terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A Árvore de Natal do Supremo Líder

O supremo líder deixou-se cair na sua enorme poltrona, acomodou-se com vagar até se sentir confortável e, depois, passou a mão direita pelo queixo, dando sinal que estava a pensar. Os dois ministros que o acompanharam até à sala privada e se mantinham em pé como soldados numa parada a aguardar ordens, tinham as cabeças baixas mas seguiam disfarçadamente, com atenção e temor, todos os movimentos do chefe.
Pensativo, o supremo líder esticou as pernas, pousou os cotovelos nos braços da poltrona e entrelaçou as mãos por cima da proeminente barriga.
– Juntem-se mais – ordenou aos ministros, que se aproximaram um do outro. – Não, encostem-se mesmo – vociferou, abanando a cabeça com uma careta de profunda insatisfação. Os dois homens encostaram-se um ao outro. O líder suspirou enfastiado. – Tu: levanta o braço direito. Tu: o esquerdo. Estiquem as mãos e encostem as pontas dos dedos por cima das cabeças.
Os homens fizeram como lhes foi ordenado.
O supremo líder passou a mão pelo queixo, deixou de olhar para os homens e estudou a sala com minúcia, como se procurasse qualquer coisa.
– Vão para ali – disse, sem olhar para os homens, apontando com a cabeça para o canto da sala à sua direita. Os homens sem desfazerem o triângulo que os seus braços compunham, dirigiram-se para o local indicado, em passos laterais sincronizados. – Aí – gritou. Os ministros estacaram, hirtos.
O supremo líder mandou-os avançar um passo e, com ar pouco convencido mas em silêncio, levantou-se e caminhou até à porta fechada por onde os três haviam entrado. Os dois homens entreolharam-se quando ele ficou de costas mas não se mexeram. O supremo líder rodou a maçaneta, admirando-se com a precisão do mecanismo e a facilidade de manuseamento do objecto, abriu a porta e saiu da sala privada para a sala de audiências.
– Nunca tinha visto o supremo líder abrir uma porta – murmurou o ministro do braço direito levantado. O do braço esquerdo erguido concordou com um grave aceno da cabeça.
Na grande sala de audiências, o supremo líder rodou sobre si próprio, puxou a porta para si, fechando-a, sorriu agradado com a simplicidade e eficácia dos gestos, fez uma ligeira vénia à porta fechada e, feliz, tornou a rodar a maçaneta, a abrir a porta e a entrar na sala privada. Encarou os dois homens, que se mantinham exactamente no mesmo sítio e posição em que os deixara. Deu um passo para dentro da sala e parou, meditativo. Após uns instantes em que só mexeu os lábios, numa sequência que começou com um ostensivo torcer desagradado e acabou num ligeiro descair de resignação, anunciou:
– Este ano vamos ter uma árvore de Natal.
O supremo líder fez uma pausa para estudar as expressões dos subordinados em resposta ao anúncio que acabara de fazer, mas estes baixaram a cabeça assim que sentiram o olhar perscrutador do líder, e ele, ainda reconfortado com a eficiência da maçaneta e com o facto de a Sony ter cancelado a exibição da comédia que o retratava como um tiranete de pacotilha retardado e vicioso mas que não tinha piada nenhuma (que era o que mais lhe custava), dirigiu-se à poltrona e continuou:
– E vai ficar exactamente aí onde estão. – Lançou novamente todo o seu peso para cima da poltrona e sentou-se. – E vocês só saem daí quando a árvore estiver feita. – Os homens anuíram com uma vénia. Ele passou a mão pelo cabelo, esticou as pernas para olhar para os sapatos, gritou a pedir que lhe chegassem o banco que estava ao seu lado para pousar os pés e recostou-se para repousar. – Tratem disso imediatamente – determinou, com os olhos já fechados.
Um serviçal entrou silenciosamente por uma porta lateral, agarrou no banco, levantou as pernas do supremo líder e pousou-as com ternura na almofada.
