quarta-feira, 30 de abril de 2014

Rapariga com gatinho e um casal a olhar

Bruce Davidson, UK. London. 1960. Girl with kitten and couple looking on.
“É um absurdo”, censurou-se Bruno, encolhendo o braço e afastando a mão da fotografia. Cerrou os lábios, expirou pelo nariz e fixou-se no tampo da mesa como se o facto de o fazer o ajudasse. “Isto ainda é mais parvo”, reconheceu, voltando a fixar-se na cara da rapariga que segurava o gato. Suspirou e virou costas à mesa.
– Porque é que imprimiste isto? – Ouviu-se perguntar, enquanto olhava para a nuca de Laura, sentada no sofá à sua frente.
A mulher olhou para trás para o ver mas voltou-se de imediato para a televisão sem lhe responder.
– Laura – chamou Bruno. – Não ouviste?
A mulher parou a imagem da televisão e tornou a virar-se para trás.
– Não percebi, desculpa.
– Olhaste para mim.
– Pois olhei – anuiu a mulher, com um ligeiro sorriso – mas estava noutra. O que é que me perguntaste?
– Porque é que imprimiste esta fotografia? – Ele apontou displicentemente para a fotografia em cima da mesa, quase sem se virar.
– Não gostas? – Laura levantou-se, franzindo quase imperceptivelmente as sobrancelhas mas abrindo o sorriso. Bruno viu as sobrancelhas e quase não viu o sorriso. Laura pôs-se ao lado dele e pegou na fotografia. – Não gostas? – repetiu.
O homem encolheu os ombros.
– Tu tens aquela dos carros – disse Laura, num tom defensivo.
– Essa é um original – alegou ele. – É do Blaufuks.
– Esta é do Bruce Davidson…
– Mas essa é uma cópia tirada da Internet.
– E achas que isso é relevante?
– Claro que é – mentiu ele, com convicção.
– Mas não gostas? – insistiu a mulher.
– Não é isso que está em causa – tergiversou Bruno.
– Não? – Laura olhou para a fotografia que ainda tinha na mão. – Então, o que é que está em causa?
O homem deu um passo para o lado, afastando-se da mulher e da fotografia.
– O que está em causa é o que lhe vais fazer – disse ele, aproveitando a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
– Estava a pensar emoldurá-la e pô-la naquela parede – explicou ela, apontando para a parede ao pé da estante dos livros dele.
– Não gosto – declarou Bruno, abanando a cabeça na horizontal.
– Que eu a ponha ali?
– Não. Não gosto da fotografia. – Bruno baixou os olhos para a fotografia. – É triste. – Laura observava-o com espanto. Ele continuou num tom peremptório: – Chateia-me. Não gosto das expressões. Aborrecem-me.
– Nem da do gato? – interrompeu Laura.
– Não, nem da do gato… – Bruno levantou a cabeça e fixou-a nos olhos. – Essa fotografia perturba-me, Laura, e faz-me ficar mal disposto.
Laura tornou a olhar para a fotografia.
– Mas parece que sou atraído por ela – murmurou Bruno. – É um absurdo.
– É o Kid A dos Radiohead em versão fotografia – gracejou Laura, que bem conhecia os efeitos do disco no humor do marido. Bruno sorriu e concordou com um aceno. Laura respondeu-lhe com um sorriso e um encolher de ombros e pousou a fotografia virada para baixo em cima da mesa. – Podias ter dito isso logo no princípio. – Deu-lhe um beijo na face, chamou-lhe – Parvo – e voltou para o sofá para acabar de ver o filme.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A Boina

