segunda-feira, 10 de outubro de 2016

às voltas

Voltar a escrever, escreveu.
Voltar a escrever, repetiu.
– Porque não começas um diálogo e deixas a coisa fluir? – perguntou uma personagem.
Ele inspirou pelo nariz e abanou a cabeça: queria outra coisa mas não sabia o quê.
A personagem encolheu os ombros e não insistiu; na realidade, não tinha nada para dizer.
– Mas isso verifica-se em, pelo menos, oitenta por cento das vezes e, no entanto, as personagens falam, os narradores escrevem, as pessoas lêem – declarou uma voz.
Ele olhou em volta, a frase soou-lhe como se estivesse a ser dita junto a si. Não gostou.
– Oitenta por cento… – a voz interrompeu-se para soltar um riso trocista. – Quem nos dera… Pelo que se pode ler aqui cem por cento e é porque não pode ser mais.
– As personagens reflectem a realidade – resmungou a personagem.
– Entroncamentos sem fim – disse a voz.
– Isso são rotundas.
– Não, isso é poesia – corrigiu a voz, sarcástica. – Rotundas são rotundas, entroncamentos sem fim é outra coisa qualquer. É o sonho, a fantasia…
Riram. A voz e a personagem riram. Ele não. Não era isto que queria escrever. Não queria voltar a escrever para escrever isto.
– Não escreva – ditou a voz.
– Sim, não escrevas – concordou a personagem.
– Os narradores são muito esquisitos – opinou a voz. A personagem abanou bovinamente a cabeça para cima e para baixo.
– Estava implícito – disse a personagem, num tom ácido. – Se eu abanei bovinamente era porque estava a concordar, se estava a concordar só podia abanar de cima para baixo.
– Aliás, se pensarmos bem – intrometeu-se a voz, cheia de si –, os bovinos não abanam a cabeça na horizontal, só na vertical.
– Achas? – duvidou a personagem.
– Eles têm um olho de cada lado, para que precisam de virar cabeça?
– Abanar.
– É a mesma coisa – replicou a voz. – Como têm um olho de cada lado, se abanassem a cabeça na horizontal perdiam a noção das coisas. Voluntariamente, os bovinos só abanam a cabeça para cima e para baixo.
– E involuntariamente?
– Abanam para todo o lado.
Riram à gargalhada.
– Cem por cento – disse a personagem, eufórica.
– Cem por cento – repetiu a voz, com um brilho no tom. – Não se aproveita nada.
– E a culpa não é nossa – exclamou a personagem, contentíssima.
– Não, a culpa é deste narrador da treta enfiado num entroncamento sem fim que quer voltar a escrever sem saber o quê.
– Esses são os piores.
– Os piores – apoiou a voz.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Tempo Novo: Praia

A areia entre a sombrinha de palha e o mar escalda-lhe os pés mas, apesar da dor, sente que não pode correr ou sequer caminhar mais depressa pois sabe que está a ser visto. Controlado. Avaliado. Cerra os dentes e os lábios e inspira lentamente pelo nariz até suspender a respiração como se isso lhe aliviasse o desconforto por cada passada que dá. Fixa-se no mar para ganhar alento. A dolorosa caminhada vai terminar num mergulho fresco e daí a um instante já se terá esquecido que tem plantas dos pés. Expira sem quase abrir os lábios e repete silenciosamente dois ou três palavrões várias vezes.
“Já não me bastava não poder comer Bolas de Berlim como, agora, nem sequer posso correr na areia a ferver”, reclama para si quando, finalmente, alcança a beira-mar, a areia molhada e a água lhe envolve os pés. Um bálsamo para um homem dorido mas satisfeito: mostrou-se duro, teso, imperturbável, tudo o que acha que um homem acossado tem de ser ou, pelo menos, parecer.
Respira fundo. Sorri, já não sente as plantas dos pés por mais que tente; já não as consegue distinguir do resto do pé.
“Uma dor tão forte mas tão fugaz, tão passageira”, medita, entrando pelo mar. “Pior é não poder comer as bolas. Ouvir apregoá-las, sabê-las frescas e deliciosas, cheias de creme…”, respira fundo. “E os gajos desde ontem parece que gozam, parece que fazem de propósito, gritam mais, passam mais vezes, insistem e a malta compra e olha-me como se me desafiasse...” Está a pontos de rebentar e mergulha.

– Logo vamos embora – anuncia, quando se deita pesadamente na espreguiçadeira.
– Embora? – A mulher, deitada na espreguiçadeira ao lado, levanta a cabeça, suporta o tronco nos cotovelos e olha-o desconfiada. – Houve novidades?
– A novidade é que eu não aguento mais estar aqui sem comer Bolas de Berlim!
– Ainda estão ali as que eu te trouxe da pastelaria.
– Não têm nada a ver, Ágata!
– São da mesma fábrica…
– Não são iguais, bolas! – Vira-se na espreguiçadeira e fica virado para cima. – Ainda por cima a areia está a ferver – reclama num tom que não permite contraditório.
A mulher lança-lhe um último olhar, encolhe os ombros, estica os braços, deita-se e fecha os olhos com um suspiro.

