Terça-feira. 17/11/2015. 17:55
O homem sua e sorri enquanto a passadeira
rola rapidamente debaixo dos seus pés. Envaidece-se dos quilómetros percorridos,
da velocidade média e do sorriso descontraído que ainda ostenta no espelho à
sua frente. Considera-se numa forma invejável – assim mesmo, invejável! – e, num
bamboleio cheio de intenção e estilo, aumenta a velocidade do aparelho. E sua
mais. Sente o esforço e convence-se que o faz sem dor, quase sem dificuldade. Continua
a sorrir. As pernas ganham um ritmo frenético como se tivessem vontade própria.
Só o suor denuncia a intensidade do exercício; o custo físico da corrida. Mais
rápido. Mais forte. O homem à sua frente no espelho já não está a sorrir,
apenas a escorrer e com os olhos a arder do suor. Com dificuldade, procura
perceber se o estão a ver. A admirar. O corredor corre para si, o homem corre
para os outros. Devia abrandar mas não consegue, a máquina vai apitar sempre
que ele diminuir a velocidade. Não pode. Tem de continuar a correr mas o suor já
não lhe deixa, justifica-se. Salta, põe os pés de lado e agarra-se para
retomar o sorriso descontraído, sem sucesso, enquanto limpa a testa e os olhos
com as costas da mão. Pára a passadeira e pisa-a com temor, um pé,
equilibra-se, e só depois o outro. Inspira e expira profundamente. Concentra-se
nas pernas que parecem ter gostado de ter vontade própria e não lhe obedecem. Tenta
sorrir como se não fosse nada com ele, ainda que saiba que, se não estivesse
agarrado, se estatelava na passadeira ou no chão ou de encontro aos outros
aparelhos, para onde as pernas o levassem. Exagerou. Continua a tentar mas o
seu reflexo não lhe mostra mais do que os dentes num esgar de flagelado. Exagerou
demais. Rilha os dentes, semicerra as pálpebras, endurece a expressão. E vê que
o homem no espelho à sua frente está furioso. Odeia. Está capaz de matar. “A
esta hora já devíamos estar a formar governo”, expira. “A culpa é do Cavaco”,
inspira. “A culpa é do Cavaco”, expira. “A culpa é do Cavaco!”, inspira.
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