segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A Entrevista

José soprou, rosnou, resfolegou e riu. Depois, pegou no telemóvel e ligou:
– Eu não chamei filho da mãe a ninguém – disparou José logo que reconheceu a voz feminina que o cumprimentara.
– Bom dia, engenheiro – repetiu a voz feminina, certa que o homem não a ouvira da primeira vez.
– Só se for para si, Clara – replicou José, com secura.
– Já viu a prova da entrevista? – perguntou Clara, adivinhando a razão do telefonema.
– Do texto – corrigiu José. – Já, já vi. É por isso que lhe estou a ligar – reconheceu e, de pronto, reincidiu: – Eu não chamei filho da mãe a ninguém!
A voz feminina trinou num riso forçado.
– Nisso tem razão, engenheiro, o senhor não chamou filho da mãe a ninguém…
– Nem chamei bandalho ao Santana.
– Pois não – apressou-se a concordar a voz feminina –, também não foi bandalho o que chamou ao Santana.
O estado de espírito de José mudou com a rapidez com que Clara lhe dera razão.
– Podia ter-lhe chamado bandalho – admitiu José, com bonomia. – Se quer saber a verdade, já nem me lembro o que é que lhe chamei… O que é que eu lhe chamei?
– Ó engenheiro… – Clara lançou um risinho pueril. – Há palavras que não ficam bem na boca de uma senhora…
José deu uma gargalhada.
– Uma senhora… Essa é boa! E aquilo que me disse no fim do almoço?!
– O que se diz no fim dos almoços… – Clara fez uma pausa procurando ser mais engraçada e original, mas, antes que perdesse o tempo da piada, concluiu: – O que se diz no fim dos almoços, fica no fim dos almoços.
José riu com espalhafato.
– E de resto? – perguntou Clara, aproveitando o bom-humor do engenheiro.
– Está excelente. Está muito bem.
– E os filhos da mãe e os bandalhos e…
– Podem ficar assim – interrompeu José, divertido.
– Tem a certeza? – Troçou Clara. – Não quer que coloquemos os exactos termos que usou?
– É melhor não… – José riu. – Nem sei se podiam pô-los. – José deu duas gargalhadas cheias de si próprio. – De qualquer maneira, assim até é melhor, se for preciso, eu posso sempre dizer que vocês alteraram e deturparam aquilo que eu disse.
– Mas eu tenho a gravação… – respondeu Clara no mesmo tom divertido e amigável.
– E ainda bem, Clara, ainda bem que a tem: assim não me pode desmentir se eu disser que não usei aqueles termos. – José continuava a falar no mesmo tom animado. – Não os usei, pois não?
– Não, na realidade, o engenheiro não usou os termos que vamos publicar – Clara respondeu no mesmo tom descontraído mas algo não lhe soou bem, o que a levou a usar o plural e um tom quase subserviente ao concluir: – mas nós podíamos mostrar a gravação original…
– Podiam – aceitou José, ainda em tom jocoso –, poder podiam mas não era a mesma coisa. – José não se riu da sua graça e Clara ouviu-a como um mero interlúdio para o que o engenheiro ainda lhe ia dizer. Então, após o necessário momento de silêncio dramático, José explicou sussurrante: – E não era a mesma coisa porque eu também tenho uma gravação igual à sua, Clarinha. Igualzinha... Só que a minha não acaba no fim do almoço… – José estalou a língua e inspirou ruidosamente como se lhe custasse o que ia dizer e, após expirar pelo nariz, concluiu ainda sussurrante mas em tom mais grave: – Foi uma pena não termos ido almoçar a Las Vegas, Clara, uma grande pena. É que sabe o que dizem não sabe? – Clara não lhe respondeu. José continuou, melífluo:   Claro que sabe, até faz piadas sobre isso. O que se diz no fim dos almoços em Las Vegas, fica em Las Vegas, agora o que se diz no fim dos almoços em Lisboa pode-se ficar sempre a saber... E muitas vezes sabe-se. E isso é uma chatice, Clara. Um grande incómodo, realmente...

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Um livro.Um cd.

– E de quem foi a culpa, afinal? – questionou Isabel, sentindo um nó na garganta no final da pergunta.
João ouviu-a e levantou os olhos na direcção da mulher mas sem erguer a cabeça.

