segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Confissões: (i) Falar para o boneco

“Sinto-me sempre só, Henrique. Sinto-me sempre só. Mesmo agora: estamos aqui mas parece que não me vês, que nem me estás a ouvir. E isso dói. Custa-me muito… Passas por mim como se eu não existisse. Falas-me como se falasses com outra pessoa qualquer. Não me fazes sentir especial, sabes? É isso que sinto... Parece-me... A verdade é que não me sinto especial… Não me fazes sentir especial. Mas gostava, Henrique, gostava que me fizesses sentir especial. E era fácil. Era simples. Bastava que me olhasses, que me visses, que falasses comigo de uma maneira especial que não usasses para mais ninguém... Sinto-me muito sozinha, sabes? Mesmo quando estamos juntos. Mesmo quando estamos a conversar ou a fazer qualquer coisa juntos parece que falta sempre qualquer coisa. Parece que falta sempre uma parte de ti... É o que eu sinto mas custa-me sentir assim, Henrique. Custa-me muito mas não o consigo evitar... Henrique. Henrique? Henrique?!”
– E ele estava a dormir. A dormir!... Eu a falar com ele, a abrir o coração, a tentar que as coisas melhorassem e ele a dormir no sofá... A dormir!... A dormir e a babar-se. Já devia ter um fio de baba que lhe chegava ao ombro, que ele tinha a cabeça para trás e ligeiramente para a direita… Mas isso agora não interessa nada. A verdade é que foi muito triste, senhor juiz, foi um choque: eu a abrir o coração e ele a dormir!... Eu venho à porta da cozinha, que dá para a sala, e vejo-o assim… a dormir, de boca aberta, com a cabeça para trás e o pescoço todo à mostra… Mas, no fundo, foi azar: é que se eu não estivesse a cortar uns bifes para congelar e se não tivesse aquela faca na mão, quanto muito tinha-lhe dado uma calduça e ele acordava e discutíamos… Mas não, tinha de ter a faca na mão e ele o pescoço para trás, todo à mostra como um galo para a cabidela, e eu tão cansada e tão farta de estar sozinha e de falar para o boneco e com a faca na mão...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O Socialista Erecto

António José não se apercebeu mas a mulher olhava-o com malícia desde o princípio da conversa. Sorria-lhe e acenava com a cabeça como se o ouvisse com toda atenção mas tinha um brilho incandescente no olhar e um ligeiro arquear dos lábios que lhe denunciavam os estranhos pensamentos que a consumiam enquanto o ouvia.
– E o Hollande? – atirou de chofre a mulher, interrompendo-lhe a interminável ladainha sobre fazer melhor e fazer diferente.
António José engoliu em seco, levantou os olhos do prato da pescada cozida com batatas e olhou para a mulher. Ela mantinha o sorriso torcido, sensual. “Erótico”, reparou surpreendido António José.
– O Hollande? – repetiu António José, sem saber o que dizer, assustado por constatar que o sorriso “erótico” da mulher estava acompanhado por um estranho olhar. “Lúbrico”, foi o adjectivo que lhe ocorreu.
– Sim, o Hollande – confirmou a mulher –, esse grande socialista.
António José tornou a engolir em seco, agora com mais dificuldade como se tivesse um problema na garganta, e coçou o couro cabeludo por cima da orelha direita, tentando perceber se o “grande socialista” tinha, como lhe pareceu, uma conotação para além da política. Sem ter a certeza, não arriscou:
– O Hollande esbarrou com a realidade negra que o Sarkozy lhe deixou e teve que dar um passo atrás para poder vir a dar dois à frente – sugeriu António José, evasivo para não se comprometer.
A mulher desviou o olhar para a televisão como se tivesse ficado satisfeita.
António José deixou escapar um profundo suspiro de alívio, enquanto se censurava por se ter permitido admitir que a questão da mulher sobre Hollande encerrasse um segundo sentido, e levou meia batata cozida à boca.
