terça-feira, 23 de dezembro de 2014

A Árvore de Natal do Supremo Líder

O supremo líder deixou-se cair na sua enorme poltrona, acomodou-se com vagar até se sentir confortável e, depois, passou a mão direita pelo queixo, dando sinal que estava a pensar. Os dois ministros que o acompanharam até à sala privada e se mantinham em pé como soldados numa parada a aguardar ordens, tinham as cabeças baixas mas seguiam disfarçadamente, com atenção e temor, todos os movimentos do chefe.
Pensativo, o supremo líder esticou as pernas, pousou os cotovelos nos braços da poltrona e entrelaçou as mãos por cima da proeminente barriga.
– Juntem-se mais – ordenou aos ministros, que se aproximaram um do outro. – Não, encostem-se mesmo – vociferou, abanando a cabeça com uma careta de profunda insatisfação. Os dois homens encostaram-se um ao outro. O líder suspirou enfastiado. – Tu: levanta o braço direito. Tu: o esquerdo. Estiquem as mãos e encostem as pontas dos dedos por cima das cabeças.
Os homens fizeram como lhes foi ordenado.
O supremo líder passou a mão pelo queixo, deixou de olhar para os homens e estudou a sala com minúcia, como se procurasse qualquer coisa.
– Vão para ali – disse, sem olhar para os homens, apontando com a cabeça para o canto da sala à sua direita. Os homens sem desfazerem o triângulo que os seus braços compunham, dirigiram-se para o local indicado, em passos laterais sincronizados. – Aí – gritou. Os ministros estacaram, hirtos.
O supremo líder mandou-os avançar um passo e, com ar pouco convencido mas em silêncio, levantou-se e caminhou até à porta fechada por onde os três haviam entrado. Os dois homens entreolharam-se quando ele ficou de costas mas não se mexeram. O supremo líder rodou a maçaneta, admirando-se com a precisão do mecanismo e a facilidade de manuseamento do objecto, abriu a porta e saiu da sala privada para a sala de audiências.
– Nunca tinha visto o supremo líder abrir uma porta – murmurou o ministro do braço direito levantado. O do braço esquerdo erguido concordou com um grave aceno da cabeça.
Na grande sala de audiências, o supremo líder rodou sobre si próprio, puxou a porta para si, fechando-a, sorriu agradado com a simplicidade e eficácia dos gestos, fez uma ligeira vénia à porta fechada e, feliz, tornou a rodar a maçaneta, a abrir a porta e a entrar na sala privada. Encarou os dois homens, que se mantinham exactamente no mesmo sítio e posição em que os deixara. Deu um passo para dentro da sala e parou, meditativo. Após uns instantes em que só mexeu os lábios, numa sequência que começou com um ostensivo torcer desagradado e acabou num ligeiro descair de resignação, anunciou:
– Este ano vamos ter uma árvore de Natal.
O supremo líder fez uma pausa para estudar as expressões dos subordinados em resposta ao anúncio que acabara de fazer, mas estes baixaram a cabeça assim que sentiram o olhar perscrutador do líder, e ele, ainda reconfortado com a eficiência da maçaneta e com o facto de a Sony ter cancelado a exibição da comédia que o retratava como um tiranete de pacotilha retardado e vicioso mas que não tinha piada nenhuma (que era o que mais lhe custava), dirigiu-se à poltrona e continuou:
– E vai ficar exactamente aí onde estão. – Lançou novamente todo o seu peso para cima da poltrona e sentou-se. – E vocês só saem daí quando a árvore estiver feita. – Os homens anuíram com uma vénia. Ele passou a mão pelo cabelo, esticou as pernas para olhar para os sapatos, gritou a pedir que lhe chegassem o banco que estava ao seu lado para pousar os pés e recostou-se para repousar. – Tratem disso imediatamente – determinou, com os olhos já fechados.
Um serviçal entrou silenciosamente por uma porta lateral, agarrou no banco, levantou as pernas do supremo líder e pousou-as com ternura na almofada.
O supremo líder entreabriu os olhos e suspirou agradado, então fixou-se nos ministros, que faziam sinais aflitos ao serviçal para se aproximar, e, num ronrono maldisposto, mandou-os parar e limitarem-se a piscar os olhos sem parar como se fossem as luzes da árvore de Natal.

