quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Podes repetir?

– Qual era a pergunta?
– Qual pergunta?
– Podes repetir?
– Qual pergunta?
– Não, é isso. Podes repetir a pergunta que me fizeste?
– Fiz-te uma pergunta?
– Não era essa.
– Não era essa, o quê?
– A pergunta, não era essa.
– Qual essa?
– “Fiz-te uma pergunta?”.
– Não estou a perceber, quem é que fez a pergunta, eu ou tu?
– Tu. Eu estava a dizer que a pergunta que tu me fizeste não era “Fiz-te uma pergunta?”.
– Não estou a perceber nada… Vamos recomeçar, pode ser?
– E tu fazes-me a pergunta?
– Ainda agora fiz uma, respondeste?
– Isso quer dizer o quê?! Que eu não respondo às perguntas?
– Às minhas, não.
– Eu não sei qual era a pergunta, como é que queres que eu responda?
– “Vamos recomeçar, pode ser?”
– Já me perguntaste isso.
– Pois, respondeste?
– Respondi…
– Ah! Até que enfim…
– Até que enfim, o quê?
– Uma resposta a uma pergunta!... É por isso que tu não sabes o que te perguntei…
– Mas queria saber. Porque é que não sei?
– Porque nunca respondes às perguntas que te faço.
– Respondi agora.
– Respondeste?
– Respondi.
– Outra vez!... É pena é ser sempre a mesma pergunta.
– Coerência.
– Vou repetir as perguntas que te fiz e tu respondes, pode ser?
– Vais repetir a pergunta que me fizeste?
– Tu tens um problema, só pode… Responde, não faças outra pergunta.
– Eu quero é que tu me faças a pergunta que me fizeste.
– Eu disse-te que ia repetir as perguntas que te fiz…
– Boa!
– E perguntei-te: pode ser?
– Já percebi.
– O que é que percebeste?
– Estás a brincar, não estás?
– Não percebeste.
– Recomeça. Querias recomeçar, não era? Recomeça!
– Estás a responder à minha pergunta do “pode ser”?
– Não, não estou a responder a nada! Não queres perguntar, não perguntas! Não queres recomeçar, não recomeças! Eu também já não te quero responder mais!
– Mas respondeste a alguma coisa?
– Respondi, respondi a duas perguntas... Não, a três, esta também conta. Respondi a três perguntas.
– Sempre à mesma, “Respondeste? Respondi.”, mas, na realidade, não respondeste a nada ou, pelo menos, a mais nada.
– Eu não sei qual era a pergunta!
– Porque é que será?
– Ah… A culpa agora é minha?
– Outra.
– Outra, o quê?
– A uma pergunta minha seguiu-se, mais uma vez, uma pergunta tua e não uma resposta.
– São respostas.
– As perguntas que tu fazes são respostas?
– O que achas?
– Eu não acho nada… Só perco.
– Não queres perguntar, não perguntes, mas, depois, não digas que não falamos.
– Não achas que devíamos falar?
– O que é isso?
– A pergunta. Isso era a pergunta.
– “Não achas que devíamos falar?”
– Sim.
– Ah!... Pois era.
– Mas ainda bem que já falámos.
– Já?
– Sim, não acabámos de o fazer?
– Achas?
– E tu?
– Se tu achas que sim, quem sou eu para achar o contrário?
– Ora nem mais.
– Estamos bem?
– Do melhor.
– Boa! Isso é que é importante.
– Importantíssimo...

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Torta

Ele abanou a cabeça e fez uma careta de desagrado.
– Não sei – acabou por dizer.
Ela olhou para ele com os olhos muito abertos e perguntou:
– Não gostas?
– Não sei – repetiu, hesitante , estava à espera de melhor.
– Desculpa?
– Estava à espera que fosse melhor – adornou ele, após nova hesitação.
– Entre estares à espera que fosse melhor e um “não sei” com uma careta horrível vai uma grande distância, não achas?
– Não foi horrível.
– Se não foi, foi por pouco. – Ela esticou a mão para a torta. – Não queres mais?
Ele olhou para ela, depois para a torta, novamente para ela e acabou por se fixar na torta, com ar contemplativo.
– Queres mais? – inquiriu ela, incrédula.
– Pode ser só um bocadinho.
– Então, mas… – A incredulidade dava lugar a uma súbita fúria, que lhe atabalhoava o raciocínio. Respirou fundo e insistiu: – Queres mais?
– Posso ter-me precipitado.
Ela suspirou, agarrou na torteira, levantou-se da mesa e levou a torta com ela.
– Então?! – protestou ele, franzindo o sobrolho.
– A próxima sai melhor – disse ela. – Esta vai para o cão.
Percebendo que ela falara nele, o animal levantou o focinho e olhou-a, expectante. Ela sorriu-lhe e o cão levantou-se de um salto.
– Ele quer – constatou ela.
– Eu também – replicou ele.
– Ele não está à espera de melhor – retorquiu ela.
O cão abanava a cauda furiosamente e olhava-a animadíssimo.
Nero, o irritante Pinscher do 4.º esquerdo, andara meses a anunciar os tempos de leite e mel que vivera enquanto os seus humanos não se separaram mas ele, até há três maravilhosas e surpreendentes experiências gastronómicas atrás, não só não acreditara como desdenhara sempre com uma rosnadela intimidatória, o que, se a torta lhe viesse agora a cair no prato esmaltado, estava pronto a reconsiderar e a aceitar, por uma vez, “uma vez sem exemplo”, determinou, a aceitar algo do que o Nero lhe ladrava como um louco furioso sempre que se encontravam no parque.