O supremo líder entreabriu os olhos e suspirou agradado, então fixou-se nos ministros, que faziam sinais aflitos ao serviçal para se aproximar, e, num ronrono maldisposto, mandou-os parar e limitarem-se a piscar os olhos sem parar como se fossem as luzes da árvore de Natal.

sábado, 20 de dezembro de 2014

O Almoço de Natal

A mesa estava posta com o requinte que a quadra exige: toalha de pano com motivos natalícios; os melhores talheres e loiças, vindos das profundezas do tempo, de uns medievos quaisquer que os haviam vendido na feira da ladra, ainda que isso não fosse para se saber; copos de pé alto com ar encardido e de proveniência igualmente duvidosa "mas ilustre", frisava a sogra constatando os trejeitos de desconfiança que qualquer utilizador fazia quando, a medo, os levava à boca; e uma enorme vela vermelha acesa no centro da mesa.
De guardanapos no colo, o pai, a mãe, a filha e o genro preparavam-se para o almoço de Natal, de sorrisos em formol e palavras em surdina.
O genro sentia uma inusitada e inexplicável frieza desde que tinham chegado mas só quando o sogro lhe serviu um vinho tinto corrente de uma marca de supermercado teve a certeza que algo não estava bem. Nada bem. O ambiente e o vinho não enganavam.
Quando a sogra se levantou para servir a sopa, ele procurou os olhos da mulher tentando obter uma justificação, uma pista que lhe permitisse ter uma ideia do que se estava a passar. A mulher ostensivamente baixou os olhos, evitando qualquer contacto. Resignado, agradeceu a sopa, pegou na pesada e amarelecida colher e começou lentamente a comer, calculando a qualidade e quantidade de elementos químicos que iria absorver no contacto com os talheres.
Todos comiam em respeitoso silêncio até que, entre duas colheres de sopa, a mulher murmurou:
– Nunca me bates nas nádegas.
Ele engasgou-se, tossiu, olhou para os sogros, que não deram sinais de ter ouvido a queixa da filha e olhou-a para perceber se estava doido e a ouvir coisas – tinha a secreta esperança que fosse o caso – ou se, efectivamente, ela dissera o que ele ouvira. Quando os seus olhares se cruzaram, ela acenou ligeiramente com a cabeça, confirmando a afirmação.
Ele sentiu as sobrancelhas erguerem-se, os olhos arremelgarem-se e o maxilar inferior descair, deixando-lhe a boca aberta. A consciência do seu ar apalermado levou-o a pôr outra colher de sopa à boca, procurando na normalidade do movimento algum consolo e segurança.
– Nunca me bates nas nádegas – tornou ela a lamuriar-se.
Sem levantar a cabeça, ele abafou um risinho nervoso que lhe tomava conta do peito, pousou a colher no prato e agarrou no copo de vinho. Acabara de levantar o copo, quando o sogro lhe perguntou de chofre:
– Não estás a ouvir, João?
A pergunta do sogro provocou-lhe uma vertigem, que o fez entornar o copo cheio de vinho tinto. A mulher e os sogros levantaram-se de um salto, afastando-se da maré vinícola que se espalhava em todas as direcções. Ele olhou a mesa que escorria, balbuciou um abafado pedido de desculpas, pousou o copo e erguendo-se devagar, apoiado na mesa, reafirmou:
– Desculpem, não sei o que se passou.
– Nós é que não sabemos o que se passa, João! – Recriminou a sogra, ríspida. – A Luísinha diz que tu não lhe bates nas nádegas!
Ele tornou a sentar-se, incrédulo.
O sogro, ainda em pé, tomou a palavra:
– Sim, a Luísa tem-se queixado à mãe que, desde que vocês se casaram, tu nunca mais lhe bateste nas nádegas.
A Luísa e a mãe assentiram com a cabeça, confirmando a acusação.
– Eu nunca lhe bati nas nádegas – respondeu ele, num fio de voz.
