terça-feira, 29 de julho de 2014

Que esteja a ferver em Cabo Verde

– Há um ano que não temos relações – anuncia a mulher. Ao seu lado, o homem abana a cabeça, olha-me e sorri, um sorriso bovino, sem conteúdo.
– Foi nas férias, em Porto Santo, lembras-te? – pergunta o homem, ainda a sorrir mas com a expressão de quem pensa nisso todos os dias.
A mulher encolhe os ombros, olha para mim e depois para ele, com ar enjoado, e responde-lhe, displicente:
– É capaz…
– Um ano, vinte e um dias… – diz o homem que, após uma pausa para olhar para o relógio de pulso, completa: – Um ano, vinte e um dias e trinta e oito minutos.
A mulher torna a encolher os ombros mas agita a cabeça, concordando com a estimativa.
– Não é uma estimativa – corrige o homem. – É exactamente o tempo que passou desde que saí de dentro dela.
A mulher acena a cabeça com vigor, apoiando-o.
Respiro fundo e penso no que dizer pois eles calaram-se e olham-me como se esperassem um comentário qualquer. Sem saber o que dizer, repito:
– Um ano, vinte e um dias e… – interrompo-me para olhar para o meu relógio de pulso.
– E trinta e nove minutos – conclui o homem, com um ar de quem sabe do que está a falar.
– E trinta e nove minutos – repito como se fizesse diferença.
– Faz diferença – censura o homem, que se vira para a mulher e lhe pergunta: – Não achas que faz diferença?
A mulher suspira:
– Muita diferença.
– E este ano vamos de férias para Cabo Verde – diz o homem, com um sorriso radioso, na expectativa dos amanhãs que cantam. – O voo é agora às onze horas.
Eu abano a cabeça sem saber o que dizer. São quase nove horas e estamos a chegar ao aeroporto.
– Só espero que não esteja muito calor – avisa a mulher, virando-se para ele. – Sabes que eu não gosto de foder com muito calor…
– Nem eu – diz ele, que olha para mim e pergunta: – Ninguém gosta de o fazer com muito calor, pois não?
Abano a cabeça em silêncio – “Acho que não” – e aproveito o sinal vermelho à entrada da Rotunda do Relógio, que me obriga a parar o táxi, para os ver pelo espelho retrovisor: têm cerca de trinta anos, normais e aparentemente saudáveis; a mulher é bonita mas ligeiramente afectada e ele tem estilo, veste roupas de marca mas com um ar excessivamente cuidado.
Cismo no “um ano, vinte e um dias e…”, olho para o relógio no tablier, “quarenta e um minutos” e não consigo conter a curiosidade:
– Os senhores desculpem mas têm estado separados?
A mulher olha-me como se nunca me tivesse visto.
O homem fulmina-me a nuca.
– O senhor taxista é muito curioso, não acha? – Reprova o homem, cruzando o olhar com o meu no espelho. O sinal muda, arranco e olho em frente. Ele continua no mesmo tom: – O que tem o senhor que ver com isso?
“Nada, na verdade, não tenho nada que ver com isso”, penso, arrependido de ter perguntado.
– Nada – reconheço. – Não tenho nada que ver com isso. Desculpem.
Paro o táxi.
– Chegámos – informo, carregando no taxímetro. 
– E o título? – Pergunta, ácida, a mulher.
– Sim, e o título? – Apoia o homem. – “Que esteja a ferver em Cabo Verde”?
 O homem paga-me e eu dou-lhe o troco.
– O texto é meu, o título sou eu que escolho.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Na Feira Medieval

