segunda-feira, 30 de junho de 2014

A Reconciliação

Um murro na mesa e um “Não penses que me lixas!”, proferido em tom de ameaça, não foram suficientes: ele lixou-a. Não o fez logo, nem sequer nos dias seguintes mas fê-lo, fê-lo ainda em tempo útil e de forma a ser percebido.
“Tinha de ser”, justificou o homem como quem pede desculpa mas com ar de quem o faz por mera cortesia. “As coisas são o que são e eu não sou diferente”, concluiu, ainda que ninguém conseguisse perceber o que queria ele dizer com isso; provavelmente, nem ele próprio.
“Ele é mesmo assim,” comentou a mulher, com um ostensivo encolher de ombros, “não diz nada que se aproveite…” Aqui fazia uma pausa, fazia-a sempre como se pensasse no que ia dizer a seguir e como se o pensasse pela primeira vez naquele momento.
“Ele é mesmo assim,” pausa com encolher de ombros, “não diz nada que se aproveite…”, pausa com careta reflexiva; por vezes, chegava a passar a mão pelo cabelo ou pelo queixo mas não o fazia sempre, já a careta era certa, ainda que não tivesse qualquer conteúdo, era apenas uma representação.
Ele riu-se quando soube disso e aproveitou para salientar essa entre enumeras características dela que apresentava com precisão analítica e manifesto orgulho em enunciá-las. No fim repetiu um “Sempre demasiado teatral” acompanhado por uma gargalhada oca, também ele a representar mas sem ponta de ironia, que era mal que nenhum dos dois padecia.
“Usa umas tiradas grandiosas e grandiloquentes que, espremidas, não querem dizer nada. Nada”, dizia a mulher depois da pausa e da careta reflexiva.
“Isso pensa ela”, atirou o homem para pôr fim à conversa, sem cuidar de esclarecer a tal tirada que ninguém percebera e, naturalmente, sem contestar o uso de frases orelhudas mas sem conteúdo.
“O que é uma frase orelhuda?”, perguntaram ambos quando leram o que o narrador escreveu.
“Frases que nos soam bem, que nos parecem ser correctas e acertadas, que estabelecem um vínculo entre quem as profere e quem as ouve. Que causam admiração.”
Ela fez uma careta e ele também mas abstiveram-se de qualquer comentário.
“As caretas são o comentário”, elucidou ela, ao que ele anuiu com um lento oscilar vertical da cabeça e um sorriso cúmplice. Ela respondeu-lhe sorrindo e piscando o olho direito.
“Devíamos falar, Cristina”, sugeriu o homem, aproveitando o facto de ela ter os dois olhos abertos.
A mulher aprovou a sugestão com um silêncio grave e sério e fixou-se no narrador. “E ele?”
“Dá a narração por terminada”, respondeu o homem, antes mesmo de ela fazer a pergunta.
“Agora?”
“Já!”

segunda-feira, 23 de junho de 2014

18:34

– Provavelmente já não te direi mais nada. – Gonçalo mexeu-se na cadeira, desapoiou o queixo da mão direita, passou os dedos em volta da boca e continuou, com um suspiro: – Também não sei o que mais te podia dizer. – Fez uma nova pausa e concluiu: – Não sei o que te dizer, Inês, não sei mesmo.
Gonçalo respirou fundo e engoliu em seco, sentia uma tristeza que lhe pesava fisicamente. Olhou em volta sem ver nada, sem a ver, atento só aos primeiros acordes da música lenta e desconsolada que parecia envolver todo o espaço. “Codex”, reconheceu. Não podia ouvir os Radiohead muito tempo, sabia disso. Por exemplo, adorava “Kid A” mas quando chegava ao fim ficava normalmente num estado lastimoso, como se o mundo não tivesse solução, nem a vida qualquer sentido. Ouviu os mais de quatro minutos da música em silêncio e sem se mexer. Quando a música terminou, recomeçou a falar num fio de voz mas como se não se tivesse chegado a calar: 
– Eu sei que fiz tudo mal, Inês. Devia ter insistido. Devia ter-te dito que te queria. Eu queria-te, Inês. – Gostava de ouvir o nome dela. Precisava de dizer o nome dela. – Eu quero-te, Inês. – A ausência de nomes nas conversas, magoavam-no. Percebia que as pessoas não fizessem por mal. Sabia que ele próprio era capaz de falar horas sem dizer um nome mas sabia, sabia tão bem, que, no fim, lhe ia custar perceber que não dissera nomes. Que falara como se falasse com outra pessoa qualquer. – Provavelmente… – soltou um risinho nervoso. – Provavelmente… – repetiu em tom sarcástico, acenando com a cabeça, censurando-se. – Quem eu é que eu quero enganar com estes provavelmentes? As coisas são o que são e os provavelmentes são pontos de fuga que arranjamos para não assumir todas as culpas. Todas as responsabilidades. A probabilidade de uma coisa não ser o que nós fizemos que ela fosse não é da nossa responsabilidade. Se, contra todas as probabilidades, um acto ou um conjunto de actos não tem o fim que devia mas sim um melhor do que o esperado, isso não se deve a quem os praticou, pelo contrário, aconteceu apesar da nossa culpa.
Gonçalo calou-se e concentrou-se na música mas não a reconheceu. Não sabia o nome. Ainda eram os Radiohead e estavam a fazer-lhe mal. Isso sabia. – Provavelmente... – riu-se da palavra que, no entanto, julgava ser acertada nesta frase. – Provavelmente, esta não é a melhor banda sonora, Inês. – Levantou os olhos e viu-lhe a face inexpressiva e inescrutável. Fez uma careta para si próprio e, então, suspirou, sem querer mas sem o conseguir conter. – Desculpa – murmurou, sentindo o suspiro como uma falha.
Levantou-se da cadeira e foi até ao leitor de mp3 que alimentava as colunas de onde saía a música. “Give up the ghost”, leu e sorriu. Tornou a ler e o sorriso abriu-se mais. Virou-se para ela. – Acho que ias achar piada a esta – disse. – À situação – riu. – É um bocadinho macabro e demasiado negro mas give up the ghost é, dirias tu se não estivesses aí, se não fosses tu o ghost, a banda sonora ideal para animar as visitas.
Gonçalo aproximou-se da cama onde jazia o corpo de Inês, tocou-lhe na mão, que o surpreendia sempre pelo calor que emanava e pela maciez, beijou-a levemente no rosto e despediu-se. – Até amanhã, Inês.
 – Ah! – Gonçalo encostou a porta que já abrira para sair e voltou-se para dentro do quarto. – Hoje vou pedir ao teu irmão que acrescente os Smiths ao mp3. – Riu como se risse com ela. – Claro, Inês, o que é que havia de ser? – E saiu a trautear: – "Girlfriend in a coma, i know, i know, it's serious."
2012

