quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Tempo Novo: Praia

A areia entre a sombrinha de palha e o mar escalda-lhe os pés mas, apesar da dor, sente que não pode correr ou sequer caminhar mais depressa pois sabe que está a ser visto. Controlado. Avaliado. Cerra os dentes e os lábios e inspira lentamente pelo nariz até suspender a respiração como se isso lhe aliviasse o desconforto por cada passada que dá. Fixa-se no mar para ganhar alento. A dolorosa caminhada vai terminar num mergulho fresco e daí a um instante já se terá esquecido que tem plantas dos pés. Expira sem quase abrir os lábios e repete silenciosamente dois ou três palavrões várias vezes.
“Já não me bastava não poder comer Bolas de Berlim como, agora, nem sequer posso correr na areia a ferver”, reclama para si quando, finalmente, alcança a beira-mar, a areia molhada e a água lhe envolve os pés. Um bálsamo para um homem dorido mas satisfeito: mostrou-se duro, teso, imperturbável, tudo o que acha que um homem acossado tem de ser ou, pelo menos, parecer.
Respira fundo. Sorri, já não sente as plantas dos pés por mais que tente; já não as consegue distinguir do resto do pé.
“Uma dor tão forte mas tão fugaz, tão passageira”, medita, entrando pelo mar. “Pior é não poder comer as bolas. Ouvir apregoá-las, sabê-las frescas e deliciosas, cheias de creme…”, respira fundo. “E os gajos desde ontem parece que gozam, parece que fazem de propósito, gritam mais, passam mais vezes, insistem e a malta compra e olha-me como se me desafiasse...” Está a pontos de rebentar e mergulha.

– Logo vamos embora – anuncia, quando se deita pesadamente na espreguiçadeira.
– Embora? – A mulher, deitada na espreguiçadeira ao lado, levanta a cabeça, suporta o tronco nos cotovelos e olha-o desconfiada. – Houve novidades?
– A novidade é que eu não aguento mais estar aqui sem comer Bolas de Berlim!
– Ainda estão ali as que eu te trouxe da pastelaria.
– Não têm nada a ver, Ágata!
– São da mesma fábrica…
– Não são iguais, bolas! – Vira-se na espreguiçadeira e fica virado para cima. – Ainda por cima a areia está a ferver – reclama num tom que não permite contraditório.
A mulher lança-lhe um último olhar, encolhe os ombros, estica os braços, deita-se e fecha os olhos com um suspiro.

– A minha comadre diz que achou o Santos Silva muito fraquinho mas que por eles não cais, Fernando. – A mulher virara-se na direcção dele e falava baixinho. – E que já voltaram a dizer isso ao Pedro Nuno. O Bloco vai manter um ruidoso low-profile.
– Hoje foi ela que falou com ele? – O homem não se mexeu.
– Foi, foi a Catarina que lhe ligou e diz que uma das Mortáguas também. Por ali estás descansado.
– Mas aqui não, Ágata. Aqui não estou. A areia está perfeitamente insuportável e… – o homem soprou e virou-se para a mulher – ainda por cima os fiscais das finanças multaram um vendedor de bolas. – O homem suspirou, abanou a cabeça e voltou a bufar. – Não posso continuar, Ágata. Não tenho condições.
– Levas uns chinelos.
– Levo uns chinelos para onde?
– Para ires ao mar, não estavas a dizer que a areia está a ferver?
– Eu não estava a falar disso.
– Então?
O homem semicerrou os olhos e engoliu em seco.
– Se vou pagar à Galp é porque estou a assumir que não devia ter ido. Que não devia ter aceite o convite…
– Que é uma conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes, Fernando.
– Mas se eu lhes vou pagar, estou a assumir que não é, Ágata.
– Mas tu vais pagar?
– Não mas…
– Vais dizer que devias pagar?
– Não mas…
– Então, tu, no teu juízo e opinião, tiveste uma conduta socialmente adequada. Não foram mais dois? Não foram mais os do PSD?
– E não só…
– Então, queres uma coisa mais usual e costumeira, mais socialmente adequada do que aceitar um convite…
– Dois.
– Ou dois, para ir ver a bola, ainda por cima a um campeonato que só há de quatro em quatro anos?
– O Passos pagou a viagem e os bilhetes.
– Mais me ajudas, Fernando, mais me ajudas. – A mulher empolgada, sentou-se. – Queres um melhor exemplo de um tipo socialmente inadequado e mais contrário aos usos e costumes da classe e casta onde se integra do que ele? Esse gajo, esse moralista de Massamá, esse pé-descalço da Manta-Rota, esse António Conselheiro de trazer por casa é que dá mau nome à classe politica, Fernando. Ele é que é uma carta completamente fora do baralho. Porque é que pensas que ele anda a penar?! – A mulher riu. – Ele, a pagar as suas viagenzinhas e os seus bilhetinhos para o meio da maralha, é que é socialmente desadequado, ele é que é um atentado aos usos e costumes da classe politica, aos nossos gestores públicos, à nossa autonomia universitária. Esse gajo é que devia ser preso para aprender que o país não se governa sozinho sem nós, quem sabe, a orientar; que a presença do Estado em tudo não é facultativa; que se damos tudo ao povo, que se fazemos tudo em prol do povo temos direito a que o povo ou alguém por ele nos retribua.
– A Galp?
– A Galp, a Olivedesportos, a Central de Cervejas, o raio que os parta!
– Então, por essa ordem de ideias, achas que posso comer uma Bola de Berlim?
– Claro que podes. Parece mal é não comeres, homem. Comes duas ou três e no fim pedes o recibo, Fernando, e se o gajo não to passar pedes-lhe a identificação!
O Secretário de Estado põe-se em pé de um salto, abre um sorriso de orelha a orelha, procura um vendedor de Bolas de Berlim e grita como um selvagem faminto:
– Ei! Olhe! Você! Makanaki!

