
Entreolharam-se assustados, o profeta – eles sabiam que era ele que estava à sua frente – parecia uma caricatura; ou melhor, petrificados de espanto, ambos concluíram que a figura do profeta era a de uma das caricaturas.
– Vocês nunca me viram, não sei qual é o espanto – resmungou o profeta, olhando-os com desprezo. Os homens baixaram os olhos, lembrando-se que não podiam olhar para ele. O profeta ia-lhes dizer que o podiam olhar mas limitou-se a encolher os ombros.
– Foi por vós – disse o mais baixo dos homens, depois de se ajoelhar e prostrar-se ritualmente. O irmão imitou-o. – Foi tudo por vós.
– E alguém lhes pediu? – vociferou o profeta, mal-disposto. – Alguém lhes encomendou alguma coisa ou lhes passou alguma procuração?!
– Morremos? – Perguntou o irmão. – Estamos mortos?
– Não, a morte não é isto.
– Foi por vós – repetiram os homens, com as vozes abafadas pela proximidade do chão. – Fizemo-lo por vós. Vingámo-lo!
– Têm-me em muito pouca consideração. Muito pouca. – O profeta suspirou ruidosamente. – Pobre profeta, pobre Deus, pobre qualquer um, que precisasse de tipos como vós para o que quer que fosse… O que quer que fosse. Vocês cansam-me… Doem-me. – Os homens viam-lhe os pés, que se viraram e se começaram a afastar lentamente. – Ah… – Os pés pararam. O profeta rodou sobre os calcanhares, virando-se para os homens, baixou-se para que eles o encarassem e, então, anunciou-lhes: – E para que saibam, se é que não perceberam pela figura em que me vêem: Je suis Charlie.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Reis

– E agora?
– Agora, o quê?
– Vamos embora?
– Sim… Acho que sim. Estamos despachados.
– Pois… mas parece-me que falta qualquer coisa.
– Um camelo?
– Roubaram-te um camelo, Gaspar?
– Não, não me roubaram camelo nenhum.
– Já os contaste?
– Não mas…
– Então, pode-te faltar um camelo, bro!
– Pode mas isso não interessa nada, Baltazar. Eu não estava a falar de bens materiais.
– Mesmo que seja o Bobi?
– Mesmo que seja o Bobi, o quê?
– Não te interessa nada mesmo que seja o Bobi que te tenham roubado?
– Tipo, roubaram-lhe o Bobi?
– Não, Baltazar, não me roubaram o Bobi.
– Mas viste-o? Viste-o?
– Eu vi-O. Vi-O… Vi-0 e dei-lhe um frasco de incenso.
– Eu estava a falar do Bobi.
– Claro que não vi o Bobi, pá, se estamos a sair daqui agora.
– Então não sabes se to roubaram…
– Não, não sei, Belchior.
– E?
– E, sim, Belchior, importava-me muito que me roubassem o Bobi.
– Ah!... Estás a ver. Não sei porque é que reprimes os teus sentimentos, Gaspar. É claro que te importavas se te roubassem o Bobi.
– Mas, afinal, tipo, roubaram-lhe o Bobi ou não?
– Não sabemos, Baltazar, mas não é isso que está em causa.
– Nã0?
– Não, o que está em causa é que cumprimos a nossa missão e, no entanto, o Gaspar sente que lhe falta qualquer coisa. Qualquer coisa que ele não sabe ou não consegue expressar.
– Cuecas?
– Cuecas?! Porquê cuecas, Baltazar?
– Tipo, a mim é o que me falta, mas se vocês não puxassem a conversa eu também não tinha coragem de me expressar. Estou todo assado mas parecia-me que não era o sítio e o momento para falar disso, estão a ver?... No entanto, a mim é o que me falta. Vocês, por acaso, ainda têm algumas?
– Eu não uso. Enrolam-se todas quando ando de camelo.
– E tu, Gaspar, bro?
– Eu tenho dois pares lavados.
– Tens?! Além das que tens vestidas?
– Sim.
– Mano!... Emprestas-me umas?
– Lavas?
– Lavas?
– Se as lavas depois de as usares.
– Às cuecas?!
– Sim, o que havia de ser?
– Não. As cuecas não se lavam. Isso é, tipo, nojento. Quem é que usa cuecas usadas?
– Eu, depois de as lavar.
– Blargh!.. As cuecas usam-se um mês ou dois e depois deitam-se fora. Ninguém lava cuecas, mano. Isso é contrário a todos os mandamentos. Todos.
– É preferível andar com as túnicas ca… encardidas?
– Claro que sim, cagadas mesmo. Agora cuecas lavadas, bacano?... Não estás bem a ver… Isso é qualquer coisa para lá de tudo o que se conhece e aceita, meu.
– Desculpem lá, podemos passar à frente e esquecer as cuecas? É que o carpinteiro ainda está ali a olhar para nós. Vamos andando. Já vimos isso ali à frente.
– Tipo, eu não quero ver nada.
– Digam adeus.
– Adeusinho, José! Vida longa e próspera para o Emanuel.
– Obrigado. Obrigado por terem vindo. A Maria depois escreve-vos a dar notícias.
– Adeus, bacano. Muita sorte para o pequeno!