quinta-feira, 30 de abril de 2015

Isto não é uma conversa

Precisamos de conversar, sinalizou o telemóvel.
Precisamos?, escreveu.
Precisamos., responderam-lhe.
Porquê?
Porque não?
Eu não disse que não queria. Perguntei: porquê?
Porque precisamos.
É vago.
O que interessa não é isso.
Não? Então, o que é?
O conteúdo da conversa.
Diz.
O quê?
O queres dizer.
Temos de falar.
Também acho.
De quê?
Tu não sei, ainda não disseste.
E tu?
Da tua sanidade mental.
Da minha?!
Sim, da tua.
Porquê?
Isto não chega?
Isto?
Esta conversa.
Isto não é uma conversa.
O outro também dizia que aquilo não era um cachimbo.
O quê?
Um cachimbo.
Mas se era um cachimbo…
Pois, é como isto: uma conversa que tu dizes que não é uma conversa.
Isto é uma troca de sms.
O cachimbo também não era um cachimbo: era a imagem de um cachimbo.
Estás a insinuar que eu não sei o que é uma conversa?
Não estou a dizer.
Ah! Ao menos isso.
Falta a vírgula: “Não, estou a dizer.”
Não percebi.
Não estava a insinuar, estava a dizer!
Não se pode falar contigo!
Mas temos de o fazer…
Pois temos.
Achas que é mesmo necessário?
15.000 empregos, viste?
O quê?
O PS diz que vai criar 15.000 empregos.
Vi mas eu ainda sou do tempo em que o PS criava 150.000. Cento e cinquenta mil. Estes são uns meninos.
Pois, o Sócrates é que era. Era tudo à grande.
Era isto?
O quê?
O que tínhamos para falar?
Não, achas?
Eu não acho nada. Só perco…
Falamos depois, agora não posso.
Ok.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Outro Dia

Maria, escondida atrás dos seus óculos escuros, olhou para Rafael e estudou-lhe o rosto: a face bem escanhoada, os lábios finos a desenharem um sorriso trocista, o nariz ligeiramente torto que parecia reforçar a troça no sorriso, os olhos castanhos que não paravam em lado nenhum e uma pequenas rugas na testa que, se ela bem o conhecia, denunciavam o esforço que ele estava a fazer para se manter calado. Apesar do sorriso, a expressão de Rafael não escondia o enfado de estar ali, de estar calado, de estar à espera. “Tenho mais que fazer”, anunciava o rosto do homem. “Muito mais que fazer.”
Maria olhou para a esplanada em volta, quase vazia, para as chávenas de café na mesa, para o papel da conta com moedas em cima e para as suas próprias mãos. Esticou os dedos como se precisasse de confirmar a cor das unhas e, mantendo os olhos nas unhas, disse num tom meramente informativo:
– Causas-me repulsa, Rafael. Esse teu sorrisinho sonso e esse ar de quem não quer saber e está acima de tudo e de todos. Acho que és um triste, Rafael.
– É a tua opinião, Maria. – O homem ergueu e baixou o ombro direito, fez uma careta de quem não quer saber e concluiu calmamente: – E, hoje em dia, toda a gente tem direito à sua opinião e, o que é pior, a expressá-la em voz alta como se fosse alguma coisa de jeito e os outros tivessem a obrigação de a ouvir.
A mulher olhou para lá dele e pensou em como o amara em tempos, em como se sentira morrer e renascer quando faziam amor, em como precisara dele para ser feliz, para se sentir mulher, para viver.
– Eu era muito burra – suspirou Maria com um sorriso triste. Riu-se. – Eu era muito burra e tu sempre foste um animal. – A mulher gostou da surpresa na cara dele e continuou, sempre a sorrir: – E eu, burra, não via ou não queria ver o animal que tinha em casa. Quando tinha… Se é que tinha. O que é que andavas a fazer, Rafael?
– Pelos vistos, a dar-te tempo e espaço para pores o merdas lá em casa. Para se enfiar dentro de ti… Primeiro aí e depois aí. – O homem apontou para a cabeça e, depois, para o sexo dela. – Ou terá sido ao contrário?... Deve ter sido ao contrário: primeiro comeu-te e só depois é que te fez a cabeça.
Maria fez uma careta e replicou:
– Quando ele me comeu tu já não estavas lá.
– Dizes tu.
– Digo eu porque é verdade. – Maria esboçou um sorriso provocador e triunfante que se foi desvanecendo. – Podia ter acontecido enquanto tu ainda lá estavas mas nunca aconteceu. Só depois te termos acabado é que o fizemos.
– Mas ele já estava enfiado lá em casa. Na nossa casa – reclamou o homem.