sábado, 20 de dezembro de 2014

O Almoço de Natal

A mesa estava posta com o requinte que a quadra exige: toalha de pano com motivos natalícios; os melhores talheres e loiças, vindos das profundezas do tempo, de uns medievos quaisquer que os haviam vendido na feira da ladra, ainda que isso não fosse para se saber; copos de pé alto com ar encardido e de proveniência igualmente duvidosa "mas ilustre", frisava a sogra constatando os trejeitos de desconfiança que qualquer utilizador fazia quando, a medo, os levava à boca; e uma enorme vela vermelha acesa no centro da mesa.
De guardanapos no colo, o pai, a mãe, a filha e o genro preparavam-se para o almoço de Natal, de sorrisos em formol e palavras em surdina.
O genro sentia uma inusitada e inexplicável frieza desde que tinham chegado mas só quando o sogro lhe serviu um vinho tinto corrente de uma marca de supermercado teve a certeza que algo não estava bem. Nada bem. O ambiente e o vinho não enganavam.
Quando a sogra se levantou para servir a sopa, ele procurou os olhos da mulher tentando obter uma justificação, uma pista que lhe permitisse ter uma ideia do que se estava a passar. A mulher ostensivamente baixou os olhos, evitando qualquer contacto. Resignado, agradeceu a sopa, pegou na pesada e amarelecida colher e começou lentamente a comer, calculando a qualidade e quantidade de elementos químicos que iria absorver no contacto com os talheres.
Todos comiam em respeitoso silêncio até que, entre duas colheres de sopa, a mulher murmurou:
– Nunca me bates nas nádegas.
Ele engasgou-se, tossiu, olhou para os sogros, que não deram sinais de ter ouvido a queixa da filha e olhou-a para perceber se estava doido e a ouvir coisas – tinha a secreta esperança que fosse o caso – ou se, efectivamente, ela dissera o que ele ouvira. Quando os seus olhares se cruzaram, ela acenou ligeiramente com a cabeça, confirmando a afirmação.
Ele sentiu as sobrancelhas erguerem-se, os olhos arremelgarem-se e o maxilar inferior descair, deixando-lhe a boca aberta. A consciência do seu ar apalermado levou-o a pôr outra colher de sopa à boca, procurando na normalidade do movimento algum consolo e segurança.
– Nunca me bates nas nádegas – tornou ela a lamuriar-se.
Sem levantar a cabeça, ele abafou um risinho nervoso que lhe tomava conta do peito, pousou a colher no prato e agarrou no copo de vinho. Acabara de levantar o copo, quando o sogro lhe perguntou de chofre:
– Não estás a ouvir, João?
A pergunta do sogro provocou-lhe uma vertigem, que o fez entornar o copo cheio de vinho tinto. A mulher e os sogros levantaram-se de um salto, afastando-se da maré vinícola que se espalhava em todas as direcções. Ele olhou a mesa que escorria, balbuciou um abafado pedido de desculpas, pousou o copo e erguendo-se devagar, apoiado na mesa, reafirmou:
– Desculpem, não sei o que se passou.
– Nós é que não sabemos o que se passa, João! – Recriminou a sogra, ríspida. – A Luísinha diz que tu não lhe bates nas nádegas!
Ele tornou a sentar-se, incrédulo.
O sogro, ainda em pé, tomou a palavra:
– Sim, a Luísa tem-se queixado à mãe que, desde que vocês se casaram, tu nunca mais lhe bateste nas nádegas.
A Luísa e a mãe assentiram com a cabeça, confirmando a acusação.
– Eu nunca lhe bati nas nádegas – respondeu ele, num fio de voz.
– Pior – gritou o sogro. – É verdade, Luísa, este animal nunca te deu umas boas palmadas nas nádegas?!
– Não, paizinho, nunca... – choramingou a Luísa.
– Ó meu Deus – invocou a sogra, juntando as mãos no peito –, isso é que tu nunca me tinhas dito, filha...
A mãe aproximou-se da filha e abraçou-a.
– Eu pensava que depois de casarmos, o João... – começou a Luísa.
– Não, não! – Interrompeu o pai aos gritos. – Casaste com um banana, filha! Um banana!
– Ó paizinho, não diga isso. – A Luísa largou a mãe, que chorava olhando fixamente o genro, e, virando-se para o pai, continuou: – Eu pensava que se me pusesse a jeito ele se entusiasmasse, paizinho, se entusiasmasse e me desse umas palmadas nas nádegas...
– Ó filha, te pusesses a jeito, filha... – soluçou a mãe. – És um anjo, minha filha. Um anjo. Mas o teu pai tem razão, Luísa. Infelizmente tem razão: ele é um banana.
– Um banana! – Tornou o sogro, satisfeito com a escolha da fruta. – Nem umas palmadas nas nádegas da mulher sabe dar, o banana! Que tristeza... Que pouca sorte...
– Mas eu não sabia que ela gostava – justificou o banana, a meia voz.
– Não gostava? – Rosnou a sogra. Ele olhou-a espantado. Ela olhava-o mas não o via. – Não gostava?! Mas há lá alguma mulher que não goste de levar umas boas palmadas nas nádegas?!
Ele sentiu a boca abrir e fechar sem produzir nenhum som, como um peixe fora de água, viu a sopa coalhada, o vinho entornado ensopando a toalha agora arroxeada e até lhe pareceu que o cabrito assado no tabuleiro se estava a rir dele.
– És um banana – repetia o sogro, abanando a cabeça e olhando-o com absoluto desgosto e desânimo. – Um banana.
– Ela nunca me disse nada – gemeu ele. – Podia ter dito.
– Podia ter dito?! – A sogra estava completamente descontrolada. – Podia ter dito?!
– Calma, mãezinha, calma.
– Mas quem é que o senhor pensa que a minha filha é? – Gritou a sogra, lançando perdigotos em todas as direcções. – Pensa que ela é o quê?!
– Calma, mulher – recomendou o sogro, já sentado mas afastado da mesa. – Calma.
– Calma, nada! – A sogra impôs-se, baixou o tom de voz, tornando-o mais ameaçador e continuou: – Então, o senhor queria que a minha filhinha lhe pedisse – fez voz de coitadinha – "Ó Joãozinho, bate-me, bate-me nas nádegas, que eu gosto"? Queria?! Era isso que queria que ela dissesse?
Ele olhou a sogra sem saber se havia de dizer alguma coisa, pensou em dizer que sim, que se ela gostava devia tê-lo dito mas em boa hora não o fez e manteve-se calado.
– A minha filha não é nenhuma rameira! – Exclamou a sogra, respondendo a si própria, de punhos cerrados. – A Luísa pode gostar que lhe batam nas nádegas mas não o diz. É uma mulher séria e recatada. Não o diz, ouviu?! É educada! Séria, recatada e educada!
A filha abraçou a mãe que chorava baba e ranho – mais ranho que baba mas isso é irrelevante – e fez sinal ao pai para dizer qualquer coisa.
O pai compreendendo o melindre da situação e temendo que o cabrito ficasse rijo ou mesmo que encarquilhasse com o frio – as personagens pensam assim, o que pode um narrador fazer? –, encheu o copo do genro e disse:
– E agora, o que é que tu pensas da vida, meu rapaz?
A filha acenou-lhe agradecida, a mãe fungava e o genro sentiu que tudo se podia ainda compor.
– Achas que consegues dar conta do recado? – Perguntou o sogro.
– Deixe-me comer o cabrito – disse o genro, cheio de valentia, – que eu logo lhe dou o que ela quer.
A sogra suspirou e assoou-se ruidosamente, desanuviando o ambiente.
– Amanhã nem te sentas! – Berrou o pai, com uma gargalhada.
– Ó paizinho... – disse a filha, embevecida perante a perspectiva.
– Também não é preciso exagerar – aconselhou a mãe enquanto limpava o nariz. – As nádegas precisam de habituação e cuidado... É preciso jeitinho...
– Com jeito vai... – berrou o sogro, rindo. – Com jeito!
Ela piscou o olho e lançou-lhe um beijo, ele respondeu mordendo o lábio inferior e com ambas as mãos deu, com empenho e desembaraço, palmadas em nádegas imaginárias.
– Tem jeito, o gajo – lançou o sogro, fazendo um brinde com o genro: – Que nunca nos faltem nádegas, meu rapaz!
– Que falta de educação, Francisco – recriminou a sogra, com ar afectado, enquanto eles batiam com os copos. – Que falta de educação.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Natal na Praia