Entre os dois haviam decidido que a separação era a única solução. Uma separação mais indiferente que pacifica mas que se fizera sem atritos, nem discussões, ao contrário do resto do tempo que haviam passado juntos.
João, sentado no sofá da sala da casa de Isabel, onde os dois haviam habitado, tinha minutos antes gracejado com a situação: “Se calhar, devíamos ter estado em continua separação”. Mas Isabel não lhe respondera, nem sequer sorrira. E ele, já com tudo arrumado no automóvel – na verdade, apercebeu-se então que tinha levado muito pouca coisa –, deixou-se ficar sentado no sofá de três lugares, em silêncio, à espera de qualquer coisa que servisse de ponto final, olhando para ela sentada num sofá individual, na outra ponta da pequena sala. “Já levaste tudo?” perguntou ela, quebrando o silêncio. Ele respondeu que sim. “Era aquilo tudo?”, ironizou ela, sem esconder uma ponta de desconsolo na voz. “Já tinha levado a roupa” disse ele, comprometido. “Também pus coisas nas malas da roupa”, mentiu como se tivesse de justificar o pouco volume de bens pessoais que tinha trazido para casa dela. Ela encolheu os ombros, sorriu sem vontade e ouviu-se perguntar: “E de quem foi a culpa, afinal?”.

– Não sei... – respondeu João, desviando o olhar. – Acho que foi dos dois.
Isabel lançou-lhe um olhar inquiridor mas, antes que ele o visse, corrigiu:
– Isso agora não é importante. Desculpa.
Olharam-se os dois, João concordou com a cabeça e trocaram pálidos sorrisos resignados.
Isabel pousou as mãos na ponta dos braços do sofá e ergueu-se, decidida. Já em pé, olhou para a televisão apagada e constatou:
– As coisas são o que são e não só não morreu ninguém como não saímos disto pior do que entrámos.
João levantou-se, respirou fundo, cerrou os lábios, concordou com um aceno de cabeça e, por fim, disse:
– Sim, isso é verdade... – João sentiu que lhe faltou nomeá-la no fim da frase. “Sim, isso é verdade, Isabel” mas custava-lhe dizer o nome dela. “Isabel.” – Acho que ficámos melhores. Pessoas melhores.
Isabel percebeu que ele não entendera que ela só se estava a referir à televisão que tinham comprado e que ficara para si, mas não o esclareceu, e saiu da sala em silêncio. Ele seguiu-a para o hall de entrada.
– Gostava de te dar uma coisa, João.
– O quê?
– Vou buscar.
Perplexo e a tentar adivinhar o que seria, João ficou a vê-la entrar no quarto, ouviu-lhe os passos a contornar a cama, o som de uma gaveta a abrir e a fechar e os passos a voltarem na sua direcção.
“Um livro”, pensou João à vista do embrulho.
– Eu… – João hesitou, estava a estranhar o embrulho. – Eu… – João esticou a mão direita para a agarrar o livro embrulhado. Agarrou-o e confirmou que era um livro. – Abro?
Isabel encolheu os ombros:
– Se quiseres.
João tentou decifrar o tom mas não conseguiu.
– Eu… Eu deixei-te um cd – disse João, agarrando o livro embrulhado com ambas as mãos, curioso mas sem se decidir a desembrulha-lo.
– Foi?
– Sim, dos…
– Sabes que eu vou deitá-lo fora – interrompeu Isabel.
– Vais?!
– Sim – confirmou a mulher – e provavelmente parti-lo. – João olhou assustado para o embrulho que tinha nas mãos. Isabel disse a rir: – Está descansado, é só um livro.
– Vais mesmo deitar fora o cd?
Isabel abanou a cabeça para cima e para baixo e completou:
– E provavelmente, parti-lo – repetiu, com gosto.
– Mas… – João sentia o livro queimar-lhe os dedos. – Mas se nem sabes qual é.
– Seja qual for. – Isabel ergueu o ombro direito e fez uma careta. – Não é isso que interessa.
– Posso ir buscá-lo?
– Ao cd?
– Sim, se vais deitá-lo fora.
– Não – disse Isabel, secamente. – Não mo deste?
– Dei. – João olhou para o embrulho que mantinha na horizontal agarrado pelas duas mãos. – E se eu deitar o livro fora?
– Deitas. É teu.
– Não ficas chateada?
– Fico.
– Mas deitas o meu cd fora…
– O meu cd. O teu livro. Tu. Eu. – Isabel deu dois passos de lado, aproximando-se da porta. – Lembras-te da gaivota?
– Qual gaivota?
– Da canção. – João acenou que se lembrava. Isabel continuou: – Como ela, somos livres. Livres. Queres deitar o livro fora? – Isabel abriu as mãos e os braços. – Be my guest. És livre. É teu.
João engoliu em seco e virou-se para a porta.
– Ok. – Olhou para a fechadura e anunciou: – Vou-me embora.
Isabel puxou o trinco e abriu a porta.
Deram dois beijos como se fossem amigos, olharam-se nos olhos, onde não se viram, e tentaram e conseguiram dizer adeus ao mesmo tempo, o que foi a última coisa que fizeram em conjunto.