Com a desenvoltura dos actos diariamente repetidos, Aníbal
atou mecanicamente o atilho das calças de pijama brancas e azuis às riscas
verticais, deixando os dois laços perfeitamente simétricos. Satisfeito,
sentou-se na cama para descalçar os chinelos, que alinhou perfeitamente entre si, com a cama e com a mesa-de-cabeceira. Olhou o relógio na
mesa da cabeceira com apreensão, agarrou-0 com decisão e deslocou-o ligeiramente sobre o tampo da mesa-de-cabeceira até o colocar exactamente onde queria e pousou-o aí. Pôs-se de pé, levantou o lençol, tendo o cuidado de não destapar
a mulher, sorriu-lhe e deitou-se. Deitado de barriga para cima, com as mãos
juntas e arrumadas em cima do peito, Aníbal desejou boa noite a Maria, suspirou
e fechou os olhos pronto para dormir.
Maria, que lhe respondera ao sorriso com um esgar
inclassificável e ao “boa noite” com um resmungo, ficou calada sentindo a
pressão crescer dentro de si, esperando, sem preferência, que ela se
desvanecesse ou que explodisse. Explodiu:
– Boa noite?! – Maria sentou-se na cama como se se tivesse
accionado uma mola na base da sua coluna vertebral. – Boa noite, Aníbal?!
Os olhos de Aníbal, escondidos pelas pálpebras que não
abriu, moveram-se para a direita e para esquerda enquanto tentava adivinhar
a razão da mulher. Sem ideias, engoliu em seco, abriu os olhos e sorriu com o
seu ar mais inocente. Lembrou-se do bolo-rei que uma vez usara como desculpa
para não falar e teve pena que não pudesse ser Natal todos os dias.
Se o olhar causasse danos indemnizáveis, o de Maria
custar-lhe-ia muito caro e Aníbal ficaria com massa para poder comer bolo-rei
até ao fim da vida.
– O que foi? – Inquiriu Aníbal, procurando na televisão
uma pista para a fúria quase assassina da mulher, sem resultados. Num instante
ponderou várias hipóteses: ela não tinha gostado nada do discurso; e ainda
menos da solução que ele apresentou – “Qual solução, Aníbal? Achas que isto é
alguma solução?!”, dissera-lhe quando ele lhe confidenciara o que pensava fazer
–; nem da viagem às Selvagens; nem de ser quarta-feira e estarmos todos na
mesma; nem…
– O que foi?! – Repetiu Maria, abanando a cabeça e
mostrando-lhe uma careta de profunda desilusão.
– Foi o Portas? – Aníbal arriscou. – Fez mais alguma?
– Qual Portas, qual carapuça – disparou Maria, furiosa. –
Foste tu!
– Eu?! O que é que eu fiz?
– Pouco – Maria deu uma gargalhada – ou nada mesmo, ainda que estranhamente esteja a resultar.
Aníbal olhava-a perplexo à espera de ser elucidado,
sabendo que o "pouco ou nada" tinha que ver com o seu discurso mas que não era
disso que ela o acusava agora. O “pouco ou nada mesmo” fora só uma farpa para o
irritar. “A questão principal é outra”, suspirou Aníbal, à espera que a mulher
acabasse de achar graça à sua própria piada, distraindo-se a olhar para as suas
mãos ainda arrumadas sobre o peito e para os seus os braços nus, envelhecidos e
secos de carnes.
– Ah! – sussurrou Aníbal. Então, levantou o tronco e fitou a mulher nos olhos. Descobrira. Maria parou de rir e encarou-o, ligeiramente divertida. Com ar sério e grave, Aníbal baixou a cabeça fixando-se na camisola branca de cavas e, depois, virou-a lentamente para o braço direito e para o braço esquerdo sinalizando a falta de mangas. Qualquer tipo de mangas. Então, ainda sério e grave mas forçando-se a um certo ar de inconsequente rebeldia, Aníbal levantou a cabeça e tornou a cruzar o olhar com o de Maria.
– Ah! – sussurrou Aníbal. Então, levantou o tronco e fitou a mulher nos olhos. Descobrira. Maria parou de rir e encarou-o, ligeiramente divertida. Com ar sério e grave, Aníbal baixou a cabeça fixando-se na camisola branca de cavas e, depois, virou-a lentamente para o braço direito e para o braço esquerdo sinalizando a falta de mangas. Qualquer tipo de mangas. Então, ainda sério e grave mas forçando-se a um certo ar de inconsequente rebeldia, Aníbal levantou a cabeça e tornou a cruzar o olhar com o de Maria.
– É a camisola, não é? – Perguntou Aníbal, prolongando a
interrogação com um longo suspiro. Maria confirmou com um simples aceno de cabeça. – Estamos na Madeira, Maria – justificou Aníbal.
Maria encolheu os ombros: – Não estamos em Boliqueime,
pois não?
Aníbal cerrou os lábios e expirou ruidosamente pelo nariz,
levantou-se e foi tirar a camisola de alças e vestir o casaco de pijama.
– E vamos às Selvagens – disse Maria, enquanto o marido
abotoava o pijama. Ele olhou para ela, que concluiu, sorridente: – Vamos às Selvagens, Aníbal, ainda não
vamos para selvagens.
Devidamente trajado, Aníbal tornou a deitar-se.
Antes de apagar a luz, Maria sorriu-lhe, desejou-lhe “Boa
noite, senhor Presidente” e deu-lhe um beijo na boca.
1 comentário :
e eis um texto suavemente acutilante e com cenário de fundo a célebre viagem às Selvagens pelo nosso PR, que foi de facto um marco neste gap da nossa história como país político... à deriva...
Ai quem nos dera uma ilha... =)
Enviar um comentário