– A minha comadre diz que achou o Santos Silva muito fraquinho mas que por eles não cais, Fernando. – A mulher virara-se na direcção dele e falava baixinho. – E que já voltaram a dizer isso ao Pedro Nuno. O Bloco vai manter um ruidoso low-profile.
– Hoje foi ela que falou com ele? – O homem não se mexeu.
– Foi, foi a Catarina que lhe ligou e diz que uma das Mortáguas também. Por ali estás descansado.
– Mas aqui não, Ágata. Aqui não estou. A areia está perfeitamente insuportável e… – o homem soprou e virou-se para a mulher – ainda por cima os fiscais das finanças multaram um vendedor de bolas. – O homem suspirou, abanou a cabeça e voltou a bufar. – Não posso continuar, Ágata. Não tenho condições.
– Levas uns chinelos.
– Levo uns chinelos para onde?
– Para ires ao mar, não estavas a dizer que a areia está a ferver?
– Eu não estava a falar disso.
– Então?
O homem semicerrou os olhos e engoliu em seco.
– Se vou pagar à Galp é porque estou a assumir que não devia ter ido. Que não devia ter aceite o convite…
– Que é uma conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes, Fernando.
– Mas se eu lhes vou pagar, estou a assumir que não é, Ágata.
– Mas tu vais pagar?
– Não mas…
– Vais dizer que devias pagar?
– Não mas…
– Então, tu, no teu juízo e opinião, tiveste uma conduta socialmente adequada. Não foram mais dois? Não foram mais os do PSD?
– E não só…
– Então, queres uma coisa mais usual e costumeira, mais socialmente adequada do que aceitar um convite…
– Dois.
– Ou dois, para ir ver a bola, ainda por cima a um campeonato que só há de quatro em quatro anos?
– O Passos pagou a viagem e os bilhetes.
– Mais me ajudas, Fernando, mais me ajudas. – A mulher empolgada, sentou-se. – Queres um melhor exemplo de um tipo socialmente inadequado e mais contrário aos usos e costumes da classe e casta onde se integra do que ele? Esse gajo, esse moralista de Massamá, esse pé-descalço da Manta-Rota, esse António Conselheiro de trazer por casa é que dá mau nome à classe politica, Fernando. Ele é que é uma carta completamente fora do baralho. Porque é que pensas que ele anda a penar?! – A mulher riu. – Ele, a pagar as suas viagenzinhas e os seus bilhetinhos para o meio da maralha, é que é socialmente desadequado, ele é que é um atentado aos usos e costumes da classe politica, aos nossos gestores públicos, à nossa autonomia universitária. Esse gajo é que devia ser preso para aprender que o país não se governa sozinho sem nós, quem sabe, a orientar; que a presença do Estado em tudo não é facultativa; que se damos tudo ao povo, que se fazemos tudo em prol do povo temos direito a que o povo ou alguém por ele nos retribua.
– A Galp?
– A Galp, a Olivedesportos, a Central de Cervejas, o raio que os parta!
– Então, por essa ordem de ideias, achas que posso comer uma Bola de Berlim?
– Claro que podes. Parece mal é não comeres, homem. Comes duas ou três e no fim pedes o recibo, Fernando, e se o gajo não to passar pedes-lhe a identificação!
O Secretário de Estado põe-se em pé de um salto, abre um sorriso de orelha a orelha, procura um vendedor de Bolas de Berlim e grita como um selvagem faminto:
– Ei! Olhe! Você! Makanaki!