O homem baixou-se, agarrou um seixo e lançou-o com força tentando com que ele deslizasse na água. O seixo bateu uma vez e continuou, bateu outra vez e continuou, bateu mais uma vez e afundou-se. Ele censurou a água e o seixo, culpando-os pela fraca prestação da pedra. Esfregou as mãos uma na outra, limpando-as, como teria feito Pilatos se não lhe tivessem levado uma bacia com água, pô-las nos bolsos e afastou-se da água.
A mulher, que tinha vindo com ele, ainda abanava a cabeça para um lado e para o outro quando ele a encarou.
– A pedra não era boa – justificou-se ele, encolhendo os ombros.
A mulher esboçou um sorriso de troça que corrigiu para uma, pouco credível, expressão de compungida compreensão e perguntou num tom lamentoso:
– E agora, já nos podemos ir embora?
O homem tornou a encolher os ombros que acompanhou com uma careta desengraçada. – Por mim…
A mulher suspirou, olhou para o copo de champanhe meio vazio que tinha na mão direita, procurou bolhinhas sem as encontrar e pousou o copo na areia.
– Queres o teu? – Perguntou quando se endireitou, esticando o copo que tinha na mão esquerda na direcção dele.
O homem abanou a cabeça negativamente e, sem um olhar ou uma palavra, começou a caminhar em direcção ao restaurante.
A mulher pousou o copo dele ao lado do seu com cuidado e ergueu-se sem sair do lugar. Surpreendida, viu-lhe as costas direitas e o andar decidido e, para além dele, as luzes do restaurante onde estavam a passar a consoada. Atónita, ainda o viu chegar à escada de madeira que dava acesso à sala onde estavam e subir sem olhar para trás, até que, sem o querer ver mais, baixou os olhos para os copos e os viu estupidamente juntos e desagradavelmente equilibrados. Então, num repente, dobrou-se, agarrou no copo dele e lançou-o com força pelo ar. Viu-o voar, perdendo o líquido conforme volteava no ar e, sem conseguir evitar um sorriso, viu-o aterrar intacto na areia. “O copo não tem culpa e, além do mais, alguém podia cortar-se”, pensou para justificar o sorriso: uma parte de si queria muito que o copo se partisse.
– Então? – perguntou o homem, do cimo das escadas e agarrado à maçaneta da porta lateral do restaurante.
A mulher, ainda parada ao lado do seu copo, levantou a mão num aceno indiferente e sorriu com malícia, comprazendo-se nas várias possibilidades que imaginou para o aborrecer. Prejudicar. Magoar. “Sentimentos muito próprios da quadra”, ironizou para si, reforçando o sorriso.
– Vou já – disse a mulher, com veludo na voz, um brilho nada natalício no olhar e, depois de um ligeiro toque no copo, tombando-o, voltou à ceia de Natal, sempre a sorrir.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

A Mancha

(Anders Petersen)
– Ó mãe, tem de se rir assim? – queixou-se ele, antes de fechar os olhos, resignado, pronto a abandonar-se ao desalento.
A mãe ria com gosto, ruidosa e espalhafatosamente. A nora, irada e envergonhada, continha, a custo, as lágrimas. O enteado sorria apalermado, como era hábito. E o padrasto, bem bebido, dormia.
A mãe puxou-o para si e abraçou-o ternamente, soltando uma forte gargalhada. A avó, embevecida, sentiu os olhos embaciarem e recolocou a placa, incrustando-a no maxilar superior com a ponta do polegar e limpou a unha no rebordo dos dentes. O avô babava-se e batia ritmicamente com a mão no braço do sofá, encostado à perna da cadeira do compadre que o olhava mas não via.
– Ó mãe, porra! – exclamou ele, aproveitando o momento de alento e firmeza que o encontrão que a companheira lhe desferiu, arremetendo o ombro direito contra as suas costas, lhe deu. – Cale-se!
Mas a mãe só o abraçou com mais força sem parar de rir.
Ele soltou-se e pediu: – Cale-se, por favor... – num fio de voz que se sumiu quando viu a companheira bater com a porta da cozinha, agitando a cabeça como se negasse esmola a um mendigo, e deixou-se ficar, em pé, imóvel. Firme e hirto como uma barra de ferro.
A mãe baixou os olhos, contemplou a fraca figura do filho e, numa gargalhada, disse:
– És mesmo como o teu pai que Deus tem!
O enteado curioso, procurou o alvo do olhar da avó emprestada, viu a escura mancha à volta da braguilha e, divertido, fez uma careta.
– Um triste e desgraçado ejaculador precoce – continuou a mãe. – Olha para essas calças! – E tornou a abraça-lo como se o quisesse fazer desaparecer.
"Se fosse só a mancha..." ponderou o enteado, conhecedor e condoído, "A esta hora já tem os bolsos todos colados e os boxers a escorrer."
Envolvido pelo poderoso braço direito materno, ele tornou a fechar os olhos e ajeitou-se ao abraço da mãe, sentindo-lhe o peito quente e procurando esquecer a vergonhosa mancha nas calças e o desconforto de sentir a substância pegajosa alastrar e tolher-lhe os movimentos, enquanto amalgamava, colava e arrepanhava pintelhos e boxers. O barulho que a companheira fazia na cozinha com a loiça e com as cadeiras e o risinho abafado do enteado, faziam-no desejar ficar ali para sempre ou, pelo menos, até a mancha secar.
“O que acontecer primeiro”, pensou. "O que acontecer primeiro..."

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O CONDÓMINO

"Amibas!" exclamou exaltado o convicto condómino. "Sois todos uns protozuários!" gritou furibundo de vermelho vivo pintado a quem não o queria ouvir. "Vendidos! Chulos! Badamecos!" escarrou enraivecido o Quixote do segundo direito. "Nunca! Ouviram?! Nunca!" despejou numa golfada de ódio e perdigotos o indignado Che. "Cinco euros para limpar as escadas?! Cinco euros?!... Paguem vocês! Fascistas!" berrou o explorado vizinho, levantando-se numa fúria revolucionária a caminho da porta. “Se limpassem os pés, suas cavalgaduras, nem era preciso limpar nada!”, ralhou com o empenho dos que se sabem com razão e agarrou a maçaneta que rodou com violência desnecessária. Abriu a porta com brusquidão, desejou com inesperada suavidade e ternura “Boa noite e bom fim-de-semana a todos” e saiu batendo a porta com estrondo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O Brilho das Pessoas Felizes

