sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A Espuma dos Dias (x)

Quinta-feira. 22/10/2015. 18:30

O telemóvel toca e a cara da mulher aparece sorridente no ecrã. Atende:
– Maria.
– Aníbal.
– Maria.
– Aníbal.
– Não estejas a brincar, Maria. O que foi?
– Não estava a brincar, Aníbal.
– Está bem. Boa tarde. Como estás, amor?
– Assim está melhor. Boa tarde. Estou bem… mas podia estar melhor.
– Então?
– Estive a ler a tua comunicação…
– E?
– Não gostei. É a última versão?
– É, porquê?
– Não vais fazer outra, mais macia?
– Não, essa é a definitiva. É o mais claro e macio que consigo ser.
– E se fores menos claro? Às vezes, a claridade fere a vista.
– Não estou a perceber.
– Acho que tens demasiada palha e que essa palha vai servir mais para alimentar quem tu não queres do que quem tu queres, ou melhor, que eu acho que queres mas que, depois de ler isto, já nem sei bem.
– Achas?
– Não acho, tenho a certeza. A palha que ali tens, e que é completamente desnecessária, só vai alimentar quem está contra ti, vai servir para a rapaziada fazer um grande piquenique à tua conta e no fim, ainda enrolam as sobras, e fumam-nas.
– Estás a falar de quê, Maria?
– Daquela conversa toda, Aníbal: da Europa, das Instituições, dos credores, da Nato, do regime… Aquilo é tudo palha, tudo! E só vai servir para te queimarem e para eles se aquecerem.
– Achas?
– O Costa quando te ouvir, no fim de te ouvir porque a meio não vai perceber e vai estar a espumar como um louco furioso, mas, no fim, vai ficar radiante. Tu é que vais uni-los, estás a dar-lhes a motivação que falta. A desculpa que ele tem estado à espera para agarrar o PS, para encostar alguém que o critique à direita e, pior, a ti. E ninguém do PS, por mais que discorde do que o Costa está fazer, vai querer ficar com o ónus de te ter apoiado, de te ter dado razão. De ter traído o partido depois de tu, tu, Aníbal, vê lá isso para os socialistas, de tu lhes pedires que fizessem isso. Esta comunicação é estúpida, senhor Presidente.
– Maria!
– É o que eu sinto.
– Mas eu estou apenas a ser claro. Estou a comunicar a minha decisão…
– Que é certíssima.
– Estou a dizer que o Costa não me apresentou nada que se visse…
– O que toda a gente percebeu.
– Invoco a constituição, os formalismos, as tradições e as regras que foram sempre seguidas…
– Do que ninguém pode discordar.
– E que é o parlamento que deve decidir sobre a sorte dos governos.
– Ok. E?
– E?
– E o que dizes mais?
– E digo o que acho do Costa, do PC e do Bloco.
– E?
– E, o quê?
– E isso serve para quê?
– Para clarificar as coisas, para comunicar o meu pensamento, as minhas ideias, para que percebam que não vale tudo. Para deixar linhas orientadoras…
– Palha, palha, palha e muita palha, Aníbal. O Costa vai fazer uma pilha enorme com essa palha, um fogo que lhes vai aquecer a alma e os corações. A Catarina vai ser a Senhora da Luz, vai usar a palha para te queimar e para se tornar ainda mais indispensável, ainda mais responsável. Vão todos ganhar pontos.
– E o Jerónimo?
– O Jerónimo nem precisa de dizer nada. Estás a tornar a dar trunfos ao Costa e vais enredar o Passos numa teia de que ele não vai conseguir sair…
– Quero que o Costa se lixe e que o Passos faça o que tem de fazer, mais nada! Aquilo é o que eu acho e não me sentiria bem se não o dissesse. Já há demasiada cretinice e jogos de sombras e porcaria na nossa politica para eu ainda ter de esconder o que penso. As coisas têm de ser ditas e de sê-lo claramente. Aliás, até acho que estou a ser correcto e polido, para o que têm dito de mim, até podia ir mais longe.
– Tu és o Presidente.
– Mesmo por isso. E eles vão-me destratar seja como for, Maria. Eles vão ser contra e chamar-me todos os nomes logo que percebam que eu não faço o que querem, por isso…
– É a tua comunicação?
– É.
– Definitivamente?
– Sim.
– Então, é a minha também, Aníbal. Boa sorte.
– Obrigado.

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