sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

As Cartas Secretas

(Ficção Politica*)

Mário deixou-se cair na cadeira com um profundo suspiro: a mentira tinha sido desmascarada. Não era a primeira que vez que era a apanhado a enublar a verdade, como dizia à mulher e aos filhos. “A politica é a arte de enublar a verdade quando é preciso”, repetia em casa o mantra que o João lhe ensinara.
“Não se trata de mentir, apenas de publicitar uma verdade alternativa”, explicara o João, que também deve ter espalhado a palavra pelo Trump. “Mas nem pensar em dizer-lhe”, pensou para se distrair, rindo. “Havia de ser bonito se alguém lhe dissesse que ele e o Trump são parecidos…”. O telemóvel a tremer fê-lo esquecer qualquer louco perigoso em que estivesse a pensar e obrigou-o a voltar a si. “Se bem que…”, riu-se, satisfeito consigo próprio, “também podia estar a pensar em mim.”
Agarrou no aparelho e ficou lívido quando leu o nome no ecrã. Respirou fundo, cerrou os dentes e atendeu.
– Mário! – Gritaram-lhe. – Isto é horrível, pá. Isto é um desastre completo. Uma bomba antónia. Uma tosta mística. Um prego no pão, um parafuso no prato!
– António? – interrompeu Mário, a medo. “Parvo mau”, pensou sem querer, distraído. “Parvo mau é mais correcto que louco perigoso.” Concentrou-se e voltou ao telefone: – És tu, António?
– Mário, pá, Mário… – O António suspirou, desalentado. – Quem é que havia de ser, palhaço?! Quem é que ainda te liga, homem?...  Mas quem é que ainda te liga?!
– Podia ser o João – alvitrou Mário, titubeante – ou o careca.
– Qual careca?
– Não sei muito bem o nome dele… Aquele do DN… O gajo adora-me, António. Adora-me. – Mário suspirou. O António sentiu-se ligeiramente nauseado e não o conseguiu interromper. Mário interpretou mal o silêncio do outro e continuou, emocionado: – Estava agora a ler a Opinião… As Cartas Secretas… Até me vieram as lágrimas aos olhos, António, eu segurei o barco, segui em frente, evitei os escolhos…
O António gargarejou uma espécie de riso trocista para o interromper: – Não sabes o nome dele…
– Acho que é André – apressou-se Mário, percebendo o sarcasmo.
– Deixa de te carecas, pá! O que te safa é o Marcelo. – O António endureceu o tom. – Olha que o Pedro Nuno diz que já não vales a pena e o João já me disse que está pronto, ainda não sabe é se quer. Se não fosse o Marcelo já tinhas ido de vela. – O António fez uma pausa para a mensagem ser absorvida e depois perguntou: – E por falar em Marcelo: ouve lá, não há mesmo nada assinado por ti?
– São e-mails, António.
– Ah! Pois… Por isso é que o Marcelo diz que enquanto não houver nada assinado por ti… Mas pode haver?
– Inexiste, António. Inexiste qualquer documento com essas características físicas.
– E mesmo que houvesse. – O António deu uma gargalhada. – Se houver ainda têm de provar que é a tua assinatura, que tenhas sido tu a assinar! Se for preciso vamos por aí.
– Mas não há, António, foi tudo por mail.
– E, se calhar, tu nem sabes assinar! Tu sabes assinar?!
– O João diz que está pronto?! – Interrompeu Mário, acabado de processar a anterior informação e passando, propositadamente, ao lado do rude gracejo. – Pronto para quê?
– Ele só me disse que já tem um piano em casa e dois ou três cachecóis e que, agora, por isso, já está pronto. Ainda não sabe é se vai rapar a cabeça.
– Mas disse isso em que contexto?
– No contexto de tu teres sido apanhado a mentir com quantos dentes tens na boca, pá, ou queres que te faça um desenho?
– Mas queres que me demita?
– Quer!
– Quer o quê?
– “Mas quer que me demita?” – corrigiu o António, duro. – Aliás, foi por isso mesmo que eu te liguei.
– Ah… – Mário engoliu em seco, sentiu os olhos marejarem e inquiriu em tom formal: – Mas quer que me demita?
– Ainda não, pá, ainda não mas depois falamos. Abraços – despediu-se o António, que desligou sem dar tempo de resposta.
Mário pousou o telemóvel, virou-se para o computador, fixo no Diário de Notícias, e releu As Cartas Secretas até deixar de conseguir destrinçar as letras com a água que lhe turvava a visão e encharcava a secretária.

*Os nomes foram alterados para proteger os inocentes