Primeiro, ela falou e ele ouviu.
Depois, ele falou e ela ouviu.
Então, começaram a falar os dois. E concentraram-se tanto em falar que deixaram de ouvir e de se ouvirem.
Discutiram. Muito.
Subitamente, ela encaminhou-se para a porta da sala e, serenamente, pôs um ponto final na conversa:
– Acabou-se, Bernardo. A decisão está tomada, ponto final. O que há para resolver é só a forma de o fazer, mais nada.
Ele não a contrariou mas grunhiu e esbracejou como um louco furioso numa luta contra um poderoso inimigo imaginário, provavelmente um polvo gigante muito rápido e com capacidades de desmaterialização, tal era o empenho anárquico dos seus movimentos e a desconcertante placidez das suas pausas; no fim, sempre em silêncio, sentou-se.
Ela manteve-se quieta, em pé de braços cruzados, contemplando o espectáculo.
Ele suspirou ruidosamente e pousou os cotovelos nas pernas, enfiando a cabeça entre as mãos.
A mulher hesitou entre o silêncio e o ficar calada. Ponderou e decidiu nada dizer.
– Sabes… – começou o homem, sem erguer a cabeça – eu esperava muita coisa... Muita coisa. Mas isto não. Isto, agora, definitivamente não esperava.
A mulher, encostada ao umbral da porta da sala, ainda não se decidira a entrar na conversa quando ele recomeçou a falar, depois de se certificar, com um olhar furtivo, que ela ainda estava lá para o ouvir:
– Não sei mas se pensei que isto nos pudesse acontecer… E pensei, reconheço. Houve alturas em que pensei seriamente nisso. Houve tempos em que achava que tu tinhas razões, tal como houve outros em que achei que era eu que as tinha. E fases em que tudo se podia desmoronar e, justificadamente, terminar, não acho que agora haja… – A voz embargou-se-lhe e levantou a cabeça para a fixar, respirou fundo, limpou os olhos com as costas da mão direita e concluiu num repente: – Mas agora não. Agora fui apanhado de surpresa, completamente de surpresa!
– Foda-se, Bernardo – replicou ela, num tom só ligeiramente irritado, em que os palavrões só sublinhavam a sua contenção e enfado. – Mas porque é que tu és sempre tão teatral, caralho!
– Bolas, Patrícia, sabes que eu não gosto que digas palavrões – censurou o homem. – Evita, por favor.
– Vai-te foder – respondeu ela. – Vai-te foder mais a tua educação de merda! Não queres palavrões não te portes como um miúdo, não te ponhas aos saltinhos como se estivesses a levar choques eléctricos nos colhões, como se te tivessem atado o caralho a… a… a sei lá o quê, a uma merda qualquer que não pare, não esteja quieta e ande para todo o lado… Se não queres palavrões, comporta-te, foda-se! Deixa de esbracejar como uma menina, deixa de bater nas coisas e de saltar como se tivesses molas nos pés.
– Eu estou parado.
– Agora – suspirou ela. – Agora estás parado. – A mulher virou costas, saiu da sala e parou depois de dar dois passos. Sem erguer a voz, lamentou-se: – As pessoas felizes brilham, Bernardo. Brilham. Nós não. Nós estamos cada dia mais cinzentos e baços…
Ele levantou-se e, sem sair do mesmo sítio, gritou-lhe:
– É porque comem pirilampos!… Essas pessoas não são felizes, Patrícia, essas pessoas comem pirilampos! São assassinos viciosos e maus! São comedores compulsivos de pirilampos. São viciados neles e usam-nos para brilharem!… Ninguém brilha por si… ninguém brilha por si, Patrícia… Não há pessoas felizes… ELES COMEM PIRILAMPOS!
2010

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O Véu

Passei o tempo todo atrás dela. A máquina fotográfica mudou-a, deu-lhe uma energia inesgotável. Subíamos, descíamos, entravamos, saíamos. Não parávamos mais do que o tempo necessário para focar e tirar a fotografia. As fotografias. Na verdade, não víamos nada, não conhecíamos ou apreendíamos o que quer que fosse dos lugares que ela fotografava. Às vezes, chamava-me e punha-me ao seu lado, esticava o braço e tirava-nos uma selfie. Levantava ou baixava o braço para apanhar o que ficava por trás de nós mas nunca me perguntou se eu estava a gostar ou se queria assim ou de outra maneira. De vez em quando beijava-me nos lábios antes de continuar mas fazia-o como se me felicitasse pelo meu bom comportamento; como quem afaga um cão obediente. Eu seguia-a e ia vendo, a custo, o que conseguia. Gostei particularmente de Ronda. Da ponte, das esplanadas, da praça de touros e das vistas. Das pessoas e do movimento. De me apontarem e de erguerem o polegar com um sorriso cúmplice enquanto olhavam para o véu. Alguns tinham de olhar em volta à procura da noiva e encontravam-na sempre a fotografar ou à procura de motivo para o fazer. Eu continuei atrás dela. Sorri quando foi preciso e dei-lhe água e mantimentos. Reabasteci a mochila e assegurei-me que o véu estava bem atado. Sempre. Estava permanentemente atento e nunca lhe faltou água fresca, um chocolate, uma barra energética ou um sorriso nas selfies. E o véu correu meia Europa sem se rasgar, nem se perder. À noite víamos as fotografias e ela passava-as para o portátil e adormecíamos de exaustão.
No fim, acho que a lua-de-mel foi boa, muito boa e temos o véu, a mochila e milhares de fotografias de lugares onde, realmente, não estivemos, nem conhecemos, o que, provavelmente, também não faz diferença nenhuma.
Ah… e agora que já passaram quase dois meses e estamos mais descansados, julgo que um dia destes consumamos o casamento.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Que esteja a ferver em Cabo Verde

