terça-feira, 19 de abril de 2016

No Superior Interesse da Criança

– A filha é minha – disse a mãe.
– É, mas também é minha – replicou o pai.
– Ela não está contigo!
– Porque tu não deixas.
– Tu saíste de casa.
– Nós concordámos que era o melhor.
– Mas foste tu que saíste!
– A casa é tua.
– Podias ter proposto arrendá-la.
– Se eu te arrendasse a casa e ficasse aqui, a Maria ficava comigo?
– Eu não te arrendava a casa.
– Mas se arrendasses… – Insistiu o pai. A mãe abanou a cabeça negativamente. Ele reclamou: – Tu é que disseste que eu podia ter proposto isso.
– Propuseste?
– Não.
– Então…
– A questão nem é essa. Na verdade, a questão é se, no teu entender, havia alguma forma de a Maria ficar comigo?
– Não. A Maria é minha.
– Desculpa mas a Maria não é tua…
– Minha filha. Eu queria dizer que a Maria é minha filha, não me deixaste acabar.
– Tu acabaste. Tu querias dizer aquilo. Tu querias dizer que a Maria é tua, ponto final.
– Agora tu é que sabes o que eu quero dizer – a mulher riu-se. – Era só o que faltava. A Maria é minha filha.
– E minha.
– Isso agora… – murmurou a mulher, baixando ostensivamente o olhar.
– “Isso agora”, o quê?
– “Isso agora, o quê”, o quê?
– Tu é que disseste “isso agora”.
– Eu, não… Quando?
– Tu disseste que a Maria é tua filha, eu disse, e minha, e tu insinuaste sibilinamente isso agora…
A mulher deu uma gargalhada e lançou, com um sorriso provocador:
– Tu andas a ler muitos livros. Eu insinuei sibilinamente?! Eu nem sei o que isso é!
– É quando uma pessoa diz uma coisa baixinho, como se fosse um segredo – explicou a Maria, que ouvia a discussão dos pais enquanto brincava no chão da sala atrás do sofá. Os pais deram um passo na sua direcção, para a conseguir ver e olharam-na com admiração. Ela encolheu os ombros, baixou os olhos para as bonecas que bebiam chá e concluiu: – Um segredo ou uma revelação tão bombástica que não pode ser dita em voz alta.
– Estás a ver – recriminou a mãe, virando-se para o pai. – Achas que alguém alguma vez iria insinuar sibilinamente que ela não é tua filha?
– Tu fizeste-o – respondeu a menina, com uma miniatura de chávena de chá em plástico na mão. – Não é que quisesses incutir qualquer dúvida no pai, que certamente não as tem, mas fizeste-o com a intenção deliberada de o perturbar.
A mãe reconheceu-lhe razão com uma careta e um piscar de olho. Feliz, a filha mostrou-lhe a língua.
– Se calhar por isto é que dizem que não se deve discutir em frente aos filhos – disse a mãe.
– Não deve ser bem por isto – declarou o pai, sorrindo embevecido.
– As minhas amigas já terminaram o chá – anunciou a Maria, levantando-se e fitando os pais com ar decidido. – Mas eu não comi nada.
Os adultos sorriram-lhe. As bonecas pareceram ficar um pouco melindradas.
– Isto é tudo a fingir – segredou a miúda, para as bonecas não ouvirem –, não há chá e os brownies são de plástico. Eu tomo o chá com elas mas fico sempre cheia de fome. Que horas são, mamã? – perguntou, já em voz alta.
A mãe olhou para o relógio de pulso e respondeu que eram quase oito horas.
A Maria abanou a cabeça para cima e para baixo e, caminhando lentamente para o seu quarto, comunicou:
– Uma hora muito boa para irmos jantar. – Os pais entreolharam-se pouco convencidos. – Todos! – A Maria continuou a caminhar, levantando a voz conforme se afastava: – Eu vou-me só calçar. E vocês, os pais, em respeito pelo superior interesse da criança, ou seja, eu – exclamou num grito –, vão-me levar a jantar, porque temos umas coisas para esclarecer e decidir. Dez minutos, meus caros. Dez minutos e vamos!


sexta-feira, 8 de abril de 2016

O "Caso das Bofetadas"

Lisboa, 7 de Abril de 2016. 20:15 h.

– Mas isso foi o sms que foi para o Expresso – reclamou o Soares.
– Um sms aparvalhado – insistiu o Costa, com cara de poucos amigos. – Podia ter deitado tudo a perder.
O Soares amuou, ficou a olhar para o Primeiro, como se estivesse a ponderar se o havia de esbofetear ou não, e, por fim, perguntou com a voz embargada:
– Tu não falaste com o Galamba durante o dia, pois não?
O Costa acenou negativamente e concretizou:
– Só falámos a meio da manhã… Vou falar agora a seguir.
– Mas sabes que ele aprovou o meu texto?
– Sei, claro que sei e também concordei que era o fait-divers ideal para o dia de hoje – respondeu o Primeiro, mais descontraído com a menção ao Galamba. – E resultou, João, as tuas bofetadas foram a cortina de fumo perfeita: quase nem se falou do Draghi, do almoço ou do Conselho de Estado e nem da PJ ou da Interpol. Foi um dia de salutares bofetadas, seja lá o que isso for. – O Costa sorriu, deu uma pancadinha amigável no braço do Soares e concluiu: – Foi perfeito, a coisa correu especialmente bem mas o sms parece-me que era escusado, João.
– Mas foi ele que escreveu o sms – respondeu de pronto o Soares.
– O Galamba?!
– Sim, eu falei com ele e ele disse-me que a coisa estava a correr lindamente, tudo como se queria mas que estava a esmorecer rápido demais, que era preciso mais lenha na fogueira. Uma coisa simples mas composta, dúbia e com alguma graça…
– Tudo coisas que a ti não te assistem – implicou o Costa que, bem-disposto e seguro desde que soubera da intervenção do Galamba no sms, já era todo sorrisos. O Soares fulminou-lhe as luzidias bochechas com um olhar esbofeteador, a que o Costa respondeu com um piscar de olho cheio de maus sentimentos e um sorriso trocista. O Soares resfolegou baixinho e pôs a viola no saco. Satisfeito, o Costa deu o assunto por encerrado:– Vamos mas é embora que ainda temos de ir ao teatro
– Eu não vou – murmurou o Soares, cabisbaixo. – O Galamba disse-me para pedir desculpas formais e ficar em casa, como se estivesse de castigo… Temos de dar a ideia de que estamos a conter danos. Ou melhor, que tu estás a conter danos e a pôr-me no lugar.
O Costa riu com vontade mas depois pôs-lhe a mão no ombro, confortando-o e disse-lhe:
– Não fiques assim. Acho que já há qualquer coisa com a Joana Vasconcelos que já te está a tirar o lugar nas redes sociais. Amanhã a coisa está arrumada e tu continuas ministro. – O Soares levantou a cabeça e o Costa sorriu-lhe, sem mostrar os dentes. – Eu, entretanto, vou falar com o Galamba para confirmar as coisas, ficar a par da estratégia e dos resultados… e para saber o que hei-de dizer quando sair do teatro – riu-se como se o que dissera tivesse graça. – Então, até amanhã – e terminou a despedida com duas salutares palmadinhas na bochecha esquerda do Soares, que as encaixou com esforçado fair-play.