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A Idade do Tempo Novo

– Ele não me atende – barafustou Fernando, puxando uma cadeira para se sentar. – Estou farto de lhe ligar e ele não me atende.
O amigo esperou que ele se sentasse e pousasse o telemóvel e gracejou:
– Ó Fernando, deixa-me que te diga, pá, mas isso de ires ver a bola à borla, a convite da Galp, foi uma ideia de merda, meu.
– Se fosses tu, não ias? – atirou o Fernando, irritado.
– Se fosse eu, ninguém me convidava – respondeu o amigo com um risinho.
– Mas se fosses, não ias, Luís? Qual é o problema? Qual é a merda do problema?! Fui ver um jogo, pá. Um jogo da selecção! Como é que alguém há-de achar que isso me condiciona seja para o que for, não me explicas?
– Se tu não percebes por ti não vou ser eu…
– Bardamerda, Luís. Tu conheces-me, pá, achas que isso me faz alguma diferença?!
– E o teu chefe?
– O meu chefe, o quê?
– Já lhe ligaste?
– A quem?... Ao Costa?
– Sim, não é ele o teu chefe?
O Andrade fez uma careta e evitou a pergunta:
– Já, já falei com ele – respondeu.
– E?
– Ele é que me mandou ligar ao João.
– Para quê?
– Para que é que achas que há-de ser? Para que ele decida.
– Se tu ficas?
– Sim.
– Ele é que decide?
– É, ele é que é o Comissário Strelnikov cá do sítio, a única diferença é que não decide sozinho. A Ana Catarina e o Pedro Nuno também decidem e o Strelnikov também ausculta o Bloco.
– E o Costa?
– Faz o que lhe dizem.
– E o Centeno, tu és secretário de estado dele, o gajo não tem voto na matéria?
O Andrade olhou-o espantado, suspirou ainda composto mas desmanchou-se numa gargalhada alarve.
– Só tu, pá…. – disse sem parar de rir. – Só tu para me fazeres rir a esta hora… O Centeno…
– E o IMI? – interrompeu o amigo como se tivesse tido uma epifania.
– O IMI, o quê? – O Andrade parou de rir e dirigiu-lhe um sorriso malicioso que fez por mostrar que escondia.
– Esta história do IMI, do sol e das vistas… – O amigo ficou subitamente sério com a certeza que a epifania era correcta. – Isto foi para te proteger?! Isto foi para lançar uma cortina de fumo, para dizerem que há má-fé em quem te está agora a atacar?
O Andrade não confirmou mas voltou a sorrir.
– Vocês já sabiam que isto ia sair?!
O Andrade riu-se:
– O Sterlnikov e a Cersei sabem tudo, pá. Tudo!
– A Cersei?
– A Fernanda.
– Então porque é que queres falar com ele? Isso não está já tudo decidido e manobrado?
– Isto é sempre dinâmico, pá, e, às vezes, só no fim é que tu vês o filme todo. Tudo isto foi-me apresentado como a minha melhor defesa mas…
– Até ao lavar dos cestos é vindima!
– Pois e eu não sou dono dos cestos, nem da vinha, nem sou especialmente necessário para os jogos deles. No fim, isto foi tudo muito bem arranjadinho e tal mas não foi necessariamente para mim... – O Secretário de Estado olhou para o telemóvel inerte em cima da mesa e respirou fundo. – Mas, em princípio, é. É para mim.
– Mas, se ficares... – Luís tentou lembrar-se de uma personagem shakespeariana qualquer para ilustrar o que ia dizer mas não tinha cultura que chegasse para isso e recomeçou: – Mas, se ficares, ficas agarrado a eles, completamente agarrado a eles…
Fernando anuiu levemente com a cabeça, sem embaraço ou preocupação.
– O tempo novo é velho, pá – concluiu o amigo, abanando a cabeça.
– Velhíssimo, meu caro. Velhíssimo como o mundo.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Dia Mundial da Criança

A voz saiu-lhe num falsete burlesco e o arguido, sentindo-se atraiçoado por si próprio, amuou e calou-se.
“Não percebi”, disse-lhe a juiz.
O arguido respirou fundo, fulminou-a com o olhar e abanou a cabeça.
“Não vai falar?”, perguntou a juiz.
O arguido, mantendo os braços ao longo do corpo, abriu e fechou os punhos com força, encolheu os ombros de forma quase imperceptível e manteve-se calado.
“Vai seguir a sandália ou a cabaça?”, inquiriu a juiz, com um sorriso. “Tem de se decidir.”
O arguido olhou para a sua advogada, que lhe respondeu com uma expressão de um completo vazio, e, depois de engolir em seco e morder o lábio inferior para se concentrar, disse, sem encarar a juiz:
“Não fui eu.”
“Não foi o senhor, o quê?”
“Que fiz isso.”
“Não?”
“Não.”
“Ah, pronto, se é assim.” A juiz olhou para o procurador. “O arguido diz que não foi ele, senhor procurador.”
“Eu ouvi.”
“Eu calculei que sim”, respondeu a juiz, com ar enfadado. “Como a acusação é sua, repeti-lho para que me dissesse alguma que se aproveitasse.”
“Não foi o caso”, intrometeu-se a advogada de defesa.
“Não, não foi”, reconheceu a juiz, “mas a senhora doutora vai, com certeza, brindar-nos com algo de muito proveitoso, não é assim?”
“Eu?”, espantou-se a advogada que, abrindo um sorriso confiante, não se atrapalhou: “Não, nem por isso.”
“Porquê uma sandália ou uma cabaça?”, perguntou o procurador, com maus modos.
“O senhor sabe?”, perguntou a juiz dirigindo-se ao arguido mas, antes que ele respondesse, ergueu a mão direita com o indicador esticado que, depois, acompanhou com o resto dos dedos, ordenando-lhe que não respondesse e ao mesmo tempo conferindo a perfeição e brilho da unhas perfeitamente arranjadas e pintadas. “Senhor Rui”, disse dirigindo-se ao funcionário, que levantou as sobrancelhas antes de erguer os olhos para a ver. “Com bons modos, senhor Rui”, avisou-o a juiz. “Está a gravar?”
O funcionário suspirou e negou que o estivesse a fazer.
“Porque é que o senhor é tão dramático?”
“Não sou”, replicou o funcionário. “Não sou nada dramático só não acho isto nada correcto, doutora. Os direitos constitucionais do arguido estão a ser completamente atropelados. A minha opinião…”
“Eu sei, senhor Rui, eu sei bem qual é a sua opinião. Aliás, todo o tribunal sabe, por isso, escusa de a repetir.”
“Eu é que devia estar aí”, lamentou-se o funcionário.
“A senhora doutora desculpe”, interrompeu o arguido.
“Não desculpo.”
“A Vida de Brian.”
“A Vida de Brian, o quê?”
“A cabaça ou a sandália.”
“Mas a que propósito vem isso agora?”
“A senhora doutora perguntou-me se eu sabia”
“Perguntei mas mandei-o calar, não foi?”
O arguido baixou a cabeça.
“E, afinal, o que é que o senhor não fez?”, lançou-lhe a juiz.
“Isto é tudo altamente irregular”, declarou o funcionário.
“Está a gravar?”, atirou a juiz, furiosa.
“Não, sabe bem que não.”
“Então,” a juiz riu-se, “como o que não está no processo não está mundo, isto é como se não existisse, senhor Rui. Descontraia-se.”
O funcionário encolheu ostensivamente os ombros, escondidos debaixo de uma capa preta que procurava dar-lhe um ar solene, sem o conseguir.
“O senhor procurador ou a senhora doutora têm alguma coisa a objectar ou a requerer?”
Os visados entreolharam-se e chocalharam as cabeças a compasso na horizontal.
“Bem me parecia.”
“E eu?”, perguntou o arguido.
“Vai condenado.”
“Porquê?”
“Porque não?”
“Eu não fiz nada.”
A juiz hesitou, olhou para as folhas que tinha à sua frente e, encarando o arguido com um sorriso insolente, declarou:
“Era um crime de omissão de auxílio.”
“A acusação que me foi lida…”
“Enganei-me. A sua era de omissão de auxílio. Quem vota a favor?”
“E depois?”
“Vamos fazer pizza.”
Votaram todos a favor com o braço levantado, menos o funcionário.
“Eu antes queria ir ao estúdio de televisão.”
“Não é isso. Isso vemos quando sairmos daqui”, disse a juiz. “Está condenado?”
“Condenadíssimo”, respondeu o funcionário, levantando os dois braços.
“Muito bem. A sentença, senhor arguido, são três anos na choldra, mas com pena suspensa, e 50 kidzos de custas. 25 para mim, 10 para o senhor procurador e para a advogada e 5 para o funcionário. Está encerrada a sessão no Tribunal da Kidzania.”
“Cinco?!”