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Protector

Com ar encalorado e estafado, o homem deixou-se cair no cadeirão da sala, grunhiu um boa tarde abafado e encarou a mulher com um sorriso amarelo.
– Então, valeu a pena? – perguntou a mulher, depois de lhe sorrir com compaixão.
O homem encolheu os ombros, abriu os terceiro e quarto botões da camisa (os outros já estavam abertos) e suspirou:
– Sei lá… Acho que não.
A mulher tornou a sorrir.
– Mas tinhas de ir – disse a mulher, num tom tão compreensivo como o sorriso –, se não fosses arrependias-te.
– Arrependi-me na mesma – lamentou-se o homem, que já abrira a camisa e agora trabalhava no cinto e no botão das calças. – Estava muito calor…
– Este ano puseram uns tubos a deitar umas nuvens de água para refrescar… – A mulher via-o de esguelha a despir as calças.
– Pois foi, mas não era suficiente e não era na feira toda. – O homem levantou-se para tirar as calças que pousou no chão ao lado do cadeirão e tirou a camisa que dobrou sem cuidado e colocou em cima das calças. – E, ainda por cima, era nas zonas que tinham alarmes e guardas. Parei lá pouco – concluiu o homem, aborrecido.
A mulher deu uma gargalhada. Havia algo no marido, semi-nu, com ar afogueado a queixar-se de alarmes e guardas que a divertiu sem que percebesse porquê. O homem fez-lhe uma careta e mostrou-lhe a língua.
– E, provavelmente, era onde devias ter ido mais – picou-o a mulher ainda a rir.
Em silêncio mas concordando com a cabeça, o homem levantou-se e saiu da sala. Da cozinha gritou se a mulher queria alguma bebida fresca. Ela respondeu-lhe que não. Quando reentrou na sala, o homem trazia uma cerveja numa mão e vários sacos noutra. Levantou os sacos como um troféu. Pousou a cerveja na mesa de apoio ao cadeirão e com ar triunfante despejou os sacos cheios de livros em cima do sofá de três lugares onde a mulher continuava sentada.
A mulher olhou para os livros com desdém, eram mais de vinte, e perguntou com secura:
– Quantos é que estão autografados?
– Ou sete ou oito.
– Só?
– O resto não interessava ao menino Jesus.
– Assim, tens quantos autografados?
– Vinte e sete ou vinte e oito. – O homem foi buscar a cerveja e sentou-se no cadeirão de onde saíra.
A mulher mexia nos livros como se estivessem contaminados, afastando-os uns dos outros apenas o suficiente para lhes ler os títulos, fazendo caretas de desagrado ou de troça a quase todos eles.
– Tinhas razão – disse, virando-se para a televisão, depois de lançar o único livro que agarrara e abrira, para confirmar se estava autografado, para cima dos outros. – Não valeu a pena.
O homem suspirou agastado e despejou a garrafa de uma golada. No fim, encolheu os ombros e constatou com pesar:
– São poucos mas entre o calor, as filas, os alarmes e os que não mereciam, foi o que se arranjou… O que é que queres que eu te faça?
– Tens de ir tomar banho primeiro – sussurrou a mulher, semicerrando os olhos e esboçando um sorriso ténue.
– Eu estava a falar dos livros.
– Eu não.
– Eu percebi.
– E?
– E, o quê?
– Vais tomar banho?
O homem pôs as mãos nas pernas junto aos joelhos. Baixou a cabeça e abanou-a para um lado e para o outro. Suspirou ruidosamente. Levantou a cabeça e encarou a mulher. Sorria. Ela estranhou-lhe o sorriso mas, olhando-o com atenção, notou um início de erecção; ele já a tinha sentido.
– Arrumas os livros? – Perguntou o homem, pondo-se de pé.
Satisfeita, ela anuiu com a cabeça.
Ele foi-se lavar.
– Pagaste algum? – gritou a mulher, enquanto os empilhava.
– Achas?! – berrou ofendido o homem, já debaixo do chuveiro. – Eu estou a salvar leitores, Maria! A salvá-los dessas obras magníficas. A salvá-los de si próprios. A salvá-los desses autores manhosos – proclamou o homem entre gargalhadas.
A mulher encostou-se à ombreira da porta da casa de banho e disse-lhe:
– Sempre quero ver as caras deles quando lhes devolveres os livros. Ainda por cima autografados.
O homem fechou o chuveiro, abriu a cabine de duche e sentenciou:
– É para aprenderem a não escrever porcarias.
A mulher lançou-lhe uma toalha de bidé lavada para se limpar.