– Há um ano que não temos relações – anuncia a mulher. Ao seu lado, o homem abana a cabeça, olha-me e sorri, um sorriso bovino, sem conteúdo.
– Foi nas férias, em Porto Santo, lembras-te? – pergunta o homem, ainda a sorrir mas com a expressão de quem pensa nisso todos os dias.
A mulher encolhe os ombros, olha para mim e depois para ele, com ar enjoado, e responde-lhe, displicente:
– É capaz…
– Um ano, vinte e um dias… – diz o homem que, após uma pausa para olhar para o relógio de pulso, completa: – Um ano, vinte e um dias e trinta e oito minutos.
A mulher torna a encolher os ombros mas agita a cabeça, concordando com a estimativa.
– Não é uma estimativa – corrige o homem. – É exactamente o tempo que passou desde que saí de dentro dela.
A mulher acena a cabeça com vigor, apoiando-o.
Respiro fundo e penso no que dizer pois eles calaram-se e olham-me como se esperassem um comentário qualquer. Sem saber o que dizer, repito:
– Um ano, vinte e um dias e… – interrompo-me para olhar para o meu relógio de pulso.
– E trinta e nove minutos – conclui o homem, com um ar de quem sabe do que está a falar.
– E trinta e nove minutos – repito como se fizesse diferença.
– Faz diferença – censura o homem, que se vira para a mulher e lhe pergunta: – Não achas que faz diferença?
A mulher suspira:
– Muita diferença.
– E este ano vamos de férias para Cabo Verde – diz o homem, com um sorriso radioso, na expectativa dos amanhãs que cantam. – O voo é agora às onze horas.
Eu abano a cabeça sem saber o que dizer. São quase nove horas e estamos a chegar ao aeroporto.
– Só espero que não esteja muito calor – avisa a mulher, virando-se para ele. – Sabes que eu não gosto de foder com muito calor…
– Nem eu – diz ele, que olha para mim e pergunta: – Ninguém gosta de o fazer com muito calor, pois não?
Abano a cabeça em silêncio – “Acho que não” – e aproveito o sinal vermelho à entrada da Rotunda do Relógio, que me obriga a parar o táxi, para os ver pelo espelho retrovisor: têm cerca de trinta anos, normais e aparentemente saudáveis; a mulher é bonita mas ligeiramente afectada e ele tem estilo, veste roupas de marca mas com um ar excessivamente cuidado.
Cismo no “um ano, vinte e um dias e…”, olho para o relógio no tablier, “quarenta e um minutos” e não consigo conter a curiosidade:
– Os senhores desculpem mas têm estado separados?
A mulher olha-me como se nunca me tivesse visto.
O homem fulmina-me a nuca.
– O senhor taxista é muito curioso, não acha? – Reprova o homem, cruzando o olhar com o meu no espelho. O sinal muda, arranco e olho em frente. Ele continua no mesmo tom: – O que tem o senhor que ver com isso?
“Nada, na verdade, não tenho nada que ver com isso”, penso, arrependido de ter perguntado.
– Nada – reconheço. – Não tenho nada que ver com isso. Desculpem.
Paro o táxi.
– Chegámos – informo, carregando no taxímetro. 
– E o título? – Pergunta, ácida, a mulher.
– Sim, e o título? – Apoia o homem. – “Que esteja a ferver em Cabo Verde”?
 O homem paga-me e eu dou-lhe o troco.
– O texto é meu, o título sou eu que escolho.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Na Feira Medieval

– Ó Seixas, tu tens a certeza que isto é boa ideia?
– Boa ideia?!
– Sim, achas que isto tem alguma graça?
– Ó Araújo, porra! Isto é espectáculo, pá! Um isto faz um vistão do caraças!
– Não sei… Acho isto tudo um bocado apertado, demasiado frágil e, ainda por cima, cheira mal que tresanda.
– Ah… isso! Isso foi ideia do Maia, é das peles!
– Das peles?! Desde quando é que o Cavalo de Tróia tem peles?
– Sabes lá!
– Sei. Não tinha. Eu vi o filme.
– Isto não é um filme, pá. Isto é a história em movimento...
– Mas o Cavalo de Tróia...
– Isto também não é o Cavalo de Tróia, pá, deixa-te de picuinhices! Nós estamos a recriar a Idade Média…
– Eu sei mas o princípio disto é o do Cavalo de Tróia. Ouve lá, mas as peles não são curtidas?
– Curtidas?
– Secas e tratadas… Isto parece que está tudo ainda a pingar sangue e vísceras e sei lá o quê… Está tudo húmido.
– É para não arderem.
– Para não arderem?!
– Sim, o Maia diz que viu isso no Canal História. As peles dos animais antes de serem curtidas custam muito mais a arder.
– Mas porque é que isto devia arder?
– Os gajos podem deitar o fogo a isto.
– Desculpa?!
– Eu não desculpo.
– O quê?!
– Estou a dizer que se deitarem o fogo a isto eu não desculpo.
– Ah… Mas alguém vai deitar o fogo a isto?!
– Os gajos podem tentar.
– Quais gajos?
– Os inimigos, pá. Isto não é uma guerra?
– Não.
– Não?
– Não, isto é uma recriação histórica.
– Sim, uma recriação histórica de uma guerra medieval.
– Essa é outra: se isto é uma guerra medieval porque raio vamos nós dentro desta tralha?
– O Maia diz que os gajos usavam tudo. Não te esqueças que era a idade das trevas. Os gajos eram uns manhosos do pior.
– Isto é um carro alegórico, ó Seixas. Desde quando é que os tipos da Idade Média, por mais manhosos que fossem, usavam carros alegóricos para atacar os inimigos?
– Só para tua informação: os gajos até usavam granadas.
– Granadas?
– Sim, granadas incendiárias. O Maia diz que viu no Canal História. Os gajos usavam granadas com nafta ou lá o que era e queimavam tudo. Os antigos eram maus como as cobras!
– Ouve lá, achas que o Maia disse isso aos outros?
– O quê? Que eles eram maus?
– Não, isso das granadas com nafta.
– Disse. E até lhes explicou que primeiro têm de mandar umas apagadas para a nafta impregnar e só depois é que mandam uma acesa. Diz que faz um efeito do caraças.
– Impregnar?! Impregnar o quê?
– Eu percebi que eram as peles.
– Estas?! As que não ardem?
– Pois. Só que assim já ardem. O gajo farta-se de ver o Canal História, pá. Mais um ano ou dois e isto é uma recriação de alto lá com ela.
– E nós?
– Nós o quê?
– Quando é que saímos?
– Quando nos puserem dentro das muralhas. Já te explicaram isso.
– Quer dizer que ninguém vai usar as granadas?
– Em princípio, não.
– Em princípio?!... E no fim?
– Logo se vê. O gajo diz que isto é dinâmico, pá. Há uma certa liberdade para desenvolvermos as personagens, para criarmos e para desenvolvermos os acontecimentos.
– O gajo é doido, ó Seixas… Então, e se se lembram de deitar as granadas, o que é nós fazemos?
– Improvisamos.
– Improvisamos?!
– Sim, entramos mais fundo nas personagens e actuamos em conformidade. Não nos podemos esquecer que somos guerreiros medievais.
– Foi ele que disse isso?
– Foi.
– E depois?
– Temos de ter isso em conta.
– Sim, mas isso quer dizer exactamente o quê?
– O Maia diz que os tipos eram guerreiros ferozes e intrépidos, sem medo de nada, que…
– Que se tivessem de morrer assados dentro de uma balhana qualquer isso para eles era uma alegria.
– Para alguns sim, para outros não.
– Eu sou dos outros, pá. Ficas já a saber que se me cheirar a queimado, nem que seja a uma cabeça de fósforo a arder, vou-me logo embora.
– ´Tás doido!
– ‘Tava era se ficasse cá dentro.
– E os arqueiros?
– Quais arqueiros?
– Os arqueiros inimigos, pá. Se eles te vêem a sair daqui à doida, estás feito.
– Têm setas?
– Se são arqueiros.
– Pois.
– O melhor que temos a fazer é esperar e ter confiança. Vai tudo correr bem. Os gajos põem isto para dentro das muralhas e quando ouvirmos a senha, saímos.
– “É uma hora e está tudo bem!”
– Isso mesmo. É preciso é calma.
2010

quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Palavra

"A palavra chegava-lhe aos lábios, enchia-lhe o olhar e desabava na expressão do rosto e do corpo mas nunca era dita. Nunca.
A palavra estava ali e era ele e ele era a palavra mas não a dizia.
Os seus olhos, o seu rosto e o seu corpo eram o reflexo da palavra. Um espelho era o que ele era naqueles momentos. Apenas um espelho que reflectia uma única palavra. Uma palavra muda, sem som, sem corpo, sem existência.
E as palavras que não se dizem não existem, nem os espelhos são o que reflectem."
A mulher calou-se, baixou a cabeça, engoliu em seco e tentou normalizar a respiração; então, quando se sentiu segura de si, olhou em frente e continuou: 
"Depois, depois da palavra não dita mas representada, vinham as explicações, as justificações, as tergiversações, as promessas e as juras. Tudo, tudo como se se abrissem as comportas de uma barragem, como se, por milagre, o mudo ganhasse voz. Ele seria outro e a palavra que não fora dita jamais seria necessária. Jamais!
Até que acontecia tudo outra vez e a palavra lhe chegava de novo aos lábios, lhe enchia mais uma vez o olhar e se repetia para lhe desabar a expressão do rosto e do corpo sem, como sempre, ser dita. Nunca foi. E era tão fácil, doutor, tão fácil.” A arguida suspirou e calou-se, correndo o olhar pelo colectivo de juízes que a julgavam. Por fim, fixou-se no juiz-presidente e concluiu: “E o que é que lhe custava, doutor? O que é que lhe custava, nem que fosse por uma vez, pedir desculpa?”
“Agora já não pode”, deixou escapar o magistrado, num tom resignado e sem censura.
“Agora já não”, concordou a arguida.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A Reconciliação

Um murro na mesa e um “Não penses que me lixas!”, proferido em tom de ameaça, não foram suficientes: ele lixou-a. Não o fez logo, nem sequer nos dias seguintes mas fê-lo, fê-lo ainda em tempo útil e de forma a ser percebido.
“Tinha de ser”, justificou o homem como quem pede desculpa mas com ar de quem o faz por mera cortesia. “As coisas são o que são e eu não sou diferente”, concluiu, ainda que ninguém conseguisse perceber o que queria ele dizer com isso; provavelmente, nem ele próprio.
“Ele é mesmo assim,” comentou a mulher, com um ostensivo encolher de ombros, “não diz nada que se aproveite…” Aqui fazia uma pausa, fazia-a sempre como se pensasse no que ia dizer a seguir e como se o pensasse pela primeira vez naquele momento.
“Ele é mesmo assim,” pausa com encolher de ombros, “não diz nada que se aproveite…”, pausa com careta reflexiva; por vezes, chegava a passar a mão pelo cabelo ou pelo queixo mas não o fazia sempre, já a careta era certa, ainda que não tivesse qualquer conteúdo, era apenas uma representação.
Ele riu-se quando soube disso e aproveitou para salientar essa entre enumeras características dela que apresentava com precisão analítica e manifesto orgulho em enunciá-las. No fim repetiu um “Sempre demasiado teatral” acompanhado por uma gargalhada oca, também ele a representar mas sem ponta de ironia, que era mal que nenhum dos dois padecia.
“Usa umas tiradas grandiosas e grandiloquentes que, espremidas, não querem dizer nada. Nada”, dizia a mulher depois da pausa e da careta reflexiva.
“Isso pensa ela”, atirou o homem para pôr fim à conversa, sem cuidar de esclarecer a tal tirada que ninguém percebera e, naturalmente, sem contestar o uso de frases orelhudas mas sem conteúdo.
“O que é uma frase orelhuda?”, perguntaram ambos quando leram o que o narrador escreveu.
“Frases que nos soam bem, que nos parecem ser correctas e acertadas, que estabelecem um vínculo entre quem as profere e quem as ouve. Que causam admiração.”
Ela fez uma careta e ele também mas abstiveram-se de qualquer comentário.
“As caretas são o comentário”, elucidou ela, ao que ele anuiu com um lento oscilar vertical da cabeça e um sorriso cúmplice. Ela respondeu-lhe sorrindo e piscando o olho direito.
“Devíamos falar, Cristina”, sugeriu o homem, aproveitando o facto de ela ter os dois olhos abertos.
A mulher aprovou a sugestão com um silêncio grave e sério e fixou-se no narrador. “E ele?”
“Dá a narração por terminada”, respondeu o homem, antes mesmo de ela fazer a pergunta.
“Agora?”
“Já!”