terça-feira, 31 de maio de 2016

Cosidos


Briefing entre António Costa e Augusto Santos Silva, respectivamente, Primeiro-Ministro e Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, a chegar ao fim [o briefing, não Portugal (espera-se)]:

– Ah e já me esquecia: o Marcelo vai ter uma estátua.
– Qual Marcelo?
– O Presidente.
– O Marcelo vai ter uma estátua?! O homem ainda nem é presidente há três meses, como é que é isso?!
– O Obama ganhou o Nobel da Paz e nem era presidente há um ano, António.
– Mas o Obama é nosso, Augusto, é de esquerda. Foi merecido. Agora o Marcelo, uma estátua?!
– A estátua é de cera.
– De cera?! De cera, Augusto?! O Marcelo vai ter uma estátua de cera?
– Sim, de cera.
– Onde?
– Em Madrid, no Museu de Cera de Madrid.
– Uma estátua de cera… Isso era bom era para o Cavaco. O Cavaco ficava bem no Museu da Madame Tusseau na parte do horror. Isso é que era. Mas porque é que raio o Museu de Cera de Madrid quer uma estátua de cera do Marcelo, são doidos?
– Dizem que é para poupar nas fotografias, como ele nunca pára quieto os fotógrafos queixam-se que as fotografias ficam sempre tremidas.
– Ah… Ó Augusto poupa-me, pá, isso só tinha graça se as máquinas ainda tivessem rolo. Estavas a mangar, era?
– A mangar?
– A gozar, pá, estavas a gozar, não era? O Marcelo não vai ter nenhuma estátua, pois não?
– Vai, António, em cera, no Museu…
– De Cera de Madrid, já me tinhas dito. E vai ter um pavio no cocuruto da cabeça para se poder acender? Se tiver eu vou lá acender a vela.
– É uma homenagem ao nosso Presidente, não me parece bem que o Primeiro-Ministro queira queimar o Presidente.
– Vai-te lixar. Vais lá tu?
– Acho que não é preciso. Acho que não é preciso ir ninguém de nós.
– Achas que o gajo no meio da sua hiperactividade se acende a si próprio? Que é ele é que se vai queimar?
– Podia acontecer, António, podia acontecer mas acho que também não vai ser ele a acender o pavio, eu acho que o Passos já deve ter os fósforos a jeito. O homem se pudesse derretia-o todo.
– Já o Churchill dizia que no outro lado do Parlamento estavam os adversários mas que os verdadeiros inimigos estavam ao seu lado, eram do seu partido.
– O Seguro queixou-se do mesmo.
– O Seguro era um choninas, Augusto, um choninas. Adiante. Mais alguma coisa?
– Ainda não sei o que vão eles fazer ao Cavaco.
– Quem?
– O Museu de Cera de Madrid, o Aníbal também lá tem uma estátua.
– Dele?
– Sim.
– E eu?
– Tu o quê?
– Porque é que ninguém faz uma estátua de mim?
– Também querias ser uma vela gigante?
– Eu, pelo menos, segundo alguns comentadores de carregar pela boca, já tenho experiência em arder em lume brando.
– Cozer.
– Coser?
– Não é esse coser, é cozer. Já tens experiência em cozer em lume brando.
– Arder é igual mas também podia ser coser, eu estar a coser com um lume brando, porque é que não podia ser?
– Porque não és tu que estás a coser, estás a ser cozido, António, o homem diz que estás a ser cozido em lume brando. Não estás a coser ao lume, és alguma velhinha?
– Eu dou-te a velhinha! Eu estou é a cosê-los a todos. A coser tudo. Achas que tenho cosido pouco?! Coso aqui, coso ali e quando dão por isso já estão todos cosidos uns aos outros, ninguém se solta! Só eu é que domino as agulhas. Tudo cosido e todos cozidos. Bem podem arranjar velas gigantes que, quando eu acabar, vão precisar de muitas velas para acender! Ó se vão…


