sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A Mancha

(Anders Petersen)
– Ó mãe, tem de se rir assim? – queixou-se ele, antes de fechar os olhos, resignado, pronto a abandonar-se ao desalento.
A mãe ria com gosto, ruidosa e espalhafatosamente. A nora, irada e envergonhada, continha, a custo, as lágrimas. O enteado sorria apalermado, como era hábito. E o padrasto, bem bebido, dormia.
A mãe puxou-o para si e abraçou-o ternamente, soltando uma forte gargalhada. A avó, embevecida, sentiu os olhos embaciarem e recolocou a placa, incrustando-a no maxilar superior com a ponta do polegar e limpou a unha no rebordo dos dentes. O avô babava-se e batia ritmicamente com a mão no braço do sofá, encostado à perna da cadeira do compadre que o olhava mas não via.
– Ó mãe, porra! – exclamou ele, aproveitando o momento de alento e firmeza que o encontrão que a companheira lhe desferiu, arremetendo o ombro direito contra as suas costas, lhe deu. – Cale-se!
Mas a mãe só o abraçou com mais força sem parar de rir.
Ele soltou-se e pediu: – Cale-se, por favor... – num fio de voz que se sumiu quando viu a companheira bater com a porta da cozinha, agitando a cabeça como se negasse esmola a um mendigo, e deixou-se ficar, em pé, imóvel. Firme e hirto como uma barra de ferro.
A mãe baixou os olhos, contemplou a fraca figura do filho e, numa gargalhada, disse:
– És mesmo como o teu pai que Deus tem!
O enteado curioso, procurou o alvo do olhar da avó emprestada, viu a escura mancha à volta da braguilha e, divertido, fez uma careta.
– Um triste e desgraçado ejaculador precoce – continuou a mãe. – Olha para essas calças! – E tornou a abraça-lo como se o quisesse fazer desaparecer.
"Se fosse só a mancha..." ponderou o enteado, conhecedor e condoído, "A esta hora já tem os bolsos todos colados e os boxers a escorrer."
Envolvido pelo poderoso braço direito materno, ele tornou a fechar os olhos e ajeitou-se ao abraço da mãe, sentindo-lhe o peito quente e procurando esquecer a vergonhosa mancha nas calças e o desconforto de sentir a substância pegajosa alastrar e tolher-lhe os movimentos, enquanto amalgamava, colava e arrepanhava pintelhos e boxers. O barulho que a companheira fazia na cozinha com a loiça e com as cadeiras e o risinho abafado do enteado, faziam-no desejar ficar ali para sempre ou, pelo menos, até a mancha secar.
“O que acontecer primeiro”, pensou. "O que acontecer primeiro..."

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O CONDÓMINO

"Amibas!" exclamou exaltado o convicto condómino. "Sois todos uns protozuários!" gritou furibundo de vermelho vivo pintado a quem não o queria ouvir. "Vendidos! Chulos! Badamecos!" escarrou enraivecido o Quixote do segundo direito. "Nunca! Ouviram?! Nunca!" despejou numa golfada de ódio e perdigotos o indignado Che. "Cinco euros para limpar as escadas?! Cinco euros?!... Paguem vocês! Fascistas!" berrou o explorado vizinho, levantando-se numa fúria revolucionária a caminho da porta. “Se limpassem os pés, suas cavalgaduras, nem era preciso limpar nada!”, ralhou com o empenho dos que se sabem com razão e agarrou a maçaneta que rodou com violência desnecessária. Abriu a porta com brusquidão, desejou com inesperada suavidade e ternura “Boa noite e bom fim-de-semana a todos” e saiu batendo a porta com estrondo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Brilho das Pessoas Felizes

Primeiro, ela falou e ele ouviu.
Depois, ele falou e ela ouviu.
Então, começaram a falar os dois. E concentraram-se tanto em falar que deixaram de ouvir e de se ouvirem.
Discutiram. Muito.
Subitamente, ela encaminhou-se para a porta da sala e, serenamente, pôs um ponto final na conversa:
– Acabou-se, Bernardo. A decisão está tomada, ponto final. O que há para resolver é só a forma de o fazer, mais nada.
Ele não a contrariou mas grunhiu e esbracejou como um louco furioso numa luta contra um poderoso inimigo imaginário, provavelmente um polvo gigante muito rápido e com capacidades de desmaterialização, tal era o empenho anárquico dos seus movimentos e a desconcertante placidez das suas pausas; no fim, sempre em silêncio, sentou-se.
Ela manteve-se quieta, em pé de braços cruzados, contemplando o espectáculo.
Ele suspirou ruidosamente e pousou os cotovelos nas pernas, enfiando a cabeça entre as mãos.
A mulher hesitou entre o silêncio e o ficar calada. Ponderou e decidiu nada dizer.
– Sabes… – começou o homem, sem erguer a cabeça – eu esperava muita coisa... Muita coisa. Mas isto não. Isto, agora, definitivamente não esperava.
A mulher, encostada ao umbral da porta da sala, ainda não se decidira a entrar na conversa quando ele recomeçou a falar, depois de se certificar, com um olhar furtivo, que ela ainda estava lá para o ouvir:
– Não sei mas se pensei que isto nos pudesse acontecer… E pensei, reconheço. Houve alturas em que pensei seriamente nisso. Houve tempos em que achava que tu tinhas razões, tal como houve outros em que achei que era eu que as tinha. E fases em que tudo se podia desmoronar e, justificadamente, terminar, não acho que agora haja… – A voz embargou-se-lhe e levantou a cabeça para a fixar, respirou fundo, limpou os olhos com as costas da mão direita e concluiu num repente: – Mas agora não. Agora fui apanhado de surpresa, completamente de surpresa!
– Foda-se, Bernardo – replicou ela, num tom só ligeiramente irritado, em que os palavrões só sublinhavam a sua contenção e enfado. – Mas porque é que tu és sempre tão teatral, caralho!
– Bolas, Patrícia, sabes que eu não gosto que digas palavrões – censurou o homem. – Evita, por favor.
– Vai-te foder – respondeu ela. – Vai-te foder mais a tua educação de merda! Não queres palavrões não te portes como um miúdo, não te ponhas aos saltinhos como se estivesses a levar choques eléctricos nos colhões, como se te tivessem atado o caralho a… a… a sei lá o quê, a uma merda qualquer que não pare, não esteja quieta e ande para todo o lado… Se não queres palavrões, comporta-te, foda-se! Deixa de esbracejar como uma menina, deixa de bater nas coisas e de saltar como se tivesses molas nos pés.
– Eu estou parado.
– Agora – suspirou ela. – Agora estás parado. – A mulher virou costas, saiu da sala e parou depois de dar dois passos. Sem erguer a voz, lamentou-se: – As pessoas felizes brilham, Bernardo. Brilham. Nós não. Nós estamos cada dia mais cinzentos e baços…
Ele levantou-se e, sem sair do mesmo sítio, gritou-lhe:
– É porque comem pirilampos!… Essas pessoas não são felizes, Patrícia, essas pessoas comem pirilampos! São assassinos viciosos e maus! São comedores compulsivos de pirilampos. São viciados neles e usam-nos para brilharem!… Ninguém brilha por si… ninguém brilha por si, Patrícia… Não há pessoas felizes… ELES COMEM PIRILAMPOS!
2010