quarta-feira, 1 de junho de 2016

Dia Mundial da Criança

A voz saiu-lhe num falsete burlesco e o arguido, sentindo-se atraiçoado por si próprio, amuou e calou-se.
“Não percebi”, disse-lhe a juiz.
O arguido respirou fundo, fulminou-a com o olhar e abanou a cabeça.
“Não vai falar?”, perguntou a juiz.
O arguido, mantendo os braços ao longo do corpo, abriu e fechou os punhos com força, encolheu os ombros de forma quase imperceptível e manteve-se calado.
“Vai seguir a sandália ou a cabaça?”, inquiriu a juiz, com um sorriso. “Tem de se decidir.”
O arguido olhou para a sua advogada, que lhe respondeu com uma expressão de um completo vazio, e, depois de engolir em seco e morder o lábio inferior para se concentrar, disse, sem encarar a juiz:
“Não fui eu.”
“Não foi o senhor, o quê?”
“Que fiz isso.”
“Não?”
“Não.”
“Ah, pronto, se é assim.” A juiz olhou para o procurador. “O arguido diz que não foi ele, senhor procurador.”
“Eu ouvi.”
“Eu calculei que sim”, respondeu a juiz, com ar enfadado. “Como a acusação é sua, repeti-lho para que me dissesse alguma que se aproveitasse.”
“Não foi o caso”, intrometeu-se a advogada de defesa.
“Não, não foi”, reconheceu a juiz, “mas a senhora doutora vai, com certeza, brindar-nos com algo de muito proveitoso, não é assim?”
“Eu?”, espantou-se a advogada que, abrindo um sorriso confiante, não se atrapalhou: “Não, nem por isso.”
“Porquê uma sandália ou uma cabaça?”, perguntou o procurador, com maus modos.
“O senhor sabe?”, perguntou a juiz dirigindo-se ao arguido mas, antes que ele respondesse, ergueu a mão direita com o indicador esticado que, depois, acompanhou com o resto dos dedos, ordenando-lhe que não respondesse e ao mesmo tempo conferindo a perfeição e brilho da unhas perfeitamente arranjadas e pintadas. “Senhor Rui”, disse dirigindo-se ao funcionário, que levantou as sobrancelhas antes de erguer os olhos para a ver. “Com bons modos, senhor Rui”, avisou-o a juiz. “Está a gravar?”
O funcionário suspirou e negou que o estivesse a fazer.
“Porque é que o senhor é tão dramático?”
“Não sou”, replicou o funcionário. “Não sou nada dramático só não acho isto nada correcto, doutora. Os direitos constitucionais do arguido estão a ser completamente atropelados. A minha opinião…”
“Eu sei, senhor Rui, eu sei bem qual é a sua opinião. Aliás, todo o tribunal sabe, por isso, escusa de a repetir.”
“Eu é que devia estar aí”, lamentou-se o funcionário.
“A senhora doutora desculpe”, interrompeu o arguido.
“Não desculpo.”
“A Vida de Brian.”
“A Vida de Brian, o quê?”
“A cabaça ou a sandália.”
“Mas a que propósito vem isso agora?”
“A senhora doutora perguntou-me se eu sabia”
“Perguntei mas mandei-o calar, não foi?”
O arguido baixou a cabeça.
“E, afinal, o que é que o senhor não fez?”, lançou-lhe a juiz.
“Isto é tudo altamente irregular”, declarou o funcionário.
“Está a gravar?”, atirou a juiz, furiosa.
“Não, sabe bem que não.”
“Então,” a juiz riu-se, “como o que não está no processo não está mundo, isto é como se não existisse, senhor Rui. Descontraia-se.”
O funcionário encolheu ostensivamente os ombros, escondidos debaixo de uma capa preta que procurava dar-lhe um ar solene, sem o conseguir.
“O senhor procurador ou a senhora doutora têm alguma coisa a objectar ou a requerer?”
Os visados entreolharam-se e chocalharam as cabeças a compasso na horizontal.
“Bem me parecia.”
“E eu?”, perguntou o arguido.
“Vai condenado.”
“Porquê?”
“Porque não?”
“Eu não fiz nada.”
A juiz hesitou, olhou para as folhas que tinha à sua frente e, encarando o arguido com um sorriso insolente, declarou:
“Era um crime de omissão de auxílio.”
“A acusação que me foi lida…”
“Enganei-me. A sua era de omissão de auxílio. Quem vota a favor?”
“E depois?”
“Vamos fazer pizza.”
Votaram todos a favor com o braço levantado, menos o funcionário.
“Eu antes queria ir ao estúdio de televisão.”
“Não é isso. Isso vemos quando sairmos daqui”, disse a juiz. “Está condenado?”
“Condenadíssimo”, respondeu o funcionário, levantando os dois braços.
“Muito bem. A sentença, senhor arguido, são três anos na choldra, mas com pena suspensa, e 50 kidzos de custas. 25 para mim, 10 para o senhor procurador e para a advogada e 5 para o funcionário. Está encerrada a sessão no Tribunal da Kidzania.”
“Cinco?!”