segunda-feira, 23 de maio de 2016

A Vaca que Voa

– E a vaca, doutora?
– Qual vaca?
– A vaca que voa. A que eu lhe dei no outro dia.
– Não me deu a mim.
– Não?...
– Não, foi à doutora Maria Manuel.
– Maria Manuel?! Quem é a doutora Maria Manuel?
– A senhora Ministra da Modernização Administrativa.
– Manuela.
– Manuel, senhor Primeiro-Ministro.
– António.
– António, o quê?
– Eu sou António, não sou Manuel.
– Ah!... Sim, eu sei. Não era isso. Eu estava a confirmar-lhe que a minha colega da Modernização Administrativa é Manuel não é Manuela.
– Pois… E a vaca?
– Não sei, senhor Primeiro-Ministro, tem de lhe perguntar a ela.
(sussurra) – Qual é?
– Não percebi, desculpe.
(sussurra) – A ministra da vaca, qual é?
– Ah… (sussurra) É a colega que está a olhar para nós.
(olha em volta e volta a sussurrar) – Estão duas.
(sussurra) – Não é a Dra. Van Dunem.
– É a outra!
– Pois.
– Manuel?
– Maria Manuel.
– E a doutora?
– Eu?!
– Sim. Também é ministra?
– Não, vim só cá ver se o senhor Primeiro-Ministro ainda tinha vacas voadoras para dar.
– Ah. Essa é boa… Mas olhe que a vaca não voa, tem uma guita. Um cordel.
– Não me diga…
– Ai isso é que digo. Se não se agarrar pelo cordel a vaca estatela-se no chão.
– Não me diga isso, senhor Primeiro-Ministro.
(dá uma gargalhada) – É verdade… A vaca tem asas mas não voa. Onde é que já se viu uma vaca voar?
– O senhor Primeiro-Ministro é que disse.
– Não se pode acreditar em tudo o que um primeiro-ministro diz, senhora doutora. A senhora acredita?
– Em si?
– Sim, sim, em mim. Imagine que eu sou primeiro-ministro e digo que é possível as vacas voarem, a senhora acredita?
– É difícil de acreditar.
– Não esteja a brincar, acredita ou não?
– Acredito, se o senhor é primeiro-ministro, e é, e diz que as vacas podem voar, eu acredito. Além do mais, o senhor é o meu primeiro-ministro e nós somos socialistas. Estamos sempre prontos a acreditar.
– Isso é verdade. É isso é que nos diferencia da direita, nós acreditamos que é possível. Nós acreditamos que as vacas podem voar…
– Desde que tenham um cordel.
– Naturalmente, naturalmente. (ri) Somos socialistas mas não somos completamente malucos, senhora doutora. Se bem se lembra, o Kennedy, em 62, também disse que os americanos iam chegar à Lua antes do fim da década e houve quem não acreditasse mas, no entanto, chegaram.
– Acreditaram.
– Pois, acreditaram. Os americanos acreditaram e chegaram à Lua e nós e as vacas é quase a mesma coisa.
– Estou a ver. O senhor Primeiro-Ministro quer que seja um desígnio nacional pôr as vacas a voar.
– Não, não somos malucos, lembra-se? Eu só quero pôr os portugueses a acreditar que é possível as vacas voarem. Se elas voam ou não isso é um problema delas.
– O que o senhor Primeiro-Ministro pretende é que as pessoas acreditem que se fossem vacas, podiam voar.
– Exactamente! É isso mesmo! (entusiasma-se e fala alto para todo o Conselho de Ministros) Eu quero que a senhora e todas as senhoras presentes acreditem que se forem vacas podem voar.
– E os senhores?
– Os senhores?
– Sim, também podem voar?
– Podem, claro que podem. Os homens também têm de acreditar que se forem bois também podem voar!
– Manadas…
– Manadas?
– De bois e vacas a voar por aí.
– Em sentido figurado, senhora doutora, em sentido figurado. O importante é acreditar que se pode voar, quer se seja uma vaca ou um boi. Como se dizia na canção, temos de acreditar que, como as vacas e os bois, somos livres, somos livres de voar.
– Era uma gaivota.
– Eu sei que era uma gaivota, senhora doutora, mas a gaivota não precisa de acreditar que pode voar, ela voa. Já as vacas…
– E os bois.
– Pois. Já as vacas e os bois, temos de ser nós, o Governo, o Partido Socialista, a esquerda, os que acreditam e não deixam de sonhar com os amanhãs que cantam…
– Esses são os comunistas…
– Não me interrompa! Já as vacas e os bois temos de ser nós, os que acreditam e não deixam de sonhar com os amanhãs que cantam, que os temos de fazer acreditar que é possível voar. Contra os velhos do Restelo, contra a direita reaccionária, contra a direita dos aziados, mesmo contra aquela esquerda que teima em que vamos contra a parede, contra tudo e contra todos, havemos de pôr os portugueses e as portuguesas a acreditar que, se fossem bois ou vacas, bastava-lhes abrir as asas para voar!
(o Conselho de Ministros ergue-se de um pulo numa portentosa aclamação)


