A voz saiu-lhe
num falsete burlesco e o arguido, sentindo-se atraiçoado por si próprio, amuou
e calou-se.
“Não percebi”,
disse-lhe a juiz.
O arguido
respirou fundo, fulminou-a com o olhar e abanou a cabeça.
“Não vai
falar?”, perguntou a juiz.
O arguido,
mantendo os braços ao longo do corpo, abriu e fechou os punhos com força, encolheu
os ombros de forma quase imperceptível e manteve-se calado.
“Vai seguir a
sandália ou a cabaça?”, inquiriu a juiz, com um sorriso. “Tem de se decidir.”
O arguido olhou
para a sua advogada, que lhe respondeu com uma expressão de um completo vazio,
e, depois de engolir em seco e morder o lábio inferior para se concentrar, disse,
sem encarar a juiz:
“Não fui eu.”
“Não foi o
senhor, o quê?”
“Que fiz isso.”
“Não?”
“Não.”
“Ah, pronto, se
é assim.” A juiz olhou para o procurador. “O arguido diz que não foi ele, senhor procurador.”
“Eu ouvi.”
“Eu calculei que
sim”, respondeu a juiz, com ar enfadado. “Como a acusação é sua, repeti-lho
para que me dissesse alguma que se aproveitasse.”
“Não foi o
caso”, intrometeu-se a advogada de defesa.
“Não, não foi”,
reconheceu a juiz, “mas a senhora doutora vai, com certeza, brindar-nos com
algo de muito proveitoso, não é assim?”
“Eu?”,
espantou-se a advogada que, abrindo um sorriso confiante, não se atrapalhou:
“Não, nem por isso.”
“Porquê uma
sandália ou uma cabaça?”, perguntou o procurador, com maus modos.
“O senhor
sabe?”, perguntou a juiz dirigindo-se ao arguido mas, antes que ele
respondesse, ergueu a mão direita com o indicador esticado que, depois,
acompanhou com o resto dos dedos, ordenando-lhe que não respondesse e ao mesmo
tempo conferindo a perfeição e brilho da unhas perfeitamente arranjadas e
pintadas. “Senhor Rui”, disse dirigindo-se ao funcionário, que levantou as
sobrancelhas antes de erguer os olhos para a ver. “Com bons modos, senhor Rui”,
avisou-o a juiz. “Está a gravar?”
O funcionário
suspirou e negou que o estivesse a fazer.
“Porque é que o
senhor é tão dramático?”
“Não sou”,
replicou o funcionário. “Não sou nada dramático só não acho isto nada correcto,
doutora. Os direitos constitucionais do arguido estão a ser completamente
atropelados. A minha opinião…”
“Eu sei, senhor
Rui, eu sei bem qual é a sua opinião. Aliás, todo o tribunal sabe, por isso, escusa de a repetir.”
“Eu é que devia
estar aí”, lamentou-se o funcionário.
“A senhora
doutora desculpe”, interrompeu o arguido.
“Não desculpo.”
“A Vida de Brian.”
“A Vida de
Brian, o quê?”
“A cabaça ou a
sandália.”
“Mas a que
propósito vem isso agora?”
“A senhora
doutora perguntou-me se eu sabia”
“Perguntei mas
mandei-o calar, não foi?”
O arguido baixou
a cabeça.
“E, afinal, o
que é que o senhor não fez?”, lançou-lhe a juiz.
“Isto é tudo
altamente irregular”, declarou o funcionário.
“Está a
gravar?”, atirou a juiz, furiosa.
“Não, sabe bem
que não.”
“Então,” a juiz
riu-se, “como o que não está no processo não está mundo, isto é como se não existisse, senhor Rui. Descontraia-se.”
O funcionário
encolheu ostensivamente os ombros, escondidos debaixo de uma capa preta que
procurava dar-lhe um ar solene, sem o conseguir.
“O senhor
procurador ou a senhora doutora têm alguma coisa a objectar ou a requerer?”
Os visados
entreolharam-se e chocalharam as cabeças a compasso na horizontal.
“Bem me
parecia.”
“E eu?”, perguntou o arguido.
“Vai condenado.”
“Porquê?”
“Porque não?”
“Eu não fiz
nada.”
A juiz hesitou,
olhou para as folhas que tinha à sua frente e, encarando o arguido com um
sorriso insolente, declarou:
“Era um crime de
omissão de auxílio.”
“A acusação que
me foi lida…”
“Enganei-me. A
sua era de omissão de auxílio. Quem vota a favor?”
“E depois?”
“Vamos fazer
pizza.”
Votaram todos a
favor com o braço levantado, menos o funcionário.
“Eu antes queria
ir ao estúdio de televisão.”
“Não é isso. Isso
vemos quando sairmos daqui”, disse a juiz. “Está condenado?”
“Condenadíssimo”,
respondeu o funcionário, levantando os dois braços.
“Muito bem. A
sentença, senhor arguido, são três anos na choldra, mas com pena suspensa, e 50
kidzos de custas. 25 para mim, 10 para o senhor procurador e para a advogada e
5 para o funcionário. Está encerrada a sessão no Tribunal da Kidzania.”
“Cinco?!”