quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Espuma dos Dias (xiii. fim)

Quinta-feira. 26/11/2015. 11:55

O engenheiro olhou para o advogado com ar de gozo. O causídico arregalou as sobrancelhas e desafiou:
– Diga lá, engenheiro…
O engenheiro abanou a cabeça, com uma expressão contida:
– Não é nada.
– Diga lá, homem – insistiu o advogado. – Desembuche!
O engenheiro abriu um enorme sorriso mas não disse nada.
– A coisa correu mesmo bem, hã? – lançou o advogado, arrumando os papeis.
– Bem?! – riu-se o engenheiro. – Melhor era impossível, doutor. Oiça o que eu lhe digo, melhor era impossível!
– E a van Dunem?
– Ó doutor, essa é a cereja no topo do bolo. – O engenheiro levantou-se. – E, ainda por cima, ninguém pode dizer nada, doutor. Nada!... Ninguém pode dizer nada!
– A Alda disse-me que a Fernanda pôs no twitter que era uma grande notícia e a Estrela que melhor era difícil.
– Eu vi. Eu vi. – O engenheiro piscou o olho, fez uma careta e, com um súbito ar sério e compenetrado, declarou: – Mas isso foi porque era uma mulher e negra, doutor. Esses comentários resultam do avanço civilizacional que a nomeação da mulher encerra. Só isso. Aliás, logo à tarde, todas as almas progressistas deste país vão ficar emocionados quando ela tomar posse. Todas!
O advogado concordou com um aceno grave e circunspecto.
Os homens olharam então um para o outro e desataram a rir à gargalhada.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

A Espuma dos Dias (xii)

Terça-feira. 17/11/2015. 17:55

O homem sua e sorri enquanto a passadeira rola rapidamente debaixo dos seus pés. Envaidece-se dos quilómetros percorridos, da velocidade média e do sorriso descontraído que ainda ostenta no espelho à sua frente. Considera-se numa forma invejável – assim mesmo, invejável! – e, num bamboleio cheio de intenção e estilo, aumenta a velocidade do aparelho. E sua mais. Sente o esforço e convence-se que o faz sem dor, quase sem dificuldade. Continua a sorrir. As pernas ganham um ritmo frenético como se tivessem vontade própria. Só o suor denuncia a intensidade do exercício; o custo físico da corrida. Mais rápido. Mais forte. O homem à sua frente no espelho já não está a sorrir, apenas a escorrer e com os olhos a arder do suor. Com dificuldade, procura perceber se o estão a ver. A admirar. O corredor corre para si, o homem corre para os outros. Devia abrandar mas não consegue, a máquina vai apitar sempre que ele diminuir a velocidade. Não pode. Tem de continuar a correr mas o suor já não lhe deixa, justifica-se. Salta, põe os pés de lado e agarra-se para retomar o sorriso descontraído, sem sucesso, enquanto limpa a testa e os olhos com as costas da mão. Pára a passadeira e pisa-a com temor, um pé, equilibra-se, e só depois o outro. Inspira e expira profundamente. Concentra-se nas pernas que parecem ter gostado de ter vontade própria e não lhe obedecem. Tenta sorrir como se não fosse nada com ele, ainda que saiba que, se não estivesse agarrado, se estatelava na passadeira ou no chão ou de encontro aos outros aparelhos, para onde as pernas o levassem. Exagerou. Continua a tentar mas o seu reflexo não lhe mostra mais do que os dentes num esgar de flagelado. Exagerou demais. Rilha os dentes, semicerra as pálpebras, endurece a expressão. E vê que o homem no espelho à sua frente está furioso. Odeia. Está capaz de matar. “A esta hora já devíamos estar a formar governo”, expira. “A culpa é do Cavaco”, inspira. “A culpa é do Cavaco”, expira. “A culpa é do Cavaco!”, inspira.