terça-feira, 19 de abril de 2016

No Superior Interesse da Criança

– A filha é minha – disse a mãe.
– É, mas também é minha – replicou o pai.
– Ela não está contigo!
– Porque tu não deixas.
– Tu saíste de casa.
– Nós concordámos que era o melhor.
– Mas foste tu que saíste!
– A casa é tua.
– Podias ter proposto arrendá-la.
– Se eu te arrendasse a casa e ficasse aqui, a Maria ficava comigo?
– Eu não te arrendava a casa.
– Mas se arrendasses… – Insistiu o pai. A mãe abanou a cabeça negativamente. Ele reclamou: – Tu é que disseste que eu podia ter proposto isso.
– Propuseste?
– Não.
– Então…
– A questão nem é essa. Na verdade, a questão é se, no teu entender, havia alguma forma de a Maria ficar comigo?
– Não. A Maria é minha.
– Desculpa mas a Maria não é tua…
– Minha filha. Eu queria dizer que a Maria é minha filha, não me deixaste acabar.
– Tu acabaste. Tu querias dizer aquilo. Tu querias dizer que a Maria é tua, ponto final.
– Agora tu é que sabes o que eu quero dizer – a mulher riu-se. – Era só o que faltava. A Maria é minha filha.
– E minha.
– Isso agora… – murmurou a mulher, baixando ostensivamente o olhar.
– “Isso agora”, o quê?
– “Isso agora, o quê”, o quê?
– Tu é que disseste “isso agora”.
– Eu, não… Quando?
– Tu disseste que a Maria é tua filha, eu disse, e minha, e tu insinuaste sibilinamente isso agora…
A mulher deu uma gargalhada e lançou, com um sorriso provocador:
– Tu andas a ler muitos livros. Eu insinuei sibilinamente?! Eu nem sei o que isso é!
– É quando uma pessoa diz uma coisa baixinho, como se fosse um segredo – explicou a Maria, que ouvia a discussão dos pais enquanto brincava no chão da sala atrás do sofá. Os pais deram um passo na sua direcção, para a conseguir ver e olharam-na com admiração. Ela encolheu os ombros, baixou os olhos para as bonecas que bebiam chá e concluiu: – Um segredo ou uma revelação tão bombástica que não pode ser dita em voz alta.
– Estás a ver – recriminou a mãe, virando-se para o pai. – Achas que alguém alguma vez iria insinuar sibilinamente que ela não é tua filha?
– Tu fizeste-o – respondeu a menina, com uma miniatura de chávena de chá em plástico na mão. – Não é que quisesses incutir qualquer dúvida no pai, que certamente não as tem, mas fizeste-o com a intenção deliberada de o perturbar.
A mãe reconheceu-lhe razão com uma careta e um piscar de olho. Feliz, a filha mostrou-lhe a língua.
– Se calhar por isto é que dizem que não se deve discutir em frente aos filhos – disse a mãe.
– Não deve ser bem por isto – declarou o pai, sorrindo embevecido.
– As minhas amigas já terminaram o chá – anunciou a Maria, levantando-se e fitando os pais com ar decidido. – Mas eu não comi nada.
Os adultos sorriram-lhe. As bonecas pareceram ficar um pouco melindradas.
– Isto é tudo a fingir – segredou a miúda, para as bonecas não ouvirem –, não há chá e os brownies são de plástico. Eu tomo o chá com elas mas fico sempre cheia de fome. Que horas são, mamã? – perguntou, já em voz alta.
A mãe olhou para o relógio de pulso e respondeu que eram quase oito horas.
A Maria abanou a cabeça para cima e para baixo e, caminhando lentamente para o seu quarto, comunicou:
– Uma hora muito boa para irmos jantar. – Os pais entreolharam-se pouco convencidos. – Todos! – A Maria continuou a caminhar, levantando a voz conforme se afastava: – Eu vou-me só calçar. E vocês, os pais, em respeito pelo superior interesse da criança, ou seja, eu – exclamou num grito –, vão-me levar a jantar, porque temos umas coisas para esclarecer e decidir. Dez minutos, meus caros. Dez minutos e vamos!


sexta-feira, 8 de abril de 2016

O "Caso das Bofetadas"

Lisboa, 7 de Abril de 2016. 20:15 h.

