domingo, 24 de maio de 2015

Animais Fofinhos

O pelicano lança uma pensativa baforada e, esticando-se, passa o charro ao esquilo. Recosta-se na cadeira e fixa-se, com ar sonhador, na parede em frente, num poster de um enorme ajuntamento de pelicanos num lago. Dá um longo e profundo suspiro, levanta-se lentamente e caminha com solenidade até ao poster. Torna a suspirar.
Deitado no sofá, o esquilo segue-o com o olhar enquanto se coça com indolência. Tem um sorriso matreiro estampado no rosto e os olhos, enormes, brilham como se tivessem luz própria. Dá uma longa passa.
– Isto é que eram tempos – diz o pelicano, numa voz arrastada, parando em frente ao poster.
– E nem era preciso enrolar nada – acrescenta o esquilo, animado.
– Pois. – O pelicano abana lentamente a cabeça para cima e para baixo. – A água estava cheio de ácidos, meu… Aquilo era o céu, pá, era uma nuvem do céu.
– Duas, duas nuvens, Pel: uma de ácidos e outra de aves cor-de-rosa, completamente pedradas, em cima de umas perninhas de alicate.
– Pois. – O pelicano encosta o bico ao poster e, sem que o sinta, começa a lacrimejar. – Um gajo estava ali, no meio de milhares das mais belas aves do planeta, com as patas de molho e envolvido numa nuvem de paz e amor. Completamente envolvido, completamente integrado…
– Vocês têm bicos horríveis – guincha o esquilo, sentando-se muito direito. – E olha que nem toda a gente gosta de cor-de-rosa!
O pelicano vira a cabeça e fulmina-o com o olhar.
– Sabes que vais ser empalhado, não sabes?
O esquilo salta do sofá para a secretária, para a cadeira, para a estante à direita, para o candeeiro de tecto, para a porta, para a estante, para parede e para as costas da cadeira. Ri.
– Era preciso que me apanhassem…
Imóvel, o pelicano roda o pescoço, olha para o poster, bate as asas uma vez e torna a rodar o pescoço para encarar o esquilo.
– E antes de te empalharem, vão esventrar-te totalmente. Ficas uma casca oca de ti próprio.
– Um boneco.
– Um boneco – concorda o pelicano, satisfeito.
O esquilo encolhe os ombros e lança-se para o sofá.
– Desde que não me pintem de cor-de-rosa…


sexta-feira, 15 de maio de 2015

Diferente.