A mulher esperou que ele mastigasse duas vezes a batata e perguntou-lhe em tom inocente:
– Continuas então a achar que o Hollande, apesar de tudo, é um socialista erecto?
António José teve um ataque de tosse e cuspiu a batata. A mulher olhava-o, deliciada mas mantendo uma expressão séria.
– Erecto?! Um socialista erecto?!
– Sim – confirmou a mulher, em tom formal. – Achas?
António José limpou a boca e o queixo com o guardanapo, constatando com vergonha que havia estilhaços de batata cozida, mastigada e cuspida por toda a mesa e, quando se sentiu preparado, respondeu no mesmo tom:
– Sim, acho que sim, o fervor socialista do Hollande não esmoreceu, certamente que continua de pé…
– Erecto… – aperfeiçoou a mulher.
– Sim, o homem continua erecto – anuiu António José, contrariado.
– Um socialista erecto. Um grande socialista erecto, esse Hollande.
– Parece que sim…
– Mas que tem de suspender por uns tempos o fervor…
– Socialista – completou António José.
– Socialista – concordou a mulher.
– Vais ver que é só uma fase… – Opinou António José. – Tudo isto é passageiro.
– Como ele na mota do segurança…
– Pois, mais ou menos isso.
– E tu?
– Eu?
– Sim, tu – disse a mulher, que voltou a sorrir-lhe e a olhá-lo como no início da conversa. – Como é que anda o teu fervor socialista, Tó-Zé? Erecto?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Acessório

Ana, que o ouvia com atenção, deu uma gargalhada e, rindo, pousou a sua mão sobre a dele.
Bento, também a rir, foi surpreendido pelas duas mãos pousadas uma sobre a outra na toalha branca da mesa entre os pratos da sobremesa e, sem dar por isso, esqueceu-se de rir e ficou com ar pasmado e um sorriso satisfeito.
Ele não. Ele sentiu o calor da palma da mão dela nas costas da sua a espalhar-se por todo o corpo e a materializar-se num súbito nó na garganta mas fez uma cara ainda mais séria – gostava de dizer as coisas engraçadas com o ar mais sério do mundo – e quando olhou para Ana fê-lo com gravidade teatral que só o brilho dos olhos atraiçoava. Ana sorriu-lhe.
Bento olhou para Clara, que ainda ria sem ver nada, e, quando os olhares se cruzaram, piscou-lhe o olho e desviou os olhos para as mãos de Ana e Dinis uma sobre a outra. Clara seguiu-lhe o olhar e, feliz, sorriu para Ana que lhe retribuiu o sorriso. Dinis continuava sério, compenetrado, mas os seus olhos brilhavam e riam.
– Arranjem um quarto – gozou Bento, batendo com o cotovelo no braço esquerdo de Dinis. – Não percam mais tempo!
Dinis corou, Ana não, esmoreceu só o sorriso como se lhe ficasse bem ficar ligeiramente envergonhada.
– Oh Bento… – recriminou Clara, divertida com o ar tenso de Dinis.
– Vão-se embora – continuou Bento, com o mesmo tom galhofeiro. – Deixem lá isto que eu pago. – Bento abarcou a mesa com um gesto largo do braço e riu. Dinis, no meio da sua composta seriedade, percebeu que esperava com impaciência um sinal de Ana. – Vão-se embora – repetiu Bento, peremptório.
Ana olhou para Dinis, que olhava para ela como se estivesse prestes a ser fulminado por uma revelação. Ana ergueu as sobrancelhas e Dinis foi fulminado pela revelação que esperava e levantou-se como se a cadeira tivesse molas no assento. Ana, sem lhe largar a mão, abriu um sorriso radioso e levantou-se atrás dele. Despediram-se dos amigos em silêncio e com sorrisos comprometidos. Clara disse-lhes qualquer coisa mas eles não a ouviram e seguiram de mãos dadas para o átrio.
– Não te ouviram, Clara – disse Bento, trocista. – Eles já não ouvem nada.
Clara assentiu com a cabeça e encolheu os ombros.