– Minha senhora! Minha senhora... O senhor doutor quer uma boina, minha senhora.
– Uma boina?
– Sim, o senhor doutor pediu-me para lhe ir buscar uma boina.
– Para quê?
– Acho que é para levar para a rua, minha senhora. Para as comemorações...
– Uma boina?!
– Eu também estranhei, minha senhora, mas ele disse que quer uma boina. Uma boina preta.
– Preta?
– E que não seja nova.
– Não seja nova?
– Tem de ter ar de já ter sido usada, minha senhora.
– Ele disse isso?
– Foi.
– Mas vai levá-la na cabeça?
– Acho que sim, minha senhora. Normalmente é o que se faz às boinas.
– Eu não estou a achar graça, Joana.
– Desculpe, minha senhora. Eu também não estou. Olhe que eu até disse ao senhor doutor que achava que não havia nenhuma boina cá em casa e que tinha de vir perguntar à senhora.
– E ele?
– Ele disse que havia. “Olha que há, Joana, olha que há”, disse o senhor doutor.
– Disse isso, assim?
– Foi. E disse para eu procurar na gaveta…
– Qual gaveta?
– Na que ele enfiou o socialismo há uns anos.
– Estás a brincar.
– Não, minha senhora, não estou. O senhor doutor disse mesmo para eu ir procurar na gaveta onde ele enfiou o socialismo em 78.
– Diz-lhe que tem traça.
– O socialismo?
– A boina, mulher, a boina!
– Ah… Mas olhe que o senhor doutor foi à procura nos armários dos presentes.
– E há lá boinas?
– Há, minha senhora, há lá mais do que uma.
– Isso é que é pior!
– Até há umas com uma estrela, como a do Che…
– Não me digas…
– Digo, digo. Há lá duas ou três.
– Uma boina à Che… Isso é que havia de ser bonito… Uma boina à Che…
– É quase só o que lhe falta fazer…
– Diz?
– Nada, minha senhora, nada. Estava a dizer que era só o que faltava… O senhor doutor com uma boina à Che, no Carmo, a comemorar o 25 de Abril!... Onde é que isso já se viu!
– Nem se vai ver, Joana. Nem se vai ver! E vai lá ter com ele, que eu vou dizer à Maria para me ir buscar um boné preto. Vai já, antes que ele descubra alguma boina dessas. Diz-lhe que já falaste comigo e que eu já estou a tratar do assunto.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Abril em Portugal

– António! António! – gritou Maria da Conceição, entrando esbaforida no quarto do filho.
Estremunhado, António ouviu ao longe os gritos da mãe e viu passar o vulto em passinhos rápidos mas só acordou definitivamente com a mistura do barulho do estore a subir e a luz da manhã a entrar.
– Que horas são?! – guinchou António em pânico, certo de que estava atrasado para a entrevista que lhe havia de confirmar o emprego no Ministério.
A mãe em silêncio ficou a olhar pelas vidraças da janela, persignando-se compulsivamente.
– O que é? – perguntou António, mais calmo, depois de ter conferido com alivio no despertador da mesa de cabeceira que não estava atrasado mas inquieto com a fúria maníaca que a mãe aplicava ao fazer o sinal da cruz. – O que foi, mãe? O que aconteceu?
– É a tropa, Toni – sussurrou a mãe. – É a tropa.
– A tropa? – duvidou o filho, sentando-se na cama.
– A tropa – repetiu Maria da Conceição. – Diz que é um movimento…
– Um movimento de tropas? – interrompeu o filho, levantando-se da cama.
– Um movimento das Forças Armadas – respondeu a mãe, repetindo o que ouvira. – Foi o que disseram na rádio, às um quarto para as sete e agora às sete e meia…
– E a mãe não me acordou? – queixou-se António, empurrando a mãe para ver os militares na rua.
– Eu não estava a perceber nada… Sabia lá o que se estava a passar!
– E agora?
– Agora continuo sem perceber… – confessou Maria da Conceição, persignando-se a intervalos regulares.
– Não é isso – disse António. – O que é que está a dar na rádio?
– Musica.
– Musica?!
– Musica.
– Bolas!... Estou tramado!... E agora como é que eu chego ao ministério? 
– Já viste que eles têm metralhadoras... – comentou a mãe, sem o ouvir.
– Mas o que é que disseram na rádio? – perguntou António, depois de acenar que sim, que via que eles tinham metralhadoras, o que não o animava, enquanto ia à mesa de cabeceira desligar o barulhento despertador que começara a tocar.
– Que as Forças Armadas querem libertar o país mas que não querem derramamento de sangue…
– Derramamento de sangue?!
– Foi o que disseram – respondeu Maria da Conceição, acenando para a rua por detrás da vidraça. – E, às sete e meia, pediram para a população se manter calma e que se recolha nas suas residências.
– Mas eu tenho a entrevista no Ministério – protestou António, de costas para a mãe.
– Não me parece – declarou Maria da Conceição, abrindo a janela.
O filho virou-se e, espantado, viu a mãe a acenar para a rua.
– O que está a fazer?! – gritou, assustado.
– O soldado estava a dizer-me adeus – disse a mãe, sem parar os acenos. – São simpáticos… E já vem gente atrás deles – informou com crescente animação. – Isto é mas é uma revolução, Toni. Uma revolução!
António sentou-se na cama, pousou os cotovelos nos joelhos, enfiou os dedos no cabelo despenteado e suspirou, desanimado:
– Uma revolução… Uma revolução, logo hoje… Bolas! Uma revolução... Não a podiam fazer para a semana?!
– Queres que pergunte? – troçou a mãe, já empoleirada na janela, virando a cabeça para dentro mas sem deixar de acenar aos militares e aos populares que os seguiam. – Queres que lhes peça para parar? 
2010