– Estás diferente.
– Diferente?
– Sim, estás diferente.
– Só se for por ter pintado o cabelo.
– Não estou a falar do teu aspecto exterior.
– Ah… Não? Estás a falar de quê?
– Sabes muito bem: estás diferente.
– Não, não sei. Se não é do cabelo, não sei. Tens de me explicar.
– Tu sabes… e também deves saber porque estás diferente.
– Não só estou diferente, como sei porque estou diferente.
– Sim.
– E se eu não tiver dado por isso?
– Deste, de certeza que deste. As pessoas quando ficam diferentes percebem-no e sabem porque ficaram diferentes.
– Talvez o meu anterior eu soubesse mas este agora não. Se eu agora sou este eu, não estou diferente, sou eu. Não há dois eus.
– No espaço, não. No tempo, sim. Estás diferente em relação ao que eras.
– Mas já não sou…
– Não. Por isso é que estás diferente.
– Pintei o cabelo.
– Não estou a falar disso, já disse. Estou a falar de algo mais interior, mais profundo.
– Também mudei a forma da minha depilação. Só se é isso… Fiz um triângulo.
– Um triângulo?
– Um triângulo. Um triângulo invertido.
– Um triângulo invertido?
– Sim, mas pequeno. Mínimo. Um triângulo minimal repetitivo… Achas que é isso?
– Repetitivo?
– Não… repetitivo não, era só uma piada. É só minimal. Um triângulo minimal invertido. Será isso?
– O quê?
– O que me faz estar diferente no tempo mas não no espaço. Não há duas depilações no mesmo espaço. Ou há uma ou há outra, nisso tens razão. É isso?
– Não, acho que não.
– Mas isso é interior.
– Mas não é disso que estou a falar. E a depilação não é interior.
– Interior no sentido de intima. Não era nesse sentido que estavas a dizer que eu estava diferente? No meu intimo?
– Sim, estás diferente, mas no teu íntimo, não na tua intimidade.
– Isso agora poderia levar-nos muito longe… mas, é melhor ficarmos por aqui. Se não é o cabelo, nem a depilação, afinal, estou diferente em quê?
– Diferente.
– Só diferente?
– Diferente.
– Diferente…Não sei porquê…
– Mas estás.
– Desde quando?... O meu eu que é o meu eu de referência é de quando? Quando é que estabeleceste o meu eu de referência, o meu eu com que todos os meus outros eus se comparam?
– Vês?
– O quê?
– Isso é um sinal da diferença.
– Eu não saber que estou diferente, nem diferente em relação a quê, nem a quando?
– Esta conversa.
– Esta conversa é o sinal?
– Sim.
– Então, que tipo de conversa é que o meu eu anterior teria quando lhe dissessem que estava diferente?
– Não…
– Não me digas: não era esta conversa.
– Pois não.
– Era outra?
– Não necessariamente.
– … Agora é que me apanhaste! O meu anterior eu também podia ter esta conversa?... Não estou a perceber.
– Se tu não estivesses diferente, nós não tínhamos esta conversa.
– Ah!... Bolas. Está visto que não tenho hipóteses. A diferença já está estabelecida. Fosse o que fosse que eu dissesse, só o diria, ou digo, porque estou diferente. É isto, não é?
– É. Com toda a franqueza, é. Eu só estava a constatar um facto…
– Não estavas a pedir a minha opinião.
– Não.
– Nem é um facto sujeito a contraditório. Estou diferente ponto final.
– Pois.
– Ah!... Agora que sabemos as duas que estou diferente, que isso está assente de forma inquestionável, só não percebi uma coisa…
– O quê?
– Estou diferente para melhor ou para pior?