– Ele começou a ir lá por causa do cão. Sabes isso muito bem.
Rafael não respondeu, fixou-se pensativo no tampo da mesa e, após uns momentos de silêncio, levantou a cabeça e declarou enfático:
– Uma mentira de uma mulher vale mais do que cinquenta verdades de um homem.
Maria suspirou.
– E?
– E?
– Sim, e depois? O que queres dizer com isso?
– Nada… Ouvi isto no outro dia.
Maria abanou a cabeça em sinal de desespero e cansaço.
– Continuas na mesma.
– Eu nunca vi o cão – declarou Rafael, como se se tivesse lembrado da razão porque dissera a frase anterior e fosse evidente a ligação entre as duas.
– Tu nunca viste foi a cadela. – Maria tirou os óculos. – O cão era meu, ele tinha era uma cadela que queria que o Boris emprenhasse.
– O Boris não pode emprenhar.
– Não era a cadela que queria que o Boris emprenhasse. – Maria mostrou-lhe a língua: conhecia-o bem demais para se deixar apanhar. – Era ele que queria que o Boris emprenhasse a cadela.
– E o Boris?
– O Boris, o quê?
– Queria emprenhar a cadela?
– Desculpa lá! - A mulher forçou-se a fazer uma pausa e respirou fundo e olhou em volta. Estava mais calma quando recomeçou: - Porque é que estamos a falar do Boris?
– Tu é que falaste nele. Tu é que disseste que o interesse do merdas não era comer-te mas que o teu cão lhe comesse a cadela.
– És muito desagradável…
– Não foi isso?
Maria fez uma careta, encolheu os ombros e concordou:
– Sim, foi isso. Ele queria que o Boris lhe emprenhasse a cadela. – A mulher deixou a cabeça descair para o lado direito e soltou um risinho desafiador. – Só depois é que me quis comer.
– Depois de eu ter saído…
– Sim, também não dava muito jeito que lá estivesses. – A mulher riu-se, divertida. – Era um bocadinho estranho: o Boris e a cadela no quintal, eu e o merdas no quarto e tu na sala a veres a Benfica TV… Não era um quadro muito bonito.
– Podia estar a ver outro canal.
– Ah… Pois! Isso é verdade, escusava de ser tudo tão mau.
– O Boris não gostou?
– Sei lá se o Boris gostou. Eu não gostei.
– Eu não quero saber.
– Pensei que quisesses. Quiseste vir tomar café comigo.
– Sim mas…
– Quiseste esclarecer certas coisas e disseste que gostavas que tivéssemos mais contacto. Afinal…
Rafael respirou fundo e passou a mão direita com força pela testa como se quisesse esfoliá-la. Tornou a respirar fundo, no que pareceu mais um suspiro que outra coisa, o que 0 aborreceu por sair assim, e fixou-se nas moedas em cima do papel da conta.
– Queres factura, Maria Luís?
A mulher olhou-o com furioso e bélico desprezo: era de esquerda, uma esquerda baixa e trauliteira, avançada nos costumes dos outros e distribuidora dos bens alheios; que troçava, gozava, injuriava e insultava à boca cheia e por dá cá aquela palha mas que só a si se reconhecia esses direitos e para quem o sentido do humor só o era se saísse da sua boca, da sua pena ou de alguns dos da sua cor.
Satisfeito com a reacção provocada, Rafael agarrou nas moedas com outro ar e levantou-se.
– Não queres? – insistiu.
– Continuas o mesmo porquinho reaccionário, Rafael. – Maria também se levantou.
– Não te chamas Maria Luís?
– Com muito gosto – rosnou a mulher.
Rafael arrumou a cadeira, acenou ao empregado com o polegar erguido e sorriu beatificamente na direcção de Maria.
– Não percebi uma coisa… – disse ele, depois de ela sorrir para o empregado que viera levantar as chávenas de café e despedir-se dela.
“Já não via há tanto tempo, Menina. Gostei muito de a ver. Dê cumprimentos ao senhor professor doutor. Ele está bem, o seu paizinho?”
“Vai andando, Joel, vai andando. Também gostei muito de o ver, Joel. Gostei muito.”
– Uma?! Não percebeste uma coisa? – troçou ela, depois do empregado se ir embora e eles começarem a caminhar lado a lado em direcção ao parque subterrâneo onde tinham os automóveis. – Deves andar a tomar alguma coisa para o cérebro. Uma conversa de quase meia hora e só não percebeste uma coisa?
