segunda-feira, 10 de outubro de 2016

às voltas

Voltar a escrever, escreveu.
Voltar a escrever, repetiu.
– Porque não começas um diálogo e deixas a coisa fluir? – perguntou uma personagem.
Ele inspirou pelo nariz e abanou a cabeça: queria outra coisa mas não sabia o quê.
A personagem encolheu os ombros e não insistiu; na realidade, não tinha nada para dizer.
– Mas isso verifica-se em, pelo menos, oitenta por cento das vezes e, no entanto, as personagens falam, os narradores escrevem, as pessoas lêem – declarou uma voz.
Ele olhou em volta, a frase soou-lhe como se estivesse a ser dita junto a si. Não gostou.
– Oitenta por cento… – a voz interrompeu-se para soltar um riso trocista. – Quem nos dera… Pelo que se pode ler aqui cem por cento e é porque não pode ser mais.
– As personagens reflectem a realidade – resmungou a personagem.
– Entroncamentos sem fim – disse a voz.
– Isso são rotundas.
– Não, isso é poesia – corrigiu a voz, sarcástica. – Rotundas são rotundas, entroncamentos sem fim é outra coisa qualquer. É o sonho, a fantasia…
Riram. A voz e a personagem riram. Ele não. Não era isto que queria escrever. Não queria voltar a escrever para escrever isto.
– Não escreva – ditou a voz.
– Sim, não escrevas – concordou a personagem.
– Os narradores são muito esquisitos – opinou a voz. A personagem abanou bovinamente a cabeça para cima e para baixo.
– Estava implícito – disse a personagem, num tom ácido. – Se eu abanei bovinamente era porque estava a concordar, se estava a concordar só podia abanar de cima para baixo.
– Aliás, se pensarmos bem – intrometeu-se a voz, cheia de si –, os bovinos não abanam a cabeça na horizontal, só na vertical.
– Achas? – duvidou a personagem.
– Eles têm um olho de cada lado, para que precisam de virar cabeça?
– Abanar.
– É a mesma coisa – replicou a voz. – Como têm um olho de cada lado, se abanassem a cabeça na horizontal perdiam a noção das coisas. Voluntariamente, os bovinos só abanam a cabeça para cima e para baixo.
– E involuntariamente?
– Abanam para todo o lado.
Riram à gargalhada.
– Cem por cento – disse a personagem, eufórica.
– Cem por cento – repetiu a voz, com um brilho no tom. – Não se aproveita nada.
– E a culpa não é nossa – exclamou a personagem, contentíssima.
– Não, a culpa é deste narrador da treta enfiado num entroncamento sem fim que quer voltar a escrever sem saber o quê.
– Esses são os piores.
– Os piores – apoiou a voz.