segunda-feira, 23 de junho de 2014

18:34

– Provavelmente já não te direi mais nada. – Gonçalo mexeu-se na cadeira, desapoiou o queixo da mão direita, passou os dedos em volta da boca e continuou, com um suspiro: – Também não sei o que mais te podia dizer. – Fez uma nova pausa e concluiu: – Não sei o que te dizer, Inês, não sei mesmo.
Gonçalo respirou fundo e engoliu em seco, sentia uma tristeza que lhe pesava fisicamente. Olhou em volta sem ver nada, sem a ver, atento só aos primeiros acordes da música lenta e desconsolada que parecia envolver todo o espaço. “Codex”, reconheceu. Não podia ouvir os Radiohead muito tempo, sabia disso. Por exemplo, adorava “Kid A” mas quando chegava ao fim ficava normalmente num estado lastimoso, como se o mundo não tivesse solução, nem a vida qualquer sentido. Ouviu os mais de quatro minutos da música em silêncio e sem se mexer. Quando a música terminou, recomeçou a falar num fio de voz mas como se não se tivesse chegado a calar: 
– Eu sei que fiz tudo mal, Inês. Devia ter insistido. Devia ter-te dito que te queria. Eu queria-te, Inês. – Gostava de ouvir o nome dela. Precisava de dizer o nome dela. – Eu quero-te, Inês. – A ausência de nomes nas conversas, magoavam-no. Percebia que as pessoas não fizessem por mal. Sabia que ele próprio era capaz de falar horas sem dizer um nome mas sabia, sabia tão bem, que, no fim, lhe ia custar perceber que não dissera nomes. Que falara como se falasse com outra pessoa qualquer. – Provavelmente… – soltou um risinho nervoso. – Provavelmente… – repetiu em tom sarcástico, acenando com a cabeça, censurando-se. – Quem eu é que eu quero enganar com estes provavelmentes? As coisas são o que são e os provavelmentes são pontos de fuga que arranjamos para não assumir todas as culpas. Todas as responsabilidades. A probabilidade de uma coisa não ser o que nós fizemos que ela fosse não é da nossa responsabilidade. Se, contra todas as probabilidades, um acto ou um conjunto de actos não tem o fim que devia mas sim um melhor do que o esperado, isso não se deve a quem os praticou, pelo contrário, aconteceu apesar da nossa culpa.
Gonçalo calou-se e concentrou-se na música mas não a reconheceu. Não sabia o nome. Ainda eram os Radiohead e estavam a fazer-lhe mal. Isso sabia. – Provavelmente... – riu-se da palavra que, no entanto, julgava ser acertada nesta frase. – Provavelmente, esta não é a melhor banda sonora, Inês. – Levantou os olhos e viu-lhe a face inexpressiva e inescrutável. Fez uma careta para si próprio e, então, suspirou, sem querer mas sem o conseguir conter. – Desculpa – murmurou, sentindo o suspiro como uma falha.
Levantou-se da cadeira e foi até ao leitor de mp3 que alimentava as colunas de onde saía a música. “Give up the ghost”, leu e sorriu. Tornou a ler e o sorriso abriu-se mais. Virou-se para ela. – Acho que ias achar piada a esta – disse. – À situação – riu. – É um bocadinho macabro e demasiado negro mas give up the ghost é, dirias tu se não estivesses aí, se não fosses tu o ghost, a banda sonora ideal para animar as visitas.
Gonçalo aproximou-se da cama onde jazia o corpo de Inês, tocou-lhe na mão, que o surpreendia sempre pelo calor que emanava e pela maciez, beijou-a levemente no rosto e despediu-se. – Até amanhã, Inês.
 – Ah! – Gonçalo encostou a porta que já abrira para sair e voltou-se para dentro do quarto. – Hoje vou pedir ao teu irmão que acrescente os Smiths ao mp3. – Riu como se risse com ela. – Claro, Inês, o que é que havia de ser? – E saiu a trautear: – "Girlfriend in a coma, i know, i know, it's serious."
2012

quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Protector

Com ar encalorado e estafado, o homem deixou-se cair no cadeirão da sala, grunhiu um boa tarde abafado e encarou a mulher com um sorriso amarelo.
– Então, valeu a pena? – perguntou a mulher, depois de lhe sorrir com compaixão.
O homem encolheu os ombros, abriu os terceiro e quarto botões da camisa (os outros já estavam abertos) e suspirou:
– Sei lá… Acho que não.
A mulher tornou a sorrir.
– Mas tinhas de ir – disse a mulher, num tom tão compreensivo como o sorriso –, se não fosses arrependias-te.
– Arrependi-me na mesma – lamentou-se o homem, que já abrira a camisa e agora trabalhava no cinto e no botão das calças. – Estava muito calor…
– Este ano puseram uns tubos a deitar umas nuvens de água para refrescar… – A mulher via-o de esguelha a despir as calças.
– Pois foi, mas não era suficiente e não era na feira toda. – O homem levantou-se para tirar as calças que pousou no chão ao lado do cadeirão e tirou a camisa que dobrou sem cuidado e colocou em cima das calças. – E, ainda por cima, era nas zonas que tinham alarmes e guardas. Parei lá pouco – concluiu o homem, aborrecido.
A mulher deu uma gargalhada. Havia algo no marido, semi-nu, com ar afogueado a queixar-se de alarmes e guardas que a divertiu sem que percebesse porquê. O homem fez-lhe uma careta e mostrou-lhe a língua.
– E, provavelmente, era onde devias ter ido mais – picou-o a mulher ainda a rir.
Em silêncio mas concordando com a cabeça, o homem levantou-se e saiu da sala. Da cozinha gritou se a mulher queria alguma bebida fresca. Ela respondeu-lhe que não. Quando reentrou na sala, o homem trazia uma cerveja numa mão e vários sacos noutra. Levantou os sacos como um troféu. Pousou a cerveja na mesa de apoio ao cadeirão e com ar triunfante despejou os sacos cheios de livros em cima do sofá de três lugares onde a mulher continuava sentada.
A mulher olhou para os livros com desdém, eram mais de vinte, e perguntou com secura:
– Quantos é que estão autografados?
– Ou sete ou oito.
– Só?
– O resto não interessava ao menino Jesus.
– Assim, tens quantos autografados?
– Vinte e sete ou vinte e oito. – O homem foi buscar a cerveja e sentou-se no cadeirão de onde saíra.
A mulher mexia nos livros como se estivessem contaminados, afastando-os uns dos outros apenas o suficiente para lhes ler os títulos, fazendo caretas de desagrado ou de troça a quase todos eles.
– Tinhas razão – disse, virando-se para a televisão, depois de lançar o único livro que agarrara e abrira, para confirmar se estava autografado, para cima dos outros. – Não valeu a pena.
O homem suspirou agastado e despejou a garrafa de uma golada. No fim, encolheu os ombros e constatou com pesar:
– São poucos mas entre o calor, as filas, os alarmes e os que não mereciam, foi o que se arranjou… O que é que queres que eu te faça?
– Tens de ir tomar banho primeiro – sussurrou a mulher, semicerrando os olhos e esboçando um sorriso ténue.
– Eu estava a falar dos livros.
– Eu não.
– Eu percebi.
– E?
– E, o quê?
– Vais tomar banho?
O homem pôs as mãos nas pernas junto aos joelhos. Baixou a cabeça e abanou-a para um lado e para o outro. Suspirou ruidosamente. Levantou a cabeça e encarou a mulher. Sorria. Ela estranhou-lhe o sorriso mas, olhando-o com atenção, notou um início de erecção; ele já a tinha sentido.
– Arrumas os livros? – Perguntou o homem, pondo-se de pé.
Satisfeita, ela anuiu com a cabeça.
Ele foi-se lavar.
– Pagaste algum? – gritou a mulher, enquanto os empilhava.
– Achas?! – berrou ofendido o homem, já debaixo do chuveiro. – Eu estou a salvar leitores, Maria! A salvá-los dessas obras magníficas. A salvá-los de si próprios. A salvá-los desses autores manhosos – proclamou o homem entre gargalhadas.
A mulher encostou-se à ombreira da porta da casa de banho e disse-lhe:
– Sempre quero ver as caras deles quando lhes devolveres os livros. Ainda por cima autografados.
O homem fechou o chuveiro, abriu a cabine de duche e sentenciou:
– É para aprenderem a não escrever porcarias.
A mulher lançou-lhe uma toalha de bidé lavada para se limpar.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