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Idade do Tempo Novo

– Ele não me atende – barafustou Fernando, puxando uma cadeira para se sentar. – Estou farto de lhe ligar e ele não me atende.
O amigo esperou que ele se sentasse e pousasse o telemóvel e gracejou:
– Ó Fernando, deixa-me que te diga, pá, mas isso de ires ver a bola à borla, a convite da Galp, foi uma ideia de merda, meu.
– Se fosses tu, não ias? – atirou o Fernando, irritado.
– Se fosse eu, ninguém me convidava – respondeu o amigo com um risinho.
– Mas se fosses, não ias, Luís? Qual é o problema? Qual é a merda do problema?! Fui ver um jogo, pá. Um jogo da selecção! Como é que alguém há-de achar que isso me condiciona seja para o que for, não me explicas?
– Se tu não percebes por ti não vou ser eu…
– Bardamerda, Luís. Tu conheces-me, pá, achas que isso me faz alguma diferença?!
– E o teu chefe?
– O meu chefe, o quê?
– Já lhe ligaste?
– A quem?... Ao Costa?
– Sim, não é ele o teu chefe?
O Andrade fez uma careta e evitou a pergunta:
– Já, já falei com ele – respondeu.
– E?
– Ele é que me mandou ligar ao João.
– Para quê?
– Para que é que achas que há-de ser? Para que ele decida.
– Se tu ficas?
– Sim.
– Ele é que decide?
– É, ele é que é o Comissário Strelnikov cá do sítio, a única diferença é que não decide sozinho. A Ana Catarina e o Pedro Nuno também decidem e o Strelnikov também ausculta o Bloco.
– E o Costa?
– Faz o que lhe dizem.
– E o Centeno, tu és secretário de estado dele, o gajo não tem voto na matéria?
O Andrade olhou-o espantado, suspirou ainda composto mas desmanchou-se numa gargalhada alarve.
– Só tu, pá…. – disse sem parar de rir. – Só tu para me fazeres rir a esta hora… O Centeno…
– E o IMI? – interrompeu o amigo como se tivesse tido uma epifania.
– O IMI, o quê? – O Andrade parou de rir e dirigiu-lhe um sorriso malicioso que fez por mostrar que escondia.
– Esta história do IMI, do sol e das vistas… – O amigo ficou subitamente sério com a certeza que a epifania era correcta. – Isto foi para te proteger?! Isto foi para lançar uma cortina de fumo, para dizerem que há má-fé em quem te está agora a atacar?
O Andrade não confirmou mas voltou a sorrir.
– Vocês já sabiam que isto ia sair?!
O Andrade riu-se:
– O Sterlnikov e a Cersei sabem tudo, pá. Tudo!
– A Cersei?
– A Fernanda.
– Então porque é que queres falar com ele? Isso não está já tudo decidido e manobrado?
– Isto é sempre dinâmico, pá, e, às vezes, só no fim é que tu vês o filme todo. Tudo isto foi-me apresentado como a minha melhor defesa mas…
– Até ao lavar dos cestos é vindima!
– Pois e eu não sou dono dos cestos, nem da vinha, nem sou especialmente necessário para os jogos deles. No fim, isto foi tudo muito bem arranjadinho e tal mas não foi necessariamente para mim... – O Secretário de Estado olhou para o telemóvel inerte em cima da mesa e respirou fundo. – Mas, em princípio, é. É para mim.
– Mas, se ficares... – Luís tentou lembrar-se de uma personagem shakespeariana qualquer para ilustrar o que ia dizer mas não tinha cultura que chegasse para isso e recomeçou: – Mas, se ficares, ficas agarrado a eles, completamente agarrado a eles…
Fernando anuiu levemente com a cabeça, sem embaraço ou preocupação.
– O tempo novo é velho, pá – concluiu o amigo, abanando a cabeça.
– Velhíssimo, meu caro. Velhíssimo como o mundo.