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Jantar Fora

Já ninguém é capaz de dizer nada, queixou-se o homem.
Porquê?, perguntou a mulher, distraída.
As pessoas têm medo.
Medo?
Medo.
Medo de quê?
Do relativismo em que vivemos.
A mulher suspirou. Tinha quase a certeza que não queria saber mais. Sabia que, se lhe perguntasse o que quer que fosse, até se ainda havia cenouras no frigorífico ou se ele se lembrava da última vez que tinham saído para jantar só os dois, ele ia prosseguir com um discurso inflamado contra o relativismo moral, contra a falta de convicções, contra a impossibilidade de as manter e defender…
Só se dissermos que somos de esquerda, desabafou o homem, numa tentativa de que a conversa não terminasse. Se nos anunciarmos de esquerda, continuou, e nos filiarmos ou nos apresentarmos como simpatizantes de qualquer coisa de esquerda podemos ter as opiniões que quisermos e anuncia-las quando e onde quisermos que ninguém nos diz nada.
É?, perguntou ela, apesar de já saber que sim, que era; que, na opinião dele, aos putativos esquerdistas tudo era permitido: dizer isto e o seu contrário, ser revolucionário e reaccionário, poder ser e não ser, estar e não estar. “Para se ser de esquerda basta proclamá-lo, não vivê-lo, nem sequer fingir. É uma tristeza”, havia ele de dizer se a conversa continuasse. “Eu sou mais de esquerda que a maioria das pessoas que se dizem de esquerda. Tenho valores e rejo-me por eles. Eu é que sou de esquerda mas não ando por aí a dizê-lo.” É?, insistiu ela, com um brilho no olhar que ele não viu.
Claro que é, confirmou ele, iniciando o tal discurso que ela já sabia que ia acontecer e que, efectivamente, aconteceu.
E, no meio disso tudo, tu achas que jantar fora é uma exploração do homem pelo homem?, lançou a mulher, inopinadamente, quando ele já ia na fase em que havia de se afirmar mais de esquerda do que a maioria dos que se dizem de esquerda.
Jantar fora?, inquiriu ele, surpreendido. Ela acenou que sim com a cabeça. Ele aproveitou o movimento ascendente e descendente da cabeça da mulher para pensar no que pretenderia ela com aquela pergunta. Se eu acho que jantar fora é a exploração do homem pelo homem?, repetiu ele, alto mas como se falasse para si próprio.
Ela continuou a balançar a cabeça e não o deixou continuar a fazer tempo: Achas?
Não, disse ele, peremptório, não acho. Ela lançou-lhe um sorriso interessado e bajulador, ele empolgou-se: É verdadeiramente um serviço em que deve imperar o mercado livre, regulado, claro, mas livre. Apesar de a restauração ser uma das actividades mais emblemáticas do capitalismo, é, se deixada actuar num mercado livre e concorrencial, um paradigma do funcionamento da lei da oferta e da procura. É uma actividade que premeia a qualidade, que recompensa o trabalho. O bom trabalhador é reconhecido e o valor do seu trabalho…
É devidamente valorizado, concluiu ela.
Sim, concordou ele, animado. O factor trabalho na restauração, pela sua proximidade ao consumidor final e pela instantaneidade dos seus resultados, é normalmente mais valorizado do que noutras actividades. Um bom cozinheiro ou um bom empregado…
E, no entanto, interrompeu a mulher, usando um tom assertivo e seco, nós nunca vamos jantar fora. Nunca. Nunca valorizamos cozinheiros, nem empregados de mesa.
O homem baixou a cabeça e olhou para os seus sapatos. Cruzou as mãos, entrelaçando os dedos e, danado, mordeu o lábio inferior. Reflectiu na armadilha que a mulher lhe lançara e, por fim, recomeçou num tom crítico e rígido, enquanto, derrotado, reparava no cabelo arranjado, na roupa de sair e nos sapatos de salto que a mulher apresentava. A formulação da tua pergunta não foi a mais correcta e foi, até, demasiado simplista. Na realidade…
Na realidade, eu hoje não fiz jantar, completou a mulher, olhando ostensivamente para o relógio de pulso. E não vou fazer, anunciou, antes de se levantar, sorrir-lhe e começar a andar. Vens?, perguntou, passando por ele lentamente, num andar estudado para fazer estragos.
Eu… Eu…, balbuciou o homem, seguindo-a com o olhar.
A mulher parou antes de sair da sala, ajeitou a saia e baixou-se para a frente, sem que ele percebesse para fazer o quê. O resultado do movimento fê-lo esquecer a dúvida.
Eu acho que hoje é um dia bom para começarmos a valorizar o factor trabalho das pessoas da restauração, declarou o homem, levantando-se. Um dia muito bom.