António José Seguro/António Luís Costa. A Reunião.

A porta abriu-se. António José disse, “Entra, António, entra” e fez sinal para que ninguém o acompanhasse.
António Luís fez uma vénia com a cabeça, despedindo-se dos camaradas que ficavam à porta, e entrou.
António José levantou-se mas permaneceu atrás da secretária. Não sorria.
António Luís entrou a sorrir e estendeu a mão quando se aproximou da secretária atrás da qual António José parecia barricado. António Luís constatou o facto de o seu interlocutor parecer um animal acossado. “0-1”, pensou.
António José esperou até ao último momento socialmente aceitável para estender a mão e responder ao cumprimento. Gostou de ver o sorriso de António Luís vacilar quando, por um instante, duvidou que ele lhe respondesse ao cumprimento. “1-0”, contabilizou.
Quando apertaram as mãos, ambos sorriam.
– Queres ir para o sofá? – perguntou António José, depois dos cumprimentos e da conversa de circunstância.
António Luís olhou para os sofás, para a mesa de reuniões, para as cadeiras que o ladeavam em frente à secretária que os separava e, por fim, anuiu com a cabeça.
António José saiu de trás da secretária e com um gesto magnânimo indicou o sofá onde António Luís se devia sentar. Sofá que tinha mandado ir buscar à arrecadação para onde tinha sido enviado por ter molas que se espetavam em quem nele se sentava. António José ria para dentro.
António Luís sentou-se e sentiu de imediato as consequências.
– Leste a Guerra dos Tronos, Tó-Zé? – perguntou António Luís, levantando-se, com cara de poucos amigos.
– Deves querer dizer As Crónicas de Gelo e Fogo, António, de que A Guerra dos Tronos é o primeiro volume – corrigiu António José.
António Luís anuiu e insistiu:
– Leste?
António José abanou a cabeça negativamente e replicou:
– E tu?
– Também não – admitiu António Luís, passando a mão pelo assento irregular do sofá. – Mas sei que o Trono de Ferro, o trono dos Sete Reinos, também é como este sofá que me deste: doloroso e traiçoeiro. Que não nos deixa estar sentados confortavelmente. Mas – António Luís tornou a sentar-se –, ainda assim, é um trono, um trono com tudo o que isso representa.
António José, de pé, ouviu-o com um sorriso cínico e, quando o viu sentado com ar sofrido mas estóico, contra-argumentou:
– E tu, qual Tyrion Lannister, tudo farás para te sentares nele, mesmo que o trono te rasgue as calças e as cuecas e te possa até sodomizar.
Perplexo e escandalizado, António Luís levantou-se, bufando.
– O Tyrion Lannister é um anão disforme e sádico…
– E parricida – acrescentou António José.
– Mas um bom governante – completou António Luís antes de se calar perante o ar de imbecil superioridade com que o outro o olhava. – Parricida?! – Deixou escapar.
– Sim, o Tyrion mata o pai, o Tywin Lannister – António José falava com displicente sobranceria – e mata-o noutro trono, curiosamente, num que te ficava melhor, meu caro. Bem melhor.
António Luís engoliu em seco e, com a certeza que a referência ao trono onde a personagem fora morta era uma armadilha, refreou a curiosidade.
– Eu não vim aqui para falar de livros ou de séries de televisão, Tó-Zé.
– Não?
Não.
– Tu é que falaste na Guerra dos Tronos – retorquiu António José, impassível.
– Pois fui – António Luís continha-se a custo, a postura e a expressão de António José estavam a deixá-lo à beira do descontrolo. – Mas isso agora não interessa nada. Eu vim aqui para te dizer pessoalmente que pretendo avançar para secretário-geral, como sabes, e que pretendo que convoques um congresso com esse fim.
– Queres que eu convoque um congresso com o fim de te entronizar? – António José abanava a cabeça com desdém. António Luís espumava. O secretário-geral concluiu: – É isso? É isso, não é?... Queres que eu convoque um congresso para te entregar o trono de mão beijada. Para surfares a vaga de fundo. Achas-te uma espécie de McNamara no canhão da Nazaré e eu… Eu sou o tipo da mota de água, o tipo que carrega as pranchas, que te vai buscar à praia e que te deixa no sítio certo para surfares a onda... Sim, senhor. É isto, não é? – António José estendeu a mão a António Luís, que a agarrou. – A tua posição e pretensões estão registadas, António. Se não for mais nada, eu tenho mais o que fazer. Até um dia destes.
Os homens soltaram as mãos. António Luís encaminhou-se para a saída. António José ignorou-o e voltou à secretária.
António Luís já segurava a maçaneta da porta quando se virou para trás e disse:
– Tu não tens o que é preciso para surfar ondas gigantes, Tó-Zé – Rodou a maçaneta e esboçou um sorriso cínico. – Aliás, se queres saber, nem a guiares motas de água és bom, pá. Nem isso… – Abanou a cabeça com desdém e saiu.