– Podias ter beliscado a bochechinha do Joel – replicou ele, juntando os lábios numa boca pequenina e, imitando a voz dela mas num registo excessivamente ternurento, declamou, enquanto agitava a mão como se beliscasse a bochecha de alguém: – “Gostei tanto de o ver, Joel. Gostei muito, meu querido proletariozinho, se pudesse levava-o para casa, dava-lhe um banhinho e punha-o ao pé do Boris…”
Maria deu-lhe um murro no ombro mas não evitou um sorriso, enquanto lhe chamava parvalhão e lhe dizia pela centésima vez, ainda que há muito não lho dissesse, que não gostava do velho lambe-botas do Joel, esse proletário desnaturado e reaccionário que não sabia o que era bom para si e que acompanhara o paizinho no tempo em que ele era de um partido de direita que ele se recusava sequer a nomear. Mas o pai tinha visto a Luz e caminhado para ela, enquanto o Joel, esse velho patarata, continuava com o mesmo ar desenxabido e apatetado que têm os velhos de direita.
Para Maria, o paizinho era uma espécie de Benjamim Button: tinha rejuvenescido a caminho da velhice e estava hoje muito mais moderno e arejado do que alguma vez fora. As ideias de esquerda que o velho hoje debitava com a mesma certeza e iluminada lucidez com que debitara as de direita quase até aos oitenta anos pareciam ter propriedades miraculosas que lhe davam saúde e força.
“Nunca é tarde para ver a Luz”, dissera-lhe uma vez o merdas, com ar de quem perdoa.
“Nem todos, Luís Augusto, nem todos têm a capacidade que o meu pai teve de se redimir. De ponderar e pensar”, respondera-lhe ela, enquanto viam o Boris desajeitamente a tentar montar a cadela sem sucesso.
“É preciso tempo…”, dissera ele.
“Só o tempo não chega”, replicara ela, que ultimamente admirava o pai acima de quase todos os homens. “É preciso mais qualquer coisa. É preciso ter mais do que tempo. É preciso estar preparado, ter um espírito forte e uma boa natureza.”
“Isso é tudo verdade mas uma boa erecção e jeito para saltar para a espinha também faz muita falta.”
“Eu ainda estava a falar do meu pai, Luís Augusto.”
Maria riu-se, lembrando-se do ar de parvo do merdas ao dizer embaraçado:
“Eu estava a falar do Boris.”
– És um parvalhão – repetiu Maria, ainda a rir, empurrando Rafael com o ombro. – E afinal, o que é que não percebeste?
Rafael hesitou e, de repente, parou e ficou a olhar para ela.
– Ah… – lembrou-se. – Foi impressão minha ou chamaste-lhe merdas?
Maria parou um passo à frente, virou-se de lado e olhou-o com excessivo e teatral desdém até se desfazer num enorme sorriso, que acompanhou com um encolher de ombros que afastava qualquer arrependimento.
Ele riu-se mas, quando continuou, tentou fazê-lo com ar sério:
– Chamaste merdas ao grande Luís Augusto, esse farol da esquerda que tudo alumia com o seu saber e probidade? Merdas, o Luís Augusto?! Pensava que era só eu que achava isso.
– O tipo é um merdas – reconheceu Maria, tornando a encolher os ombros e baixando ligeiramente a cabeça, com ar de gozo – e a cadela, coitadinha, era um pãozinho sem sal. Estavam bem um para o outro: não se aproveitava nada.
– E o Boris?
– O Boris?! – Ela recomeçou a andar. Ele seguiu-a. – O Boris era como tu: muito entusiasmo e fanfarronice mas pouca aptidão natural para a coisa.
– Ai é?
– Sim, é – Maria encostou-se ao seu automóvel. Rafael pôs-se à sua frente, esticou o braço direito e apoiou a mão no friso da porta. Maria, passou a ponta do indicador e do dedo médio direitos pela sobrancelha e rematou: – Mas quando apanhou a cadela certa aprendeu e é um espectáculo digno do National Geographic…
– Eu? – interrompeu Rafael, olhando-a nos olhos.
– Não, o Boris – respondeu ela, com implacável frieza, mantendo o olhar.
Sorriram um para o outro.
Maria beijou-o na bochecha esquerda e saiu pela sua direita. Mostrou-lhe o comando do automóvel, enquanto os piscas piscavam e as portas se destrancavam e despediu-se.
– Outro dia, Rafael. Outro dia.


terça-feira, 7 de abril de 2015

um

– As coisas são o que são – disse André, enquanto caminhava, enfiando as mãos nos bolsos das calças de ganga.
– Nem sempre – discordou Laura, sem olhar para ele. – Às vezes, as coisas são umas e nós pensamos que são outras.