quinta-feira, 7 de maio de 2015

O Remédio

Movendo o copo de whisky em pequenos círculos sobre o tampo da mesa, Marco lançou a Fátima um olhar lânguido e acenou ligeiramente com a cabeça, reforçando o convite que acabara de fazer. Fátima fixou-o com uma expressão enigmática e aproximou-se devagar, sempre a sorrir mas sem mostrar os dentes.
Marco engoliu em seco, sentiu uma fraca pontada de excitação na zona dos rins, as pontas dos dedos a arrefecerem e um aperto no peito que lhe esmagava o optimismo. Levou o copo à boca para se defender. Estava nervoso e apetecia-lhe rir. Mais, apetecia-lhe ser directo e dizer que já não tinham idade para olhares lânguidos e expressões enigmáticas nem aquele era o sítio certo para isso mas calou-se, pousou, diplomaticamente, o copo vazio e perguntou num tom aveludado:
– Vamos?
Fátima olhou-o desemparelhando as sobrancelhas, a esquerda subiu e a direita desceu, e, ainda com os lábios cerrados, tornou a sorrir, um sorriso ligeiro mas cheio de troça e malícia. Marco voltou a engolir em seco, tentando desmobilizar o aperto no peito que, alastrando, já o sufocava, e lembrou-se de Carolina, que, se ali estivesse, havia de abanar lentamente a cabeça para o desmoralizar e dizer-lhe que era imprestável, e de Aníbal, que insistira que ele ali fosse para esquecer a Carolina e seguir em frente.
– Eu sou amigo do Aníbal – disse ele, hesitante.
– Ah… O amigo do Aníbal – troçou Fátima com uma careta. Ele confirmou baixando a cabeça. Ela sentou-se ao seu lado e perguntou: – E foi ele que te disse para vires ter comigo? – Marco repetiu o gesto. Fátima inspirou pelo nariz, passou a mão esquerda pela franja e fez menção de se levantar. – Estás pronto, tens a certeza?
– Não sei – confessou Marco num fio de voz. – Sinceramente, não sei. – A mulher continuou sentada e olhou-o pela primeira vez com algum interesse. Ele reparou, ganhou alento e acrescentou: – O Aníbal é que insistiu que viesse mas eu acho que não estou preparado…
– Há uma mulher – disse Fátima, com um sorriso simpático e compreensivo. Ele confirmou com uma expressão conformada e triste. A mulher endureceu o tom mas não a expressão: – E o Aníbal, esse parvo, mandou-te cá vir para a esqueceres… – Marco baixou a cabeça como se sentisse culpado e arrependido por ter obedecido. Fátima deu uma gargalhada ligeira, encolheu os ombros, sorriu-lhe com um sorriso encantador e concluiu: – O homem tem a mania que tudo se resolve com sexo, que o sexo é um remédio. Não é mau diabo mas é um bocado alucinado… e insistente. – Marco concordou e devolveu-lhe o sorriso. Fátima suspirou e parou de rir. – Mas não é aqui que vais resolver os teus problemas, sejam eles quais forem ou com quem forem.
– Ana – anunciou Marco e levantou-se, decidido. – Ela chama-se Ana. – Fátima sorriu mas continuou sentada. – E eu Bruno. – Apresentou-se ele enquanto a mulher se levantava.
A mulher ficou em pé à sua frente, com o rosto quase encostado ao seu.
– Muito prazer, Bruno. Eu sou a Beatriz – disse a mulher, inclinando-se para ele e dando-lhe um ligeiro beijo na face. – Vamos? – Murmurou-lhe ao ouvido.
Ele esperou que os seus rostos estivessem frente a frente e, num movimento brusco, beijou-a.
Ela afastou-o com um empurrão, fazendo-o cair no sofá.
– O Aníbal deve ter-te dito que eu não beijo, Marco – disse ela, realçando o nome.
– Ele disse-me que tu normalmente não beijas, Fátima – respondeu ele, sublinhando o nome –, não disse que tu não beijavas ou que…
– Achaste que era um desafio? – Interrompeu ela.
Marco confirmou com um “Pois” convicto mas pouco audível.
– E porque é que não disseste que te chamavas Marco?
– Porque... – Ele calou-se e reconheceu: – Não sei.
Fátima sorriu, abanou a cabeça, aceitando a falta de explicação e estendeu-lhe mão para o ajudar a levantar.
– Prometes que não me tentas beijar? – Perguntou-lhe enquanto o puxava.
Marco pôs-se de pé, mordeu o lábio inferior, riu-se e respondeu olhando ostensivamente para a boca dela:
– Posso tentar mas não posso prometer.
Ela inclinou a cabeça, fixando-se nos lábios dele, hesitou um momento e propôs:
– Prometes que não dizes ao Aníbal se eu te beijar?
– Se tu prometeres não dizer à Ana.
– À Carolina – corrigiu ela, piscando-lhe o olho.
– Se tu prometeres não dizer à Carolina – rectificou ele. – O Aníbal contou-te tudo, não foi?
– Mais do que eu queria saber…