– Deixá-los! – Clara abriu mais o sorriso que nunca a abandonava. – Com a leveza que ele ia, não precisa do andarilho para nada… Só os ia estorvar.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O Lençol

– Sempre te queria ver a escrever isto – disse ela, batendo a porta do quarto com estrondo e, passados uns segundos, fazendo o mesmo à porta do apartamento.
Ele inclinou-se para a frente para, sem saber porquê, ver a porta fechada do quarto. Engoliu em seco, voltou a encostar-se à cabeceira da cama e ficou a olhar para o quarto vazio. Suspirou e procurou o telemóvel, onde escreveu um sms: “Porquê, lias?”
“Não só lia como comentava, se me apetecesse”, respondeu ela passado uns segundos.
“Achas que valia a pena?”
“Abre a porta!”
Ele sentou-se na cama e tornou a olhar para a porta do quarto. Releu a mensagem e levantou-se e foi abrir a porta do apartamento, que deixou encostada.
“Vai-te deitar!”, escreveu-lhe ela.
Ele voltou para a cama. Tapou-se com o lençol e encostou-se à cabeceira. Ouviu a porta da rua fechar-se, os sapatos dela no chão da sala e deixou de a ouvir.
– Foi um erro – disse ela, junto à porta do quarto mas sem entrar. Ele não a via.
– O quê?
– Isto – disse ela.
– Voltares?
– Voltarmos.
– Porquê?
– Porque sim.
– Porque é que quiseste que eu abrisse a porta?
Ela deu dois passos e encostou-se ao roupeiro. Estava nua e sorria.
– Queria que fizesses alguma coisa para me teres…
– Vou-te ter?
– Vou-te ter outra vez – corrigiu ela, ácida, fechando o sorriso.
– Hã?!
– A pergunta que me devias fazer era… – Ela calou-se, cerrou os lábios com força e abanou a cabeça na horizontal. – Não me devias fazer pergunta nenhuma… Não era preciso pergunta nenhuma!
Ele respirou fundo como se o ar o pudesse inspirar.
– Sabes do que é que nunca gostei em ti? – lançou ela, sem esperar que a inspiração lhe subisse dos pulmões ao cérebro.
Ele pensou em várias coisas que, num ápice, se acumularam em muitas coisas e, numa súbita e incómoda surpresa, se transformaram numa imensidão de possibilidades. Espantado com a facilidade e rapidez com as identificara e com a certeza com que as acumulava, engoliu em seco e pensou se essas eram coisas de que ela podia não gostar nele ou que ele não gostava em si próprio. Na dúvida, fixou-se nela para não pensar em mais nada.
Ela, que o conhecia, permaneceu calada com um sorriso que não lhe mostrou, deixando-o torturar-se.
– Assim, de repente, não estou a ver nada – mentiu ele, num murmúrio.
Ela sorriu, um sorriso benigno, conformado. Um sorriso de quem já sabia a resposta. E pensou que essa era outra das coisas que nunca gostara nele: a previsibilidade.
– Das perguntinhas de merda que tens a mania de fazer – declarou ela, de chofre como se temesse esquecer-se do que estavam a falar. Desencostou-se da esquina do móvel mas não andou e ficou parada a olhar para ele. – Se eu voltei, se estou aqui. Se… – Olhou para si, nua, passou a mão direita pelo cabelo e continuou: – Se deixei a roupa na sala, se te peço para abrires uma porta de que tenho a chave, se entro e te falo, se volto para te dizer que foi um erro, se regresso sem saber porquê… Ou melhor, sei mas queria não saber para poder ter a desculpa da inconsciência…
Ele desembaraçou-se do lençol, levantou-se e abraçou-a. Beijaram-se.
Ela empurrou-o para a cama e lançou-se para cima dele.
– Escreves? – perguntou ela, agarrando numa ponta do lençol, que puxou atrás de si.
Ele ia perguntar o quê mas calou-se a tempo e disse que sim. Que escrevia.
Ela tapou-os.
– E eu leio e comento se me apetecer!