– Pior – gritou o sogro. – É verdade, Luísa, este animal nunca te deu umas boas palmadas nas nádegas?!
– Não, paizinho, nunca... – choramingou a Luísa.
– Ó meu Deus – invocou a sogra, juntando as mãos no peito –, isso é que tu nunca me tinhas dito, filha...
A mãe aproximou-se da filha e abraçou-a.
– Eu pensava que depois de casarmos, o João... – começou a Luísa.
– Não, não! – Interrompeu o pai aos gritos. – Casaste com um banana, filha! Um banana!
– Ó paizinho, não diga isso. – A Luísa largou a mãe, que chorava olhando fixamente o genro, e, virando-se para o pai, continuou: – Eu pensava que se me pusesse a jeito ele se entusiasmasse, paizinho, se entusiasmasse e me desse umas palmadas nas nádegas...
– Ó filha, te pusesses a jeito, filha... – soluçou a mãe. – És um anjo, minha filha. Um anjo. Mas o teu pai tem razão, Luísa. Infelizmente tem razão: ele é um banana.
– Um banana! – Tornou o sogro, satisfeito com a escolha da fruta. – Nem umas palmadas nas nádegas da mulher sabe dar, o banana! Que tristeza... Que pouca sorte...
– Mas eu não sabia que ela gostava – justificou o banana, a meia voz.
– Não gostava? – Rosnou a sogra. Ele olhou-a espantado. Ela olhava-o mas não o via. – Não gostava?! Mas há lá alguma mulher que não goste de levar umas boas palmadas nas nádegas?!
Ele sentiu a boca abrir e fechar sem produzir nenhum som, como um peixe fora de água, viu a sopa coalhada, o vinho entornado ensopando a toalha agora arroxeada e até lhe pareceu que o cabrito assado no tabuleiro se estava a rir dele.
– És um banana – repetia o sogro, abanando a cabeça e olhando-o com absoluto desgosto e desânimo. – Um banana.
– Ela nunca me disse nada – gemeu ele. – Podia ter dito.
– Podia ter dito?! – A sogra estava completamente descontrolada. – Podia ter dito?!
– Calma, mãezinha, calma.
– Mas quem é que o senhor pensa que a minha filha é? – Gritou a sogra, lançando perdigotos em todas as direcções. – Pensa que ela é o quê?!
– Calma, mulher – recomendou o sogro, já sentado mas afastado da mesa. – Calma.
– Calma, nada! – A sogra impôs-se, baixou o tom de voz, tornando-o mais ameaçador e continuou: – Então, o senhor queria que a minha filhinha lhe pedisse – fez voz de coitadinha – "Ó Joãozinho, bate-me, bate-me nas nádegas, que eu gosto"? Queria?! Era isso que queria que ela dissesse?
Ele olhou a sogra sem saber se havia de dizer alguma coisa, pensou em dizer que sim, que se ela gostava devia tê-lo dito mas em boa hora não o fez e manteve-se calado.
– A minha filha não é nenhuma rameira! – Exclamou a sogra, respondendo a si própria, de punhos cerrados. – A Luísa pode gostar que lhe batam nas nádegas mas não o diz. É uma mulher séria e recatada. Não o diz, ouviu?! É educada! Séria, recatada e educada!
A filha abraçou a mãe que chorava baba e ranho – mais ranho que baba mas isso é irrelevante – e fez sinal ao pai para dizer qualquer coisa.
O pai compreendendo o melindre da situação e temendo que o cabrito ficasse rijo ou mesmo que encarquilhasse com o frio – as personagens pensam assim, o que pode um narrador fazer? –, encheu o copo do genro e disse:
– E agora, o que é que tu pensas da vida, meu rapaz?
A filha acenou-lhe agradecida, a mãe fungava e o genro sentiu que tudo se podia ainda compor.
– Achas que consegues dar conta do recado? – Perguntou o sogro.