– Mas não deixam de ser o que são – contrapôs o homem, parando no passeio junto a um cruzamento. Estava vermelho para os peões.
Laura parou ao lado dele e não respondeu.
O sinal ficou verde e atravessaram a rua em silêncio. Quando chegaram ao outro lado continuaram a andar e ela recomeçou a conversa:
– Sim, mas se nós não as vemos pelo que são mas como o que queremos ver…
– Ou não – acrescentou André, olhando para Laura de esguelha.
– Ou não?
– Sim, muitas vezes não vemos as coisas como são verdadeiramente mas também não as vemos como queríamos que fossem – respondeu André, olhando sempre em frente enquanto caminhava. Ela ouvia-o com atenção mas com ar pouco convencido. Ele acrescentou: – Pelo contrário, vemos o que não queríamos ver. Não vemos as coisas pelo que são mas pelo que não queríamos que fossem.
Laura parou, tocou-lhe no braço para o fazer parar e virou-se para ele.
– Nós estamos a falar exactamente de quê? – perguntou-lhe, com ar desconfiado.
André olhou em volta, disfarçadamente como se estivesse com medo de estarem a ser seguidos mas não quisesse mostrar que procurava alguém, e, quando os seus olhos se reencontraram com os dela, sussurrou:
– De coisas.
Laura suspirou, de cansaço.
– Que coisas?
André tocou-lhe no braço e recomeçou a andar.
– Sabes que o Google hoje disse-me para sair às sete e quarenta e três para me encontrar contigo às oito?
Laura não o seguiu logo e quando o fez, caminhou com lentidão, obrigando-o a parar ao fim de sete passos, a voltar-se para trás e a esperar.
– O Google disse-te o quê? – perguntou ela.
André apontou para uma pastelaria com a cabeça e, sem responder, sugeriu num tom conspirativo:
– Vamos aqui.
Laura respirou fundo: não estava a perceber, nem a gostar.
– Não íamos jantar? – replicou.
– Eu quero mostrar-te uma coisa – disse ele, abrindo a porta da pastelaria.
A mulher estacou do lado de fora da porta e insistiu:
– Não me podes mostrar ao jantar?
André fez uma careta de aflição e rolou os olhos de forma estranha. Laura decidiu entrar pela porta que ele continuava a segurar.
– Estamos fechados – avisou uma voz masculina, quando os passos dos saltos altos dela soaram no chão de mosaicos do estabelecimento.
Eles entreolharam-se e procuraram o dono da voz, sem resultados. Laura fez menção de se virar para sair mas André largou a porta que se fechou.
– Já estamos fechados – repetiu a incorpórea voz, quando a porta bateu levemente.
– Boa noite – disse André, sem saber para onde falar. – É só um minuto para mostrar uma coisa à minha amiga.
Laura fulminou-o com o olhar: a “minha amiga” não lhe soou nada bem.
– Mostre na rua – replicou a voz.
– Não posso, estamos a ser seguidos…
– Estamos?! – Interrompeu Laura, surpreendida, olhando para a rua. – Estamos a ser seguidos por quem?
– Isso é que é pior – comentou a voz, num tom interessado. – E estão a ser seguidos porquê?
André deu um passo para dentro da pastelaria, na direcção de Laura, que continuava à procura de vislumbrar alguém na rua, quando a voz se elevou numa ordem:
– Alto! Estamos fechados, já disse!
– Mas… – Laura estava a ficar irritada, não só não via ninguém na rua, como não via o dono da voz. – Desculpe lá, mas onde é que o senhor está?
André fez-lhe uma careta e sinal com as mãos para ter calma e depois apontou para cima com um subtil movimento ascendente da cabeça, que as sobrancelhas erguidas e os olhos imitaram. Laura seguiu-lhe as indicações encontrou um espelho esférico convexo que se encontrava junto ao tecto, no canto da sala entre a parede da entrada e a parede atrás do balcão. Num dos lados do espelho estavam eles, no outro a cabeça de um homem a quem parecia faltar o corpo. Laura deu um passo para trás.
– Nunca viu? – perguntou a voz, reflectindo no espelho um sorriso sarcástico e mal-intencionado, que caminhava na direcção deles.
Laura seguia-lhe o reflexo com ar assustado e chegou-se mais para o pé de André e, quando a cabeça sorridente apareceu acompanhada de um pequeno corpo por detrás do balcão, gritou:
– Um anão!
O anão parou de sorrir, levantou a cabeça e as mãos, olhou para Laura e depois para trás de si num frenesim apavorado e, enquanto corria para se abraçar às pernas de Laura, gritava:
– Onde?! Onde?! Onde é que está o anão?!