– A filha é
minha – disse a mãe.
– É, mas também
é minha – replicou o pai.
– Ela não está
contigo!
– Porque tu não
deixas.
– Tu saíste de
casa.
– Nós
concordámos que era o melhor.
– Mas foste tu
que saíste!
– A casa é tua.
– Podias ter
proposto arrendá-la.
– Se eu te
arrendasse a casa e ficasse aqui, a Maria ficava comigo?
– Eu não te
arrendava a casa.
– Mas se
arrendasses… – Insistiu o pai. A mãe abanou a cabeça negativamente. Ele reclamou:
– Tu é que disseste que eu podia ter proposto isso.
– Propuseste?
– Não.
– Então…
– A questão nem
é essa. Na verdade, a questão é se, no teu entender, havia alguma forma de a
Maria ficar comigo?
– Não. A Maria é
minha.
– Desculpa mas a
Maria não é tua…
– Minha filha.
Eu queria dizer que a Maria é minha filha, não me deixaste acabar.
– Tu acabaste.
Tu querias dizer aquilo. Tu querias dizer que a Maria é tua, ponto final.
– Agora tu é que
sabes o que eu quero dizer – a mulher riu-se. – Era só o que faltava. A Maria é
minha filha.
– E minha.
– Isso agora… –
murmurou a mulher, baixando ostensivamente o olhar.
– “Isso agora”,
o quê?
– “Isso agora, o
quê”, o quê?
– Tu é que
disseste “isso agora”.
– Eu, não…
Quando?
– Tu disseste
que a Maria é tua filha, eu disse, e minha, e tu insinuaste sibilinamente isso
agora…
A mulher deu uma
gargalhada e lançou, com um sorriso provocador:
– Tu andas a ler
muitos livros. Eu insinuei sibilinamente?! Eu nem sei o que isso é!
– É quando uma
pessoa diz uma coisa baixinho, como se fosse um segredo – explicou a Maria, que
ouvia a discussão dos pais enquanto brincava no chão da sala atrás do sofá. Os
pais deram um passo na sua direcção, para a conseguir ver e olharam-na com
admiração. Ela encolheu os ombros, baixou os olhos para as bonecas que bebiam
chá e concluiu: – Um segredo ou uma revelação tão bombástica que não pode ser
dita em voz alta.
– Estás a ver –
recriminou a mãe, virando-se para o pai. – Achas que alguém alguma vez iria
insinuar sibilinamente que ela não é tua filha?
– Tu fizeste-o –
respondeu a menina, com uma miniatura de chávena de chá em plástico na mão. –
Não é que quisesses incutir qualquer dúvida no pai, que certamente não as tem,
mas fizeste-o com a intenção deliberada de o perturbar.
A mãe
reconheceu-lhe razão com uma careta e um piscar de olho. Feliz, a filha
mostrou-lhe a língua.
– Se calhar por
isto é que dizem que não se deve discutir em frente aos filhos – disse a mãe.
– Não deve ser
bem por isto – declarou o pai, sorrindo embevecido.
– As minhas
amigas já terminaram o chá – anunciou a Maria, levantando-se e fitando os pais
com ar decidido. – Mas eu não comi nada.
Os adultos
sorriram-lhe. As bonecas pareceram ficar um pouco melindradas.
– Isto é tudo a
fingir – segredou a miúda, para as bonecas não ouvirem –, não há chá e os
brownies são de plástico. Eu tomo o chá com elas mas fico sempre cheia de fome.
Que horas são, mamã? – perguntou, já em voz alta.
A mãe olhou para
o relógio de pulso e respondeu que eram quase oito horas.
A Maria abanou a
cabeça para cima e para baixo e, caminhando lentamente para o seu quarto,
comunicou:
– Uma hora muito
boa para irmos jantar. – Os pais entreolharam-se pouco convencidos. – Todos! –
A Maria continuou a caminhar, levantando a voz conforme se afastava: – Eu
vou-me só calçar. E vocês, os pais, em respeito pelo superior interesse da
criança, ou seja, eu – exclamou num grito –, vão-me levar a jantar, porque
temos umas coisas para esclarecer e decidir. Dez minutos, meus caros. Dez
minutos e vamos!