– Mas isso foi o sms que foi para o Expresso – reclamou o Soares.
– Um sms aparvalhado – insistiu o Costa, com cara de poucos amigos. – Podia ter deitado tudo a perder.
O Soares amuou, ficou a olhar para o Primeiro, como se estivesse a ponderar se o havia de esbofetear ou não, e, por fim, perguntou com a voz embargada:
– Tu não falaste com o Galamba durante o dia, pois não?
O Costa acenou negativamente e concretizou:
– Só falámos a meio da manhã… Vou falar agora a seguir.
– Mas sabes que ele aprovou o meu texto?
– Sei, claro que sei e também concordei que era o fait-divers ideal para o dia de hoje – respondeu o Primeiro, mais descontraído com a menção ao Galamba. – E resultou, João, as tuas bofetadas foram a cortina de fumo perfeita: quase nem se falou do Draghi, do almoço ou do Conselho de Estado e nem da PJ ou da Interpol. Foi um dia de salutares bofetadas, seja lá o que isso for. – O Costa sorriu, deu uma pancadinha amigável no braço do Soares e concluiu: – Foi perfeito, a coisa correu especialmente bem mas o sms parece-me que era escusado, João.
– Mas foi ele que escreveu o sms – respondeu de pronto o Soares.
– O Galamba?!
– Sim, eu falei com ele e ele disse-me que a coisa estava a correr lindamente, tudo como se queria mas que estava a esmorecer rápido demais, que era preciso mais lenha na fogueira. Uma coisa simples mas composta, dúbia e com alguma graça…
– Tudo coisas que a ti não te assistem – implicou o Costa que, bem-disposto e seguro desde que soubera da intervenção do Galamba no sms, já era todo sorrisos. O Soares fulminou-lhe as luzidias bochechas com um olhar esbofeteador, a que o Costa respondeu com um piscar de olho cheio de maus sentimentos e um sorriso trocista. O Soares resfolegou baixinho e pôs a viola no saco. Satisfeito, o Costa deu o assunto por encerrado:– Vamos mas é embora que ainda temos de ir ao teatro
– Eu não vou – murmurou o Soares, cabisbaixo. – O Galamba disse-me para pedir desculpas formais e ficar em casa, como se estivesse de castigo… Temos de dar a ideia de que estamos a conter danos. Ou melhor, que tu estás a conter danos e a pôr-me no lugar.
O Costa riu com vontade mas depois pôs-lhe a mão no ombro, confortando-o e disse-lhe:
– Não fiques assim. Acho que já há qualquer coisa com a Joana Vasconcelos que já te está a tirar o lugar nas redes sociais. Amanhã a coisa está arrumada e tu continuas ministro. – O Soares levantou a cabeça e o Costa sorriu-lhe, sem mostrar os dentes. – Eu, entretanto, vou falar com o Galamba para confirmar as coisas, ficar a par da estratégia e dos resultados… e para saber o que hei-de dizer quando sair do teatro – riu-se como se o que dissera tivesse graça. – Então, até amanhã – e terminou a despedida com duas salutares palmadinhas na bochecha esquerda do Soares, que as encaixou com esforçado fair-play.

terça-feira, 1 de março de 2016

Aliocha

Ele pousa o livro e olha em volta para a sala de estar que, para além do tecto e das paredes, não deve ter outras semelhanças com as salas que vão surgindo no livro que lê. Sorri ao pensar na estranheza da coisa: um russo escreve um livro em mil oitocentos e tal e um português lê-o em dois mil e dezasseis. Na verdade, relê, o que ainda é mais estranho.
“Há coisas piores”, pensa, mirando de esguelha o título, Os Irmãos Karamazov. “Muito piores”, conclui.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O Jantar

O Jantar

– Não penses mais nisso – disse a mulher, sorrindo enquanto lhe passava os dedos pelo cabelo.
Ele, que tinha a cabeça pousada no colo dela, olhou para cima, suspirou e sorriu de volta.
A mulher baixou a cabeça, esperou que ele subisse a sua e beijaram-se.
– Não é justo, Adriana – queixou-se ele, quando tornou a pousar a cabeça. – Não é justo.
– As coisas são o que são, Mário.
– Eu não comi nada – lamentou-se o homem –, nem ontem, nem anteontem.
– Comeste hoje – respondeu Adriana, com um sorriso cheio de segundas intenções.
– Estava a trabalhar – disse ele, sem notar o sorriso.
– E trabalhaste bem…
– Eu não estava a falar disso – reclamou o homem, com ar sério. – Eu estava a falar de comer comer. Do almoço. Hoje almocei porque estava a trabalhar.
– Eu sei.
– No sábado e no domingo não comi nada. Não almocei, nem jantei.
– Oh… coitadinho. – A mulher fazia por esconder um sorriso trocista mas os olhos, brilhantes de gozo, denunciavam-na.
Ele ergueu o tronco e sentou-se ao lado dela e, sempre com o mesmo ar sério com que antes reclamara, fechou os botões da camisa que estavam abertos, passou a mão pelo cabelo para se compor e levantou-se, enfiando as fraldas da camisa nas calças, abotoando-as e fechando o cinto.
– Vais-te já embora? – perguntou a mulher, olhando para o relógio de pulso.
– Vou. – Respondeu secamente o homem, baixando-se para atar os sapatos. Atou o sapato esquerdo e, como se fosse afligido por um súbito escrúpulo, justificou: – Quero chegar a casa antes dela começar a fazer o jantar. Sempre quero ver se ela não me vai fazer comer outra vez.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Oh Céus!