– Deixe-me comer o cabrito – disse o genro, cheio de valentia, – que eu logo lhe dou o que ela quer.
A sogra suspirou e assoou-se ruidosamente, desanuviando o ambiente.
– Amanhã nem te sentas! – Berrou o pai, com uma gargalhada.
– Ó paizinho... – disse a filha, embevecida perante a perspectiva.
– Também não é preciso exagerar – aconselhou a mãe enquanto limpava o nariz. – As nádegas precisam de habituação e cuidado... É preciso jeitinho...
– Com jeito vai... – berrou o sogro, rindo. – Com jeito!
Ela piscou o olho e lançou-lhe um beijo, ele respondeu mordendo o lábio inferior e com ambas as mãos deu, com empenho e desembaraço, palmadas em nádegas imaginárias.
– Tem jeito, o gajo – lançou o sogro, fazendo um brinde com o genro: – Que nunca nos faltem nádegas, meu rapaz!
– Que falta de educação, Francisco – recriminou a sogra, com ar afectado, enquanto eles batiam com os copos. – Que falta de educação.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Natal na Praia

O homem baixou-se, agarrou um seixo e lançou-o com força tentando com que ele deslizasse na água. O seixo bateu uma vez e continuou, bateu outra vez e continuou, bateu mais uma vez e afundou-se. Ele censurou a água e o seixo, culpando-os pela fraca prestação da pedra. Esfregou as mãos uma na outra, limpando-as, como teria feito Pilatos se não lhe tivessem levado uma bacia com água, pô-las nos bolsos e afastou-se da água.
A mulher, que tinha vindo com ele, ainda abanava a cabeça para um lado e para o outro quando ele a encarou.
– A pedra não era boa – justificou-se ele, encolhendo os ombros.
A mulher esboçou um sorriso de troça que corrigiu para uma, pouco credível, expressão de compungida compreensão e perguntou num tom lamentoso:
– E agora, já nos podemos ir embora?
O homem tornou a encolher os ombros que acompanhou com uma careta desengraçada. – Por mim…
A mulher suspirou, olhou para o copo de champanhe meio vazio que tinha na mão direita, procurou bolhinhas sem as encontrar e pousou o copo na areia.
– Queres o teu? – Perguntou quando se endireitou, esticando o copo que tinha na mão esquerda na direcção dele.
O homem abanou a cabeça negativamente e, sem um olhar ou uma palavra, começou a caminhar em direcção ao restaurante.
A mulher pousou o copo dele ao lado do seu com cuidado e ergueu-se sem sair do lugar. Surpreendida, viu-lhe as costas direitas e o andar decidido e, para além dele, as luzes do restaurante onde estavam a passar a consoada. Atónita, ainda o viu chegar à escada de madeira que dava acesso à sala onde estavam e subir sem olhar para trás, até que, sem o querer ver mais, baixou os olhos para os copos e os viu estupidamente juntos e desagradavelmente equilibrados. Então, num repente, dobrou-se, agarrou no copo dele e lançou-o com força pelo ar. Viu-o voar, perdendo o líquido conforme volteava no ar e, sem conseguir evitar um sorriso, viu-o aterrar intacto na areia. “O copo não tem culpa e, além do mais, alguém podia cortar-se”, pensou para justificar o sorriso: uma parte de si queria muito que o copo se partisse.
– Então? – perguntou o homem, do cimo das escadas e agarrado à maçaneta da porta lateral do restaurante.
A mulher, ainda parada ao lado do seu copo, levantou a mão num aceno indiferente e sorriu com malícia, comprazendo-se nas várias possibilidades que imaginou para o aborrecer. Prejudicar. Magoar. “Sentimentos muito próprios da quadra”, ironizou para si, reforçando o sorriso.
– Vou já – disse a mulher, com veludo na voz, um brilho nada natalício no olhar e, depois de um ligeiro toque no copo, tombando-o, voltou à ceia de Natal, sempre a sorrir.