– Não acredito!
– Estou-te a dizer, foi uma torta de laranja inteira. Uma torta de laranja in-tei-ra.
– Se calhar já não estava boa.
– Estava boa e era fresquíssima. Acabadinha de fazer.
– Não acredito. Toda?
– Toda!
– Alguma coisa devia ter.
– Não tinha nada. Estava boa.
– Não pode ser.
– Estou-te a dizer. Não sei quantos ovos, não sei quantas laranjas, não sei quando tempo na Bimby e no forno e no fim…
– Cão.
– Sim.
– Toda?
– Toda.
– Não se acredita.
– Eu comi uma fatia e ela nem sei se provou… Foi toda para o cão.
– É de cortar os pulsos!
– E o pior…
– Há pior?
– Talvez não seja pior mas é tão mau como…
– Tu não comeste.
– Comi uma fatia.
– E o cão comeu o resto.
– Não, o cão comeu tudo, não foi resto nenhum. E o pior é que o sacana parecia que estava a gozar. No fim, veio-me dar uma pancadinha com o focinho como se estivesse a gozar comigo ou a agradecer a minha parvoíce, nem percebi.
– Era a mesma coisa.
– O quê?
– Agradecer a tua parvoíce também era gozar contigo.

– Ontem, fiz-lhe a torta, Neide. A torta de laranja.
– Ao Rodolfo?
– Não, ao Varela.
– E?
– Fez uma careta como se estivesse horrível. Só comeu uma fatia.
– Não estava boa?
– Estava óptima.
– Então porque é que ele só comeu uma fatia?
– Eu não lhe dei mais. A careta ia-me matando.
– Tem que ter mais paciência, senhora.
– Porquê ao Rodolfo?
– Porquê ao Rodolfo, o quê?
– Quando eu disse que fiz a torta, perguntaste se a tinha feito para o Rodolfo.
– Ah! Sim… É que ele hoje fez um cocó amarelo vivo e um pouco deslaçado quando foi ao parque.
– E achas que eu ia fazer uma torta para o cão?
– Ele não comeu?
– Comeu, comeu toda menos uma fatia. Deslaçado?
– Meio liquido mas sem ser bem. – A mulher riu-se da sua própria explicação Acho que os cães não estão muito preparados para comer tanta laranja. Ah!... e havia de ver os outros cães a cheirarem, estavam doidos.
– Eu é que estou a ficar doida, Neide. Doida. E nem sequer provei a torta!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Cinesiologia Amadora Localizada

Cavalheiresco, ele abre-lhe a porta e deixa-a sair à sua frente. Ela vira-se para trás, para agradecer e despedir-se, e depara-se com ele a admirá-la, com uma expressão imbecil e um sorriso demasiado adocicado.
– É mais alguma coisa? – pergunta ela, incomodada. Ele abana a cabeça sem tirar o sorriso. Ela insiste: – Então, para que é esse sorrisinho peganhento?
O sorriso desfaz-se quase num beicinho de inocência e o homem declara num tom magoado: – Estava só a olhar para ti…
– Ah… – A mulher dá um passo para o meio do passeio e roda lentamente sobre si própria. – E agora, já viste tudo?
– Eu estava só a olhar, Cristina. Não é preciso seres tão teatral.
– Eu é que sou teatral?! Tu com um sorrisinho lambido e olhos de carneiro mal-morto e eu é que estou a ser teatral?
– Eu só estava a sorrir, Cristina, e estava a sorrir porque estava a gostar…
– Do que estavas a ver? – interrompe-o ela.
Ele confirma em silêncio, escondendo (mal) um sorriso matreiro que quer que ela veja.
A mulher abana a cabeça, franze a cara e respira fundo pelo nariz.
– Vai-te lixar, Jorge. Quem não te conheça que te compre.
– Não posso apreciar a minha ex-mulher, é isso?
– Não, com um sorrisinho desses, não! Parece mal. Principalmente, se a tua ex-mulher estiver a ver. – A mulher sorri. O homem não. Ela continua: – Queres apreciar, sonhar e ficar com um sorrisinho idiota tens de o fazer quando a tua ex-mulher te virar costas…
– Sorrio para as tuas nádegas?
– É o que os homens normais fazem…
– Estás de costas, como é que sabes?
A mulher encolhe os ombros, vira-se e afasta-se.
– Sei – responde, sem parar, depois de dar cinco passos. – Nós sabemos, Jorge – e segue, sem se despedir ou olhar para trás. – Nós sabemos.
Compenetrado a estudar determinadas características e efeitos localizados do andar da ex-mulher a afastar-se, o cinesiológico amador já não a ouve.


segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Transparente

De repente, no meio da metralha com que me descreve o vizinho, a mulher lembra-se da mãe dele, que já morreu e emociona-se:
– Ah… a dona Berta. A dona Berta era uma grande mulher… Uma grande mulher. Não tem nada que ver com o filho, esse gabiru. A dona Berta era uma senhora. – A mulher levanta-se, faz uma ligeira vénia enquanto pede baixinho – Que a terra não lhe pese – e torna a sentar-se para continuar em grande velocidade: – Uma grande mulher… E o marido, o senhor António, também; também era uma grande mulher! Agora o filho, esse porco imundo, esse filho de uma grande puta… Isso não presta para nada!