– O que é isto, Ramiro?
– Célia?... Olá, Célia, boa tarde.
– Qual boa tarde, qual carapuça! Que porcaria é esta?
– Qual porcaria?
– Esta, no Facebook. Estas fotografias. Que parvoíce é esta?
– És tu.
– Pois, isso estou eu a ver… O problema é porquê! Porquê agora? O que estou eu aqui a fazer?!
– Não sei, não sei o que estás a fazer agora.
– O quê?!
– Não sei o que estás a fazer agora.
– Não estou a perceber. Não sabes?
– Estás a falar comigo ao telemóvel?
– A falar contigo ao telemóvel?
– Não me perguntaste o que estavas a fazer?
– Perguntei-te o que estou ali a fazer, no Facebook, não é o que estou a fazer agora… Bolas!
– Estás numa fotografia.
– Cinco!
– Estás em cinco fotografias…
– E tu achas isso normal?!
– Não estou a ver qual seja o problema.
– …. Não estás a ver?!
– Não, se queres saber a verdade, não estou a ver. Qual é o problema?
– O problema?!... Olha… Se não percebes, o problema és tu. Nem são as fotografias, nem o Facebook, nada! O problema és tu, que, ainda por cima, puseste-me ali e agora obrigas-me a estar aqui.
– Obrigo-te a estar aí?... Eu nem sei onde é que tu estás…
– Puseste-me a falar contigo, bolas! Obrigas-me a falar contigo… mas isso não interessa, o que interessa é aquilo. O que é aquilo, Ramiro?! Mas que porcaria é aquela?
– Somos nós.
– Éramos nós.
– Somos nós!
– Nós já não somos nós, ponto e nós já não somos aqueles, ponto final parágrafo. Tu és tu e eu sou eu. E não percebo qual é o interesse de agora pores fotografias de nós juntos.
– Nós estávamos juntos, ponto. Aliás, podes dizer o que quiseres mas aqueles somos nós, ponto. Somos nós, vírgula, tu e eu, vírgula, os dois, ponto. E agora estamos a falar, os dois, tu e eu reticências…
– Não, ponto final, eu já não estou.
– E vais pôr um gosto?
– Um gosto?
– Nas fotografias.
– Achas?! Para quê, para alimentar a tua demência? Eu já não estou a falar contigo. Vou desligar.
– Podias pôr um gosto… Era o mínimo, nem que fosse por uma questão de respeito.
– Respeito?! Respeito, pelo quê?
– Por nós.
– Não há nós, foda-se, Ramiro!
– Não precisas de ser descortês. Acho que conseguimos falar sem dizer asneiras.
– Descortês?! Ó pá, foda-se, não me lixes… Se achas que eu fui descortês, eu quero ser descortês ao máximo. Eu quero elevar a descortesia até ao infinito. Eu quero que tu te fodas! Eu nem quero ser descortês, eu quero ser mesmo malcriada. Muito malcriada. Adeus, Ramiro, e vai-te foder!
– Célia! Olha os meninos…
– Quais meninos?
– O Roberto e o Rodrigo, eles estão aqui no carro comigo e estão a ouvir a nossa conversa… Digam olá à Célia, meninos.
– Olá, Célia!
– olá…
– Digam à Célia para por um gosto no Facebook do pai.
– Sim, Célia, é o mínimo.
– Quem é que está a falar?
– Sou eu, o Roberto.
– Ah… Olá, Roberto. E é o mínimo porquê, Roberto?
– Porque gritaste com o pai e mandaste-o a sítios feios e ele só pôs uma fotografia vossa no facebook.
– Cinco, Roberto, ele pôs cinco fotografias nossas no Facebook… E eu não o mandei a sítios, Roberto, são actos, coisas que se fazem ou, no caso, que eu gostava que acontecessem ao teu pai… Ele explica-te. Eu agora tenho de desligar.
– E vais pôr um gosto?
– Não, Roberto, não vou… O teu irmão também nos está a ouvir?
– Está.
– Adeus, Rodrigo.
– E nós, também queres que nos vamos foder?
– Não, claro que não, Rodrigo, a conversa era só com o teu pai. E desculpem-me por ter dito asneiras. Isso não se diz. Desculpem-me.
– A mãe diz que, às vezes, justifica-se, Célia. Quando tem de falar com o pai, às vezes, também diz asneiras.
– Pois… Obrigado, Rodrigo. Adeus.
– Ah… mas eu não acho que no caso se justificasse.
– Eu não quero falar contigo, Rodrigo.
– Ah… Queres que eu me foda.
– Sim, basicamente, sim.
– Está bem. Tipo, isso é exactamente o que me vai acontecer depois de uma infância destas…
– E a lidarmos com adultos todos marados, mano.
– Pois, tipo, daqui a uns tempos temos as cabecinhas todas lixadas…
– Não, vocês…
– Adeus, Célia.
– Adeus, Célia.
– Ah… Adeus, meninos.
– Depois falamos…
– Não há depois, Ramiro, foda-se (desculpem-me, outra vez, meninos) não percebo o que é que ainda não percebeste. Passa à frente, pá. Avança. Segue.
– Está tudo parado.
– Tipo, estamos numa fila do pénis, Célia! Isto não anda para lado nenhum.
– Rodrigo!
– Tipo, aqui justifica-se…
– E pénis não é uma asneira.
– Eu tenho mesmo de desligar…
– E pões um gosto?
– Oh céus!.. Ponho, ponho, estejam descansados. Eu ponho um gosto!