– Ó Seixas, tu tens a certeza que isto é boa ideia?
– Boa ideia?!
– Sim, achas que isto tem alguma graça?
– Ó Araújo, porra! Isto é espectáculo, pá! Um isto faz um vistão do caraças!
– Não sei… Acho isto tudo um bocado apertado, demasiado frágil e, ainda por cima, cheira mal que tresanda.
– Ah… isso! Isso foi ideia do Maia, é das peles!
– Das peles?! Desde quando é que o Cavalo de Tróia tem peles?
– Sabes lá!
– Sei. Não tinha. Eu vi o filme.
– Isto não é um filme, pá. Isto é a história em movimento...
– Mas o Cavalo de Tróia...
– Isto também não é o Cavalo de Tróia, pá, deixa-te de picuinhices! Nós estamos a recriar a Idade Média…
– Eu sei mas o princípio disto é o do Cavalo de Tróia. Ouve lá, mas as peles não são curtidas?
– Curtidas?
– Secas e tratadas… Isto parece que está tudo ainda a pingar sangue e vísceras e sei lá o quê… Está tudo húmido.
– É para não arderem.
– Para não arderem?!
– Sim, o Maia diz que viu isso no Canal História. As peles dos animais antes de serem curtidas custam muito mais a arder.
– Mas porque é que isto devia arder?
– Os gajos podem deitar o fogo a isto.
– Desculpa?!
– Eu não desculpo.
– O quê?!
– Estou a dizer que se deitarem o fogo a isto eu não desculpo.
– Ah… Mas alguém vai deitar o fogo a isto?!
– Os gajos podem tentar.
– Quais gajos?
– Os inimigos, pá. Isto não é uma guerra?
– Não.
– Não?
– Não, isto é uma recriação histórica.
– Sim, uma recriação histórica de uma guerra medieval.
– Essa é outra: se isto é uma guerra medieval porque raio vamos nós dentro desta tralha?
– O Maia diz que os gajos usavam tudo. Não te esqueças que era a idade das trevas. Os gajos eram uns manhosos do pior.
– Isto é um carro alegórico, ó Seixas. Desde quando é que os tipos da Idade Média, por mais manhosos que fossem, usavam carros alegóricos para atacar os inimigos?
– Só para tua informação: os gajos até usavam granadas.
– Granadas?
– Sim, granadas incendiárias. O Maia diz que viu no Canal História. Os gajos usavam granadas com nafta ou lá o que era e queimavam tudo. Os antigos eram maus como as cobras!
– Ouve lá, achas que o Maia disse isso aos outros?
– O quê? Que eles eram maus?
– Não, isso das granadas com nafta.
– Disse. E até lhes explicou que primeiro têm de mandar umas apagadas para a nafta impregnar e só depois é que mandam uma acesa. Diz que faz um efeito do caraças.
– Impregnar?! Impregnar o quê?
– Eu percebi que eram as peles.
– Estas?! As que não ardem?
– Pois. Só que assim já ardem. O gajo farta-se de ver o Canal História, pá. Mais um ano ou dois e isto é uma recriação de alto lá com ela.
– E nós?
– Nós o quê?
– Quando é que saímos?
– Quando nos puserem dentro das muralhas. Já te explicaram isso.
– Quer dizer que ninguém vai usar as granadas?
– Em princípio, não.
– Em princípio?!... E no fim?
– Logo se vê. O gajo diz que isto é dinâmico, pá. Há uma certa liberdade para desenvolvermos as personagens, para criarmos e para desenvolvermos os acontecimentos.
– O gajo é doido, ó Seixas… Então, e se se lembram de deitar as granadas, o que é nós fazemos?
– Improvisamos.
– Improvisamos?!
– Sim, entramos mais fundo nas personagens e actuamos em conformidade. Não nos podemos esquecer que somos guerreiros medievais.
– Foi ele que disse isso?
– Foi.
– E depois?
– Temos de ter isso em conta.
– Sim, mas isso quer dizer exactamente o quê?
– O Maia diz que os tipos eram guerreiros ferozes e intrépidos, sem medo de nada, que…
– Que se tivessem de morrer assados dentro de uma balhana qualquer isso para eles era uma alegria.
– Para alguns sim, para outros não.
– Eu sou dos outros, pá. Ficas já a saber que se me cheirar a queimado, nem que seja a uma cabeça de fósforo a arder, vou-me logo embora.
– ´Tás doido!
– ‘Tava era se ficasse cá dentro.
– E os arqueiros?
– Quais arqueiros?
– Os arqueiros inimigos, pá. Se eles te vêem a sair daqui à doida, estás feito.
– Têm setas?
– Se são arqueiros.
– Pois.
– O melhor que temos a fazer é esperar e ter confiança. Vai tudo correr bem. Os gajos põem isto para dentro das muralhas e quando ouvirmos a senha, saímos.
– “É uma hora e está tudo bem!”
– Isso mesmo. É preciso é calma.
2010

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Palavra

"A palavra chegava-lhe aos lábios, enchia-lhe o olhar e desabava na expressão do rosto e do corpo mas nunca era dita. Nunca.
A palavra estava ali e era ele e ele era a palavra mas não a dizia.
Os seus olhos, o seu rosto e o seu corpo eram o reflexo da palavra. Um espelho era o que ele era naqueles momentos. Apenas um espelho que reflectia uma única palavra. Uma palavra muda, sem som, sem corpo, sem existência.
E as palavras que não se dizem não existem, nem os espelhos são o que reflectem."
A mulher calou-se, baixou a cabeça, engoliu em seco e tentou normalizar a respiração; então, quando se sentiu segura de si, olhou em frente e continuou: 
"Depois, depois da palavra não dita mas representada, vinham as explicações, as justificações, as tergiversações, as promessas e as juras. Tudo, tudo como se se abrissem as comportas de uma barragem, como se, por milagre, o mudo ganhasse voz. Ele seria outro e a palavra que não fora dita jamais seria necessária. Jamais!
Até que acontecia tudo outra vez e a palavra lhe chegava de novo aos lábios, lhe enchia mais uma vez o olhar e se repetia para lhe desabar a expressão do rosto e do corpo sem, como sempre, ser dita. Nunca foi. E era tão fácil, doutor, tão fácil.” A arguida suspirou e calou-se, correndo o olhar pelo colectivo de juízes que a julgavam. Por fim, fixou-se no juiz-presidente e concluiu: “E o que é que lhe custava, doutor? O que é que lhe custava, nem que fosse por uma vez, pedir desculpa?”
“Agora já não pode”, deixou escapar o magistrado, num tom resignado e sem censura.
“Agora já não”, concordou a arguida.