sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Grito

A mulher passa-lhe a mão pelo cabelo. Ele sente o gesto, que o enjoa, mas não o sinaliza, deixa-se ficar quieto, sentado como está, enfiado no cadeirão onde se enterrou com os cotovelos nos joelhos e as mãos a envolverem e a segurarem-lhe a cabeça.
Ouve a mulher sair do quarto e fechar a porta. Cerra as pálpebras com força, decidido a, quando abrir os olhos, levantar-se e reagir. Tomar banho e vestir-se. O telemóvel no silêncio vibra em sessões contínuas “como no Olímpia.” Ouve a vibração na mesa ao seu lado e fica a pensar se alguém ainda usa a expressão ou, sequer, se ainda saberão o que quer dizer. Adia o descerrar das pálpebras: ainda não está preparado. No meio da vibração, há toques que identificam sms e mails a entrarem em catadupa. Enfurecem-no: “Mas pensam que eu não vi? Que eu não sei? Pensam que me estão a dar alguma novidade?!”
Inspira pelo nariz, expira pela boca. Abre os olhos. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Solta a cabeça e levanta-a. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Olha em volta: a colcha está puxada para cima e a roupa para vestir já está em cima da cama. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Fixa-se na porta da casa de banho e imagina o que terá de fazer para lá chegar mas as pernas não lhe obedecem. Suspira. Inspira pelo nariz, expira pela boca. Torna a suspirar. Levanta-se e repara no telemóvel, ainda a vibrar. Agarra-o e desliga-o. “Não,” censura-se, “o telemóvel desligado é ostensivo. Não deixa dúvidas.” Inspira pelo nariz, expira pela boca. Liga o telemóvel e atira-o para cima da cama.
A televisão está desligada mas quando olha para o écran, vê um 37 em 3 dimensões. Irrita-se mas não consegue desviar o olhar. O 37 ganha um sinal % e roda, já não é em 3D, é um holograma. Um 37% cor-de-rosa, que gira e que, de repente, cai para o chão. Ri-se com a sua imaginação e passa as mãos pelos olhos e pela face, como se estivesse a lavar a cara. Reabre os olhos, certo de que tudo voltou ao normal mas da televisão cai uma cascata de 37%'s cor-de-rosa que se espalham pelo chão. Foge para a casa de banho.
Abre a água do duche e lembra-se de outro desastre perto de acontecer: “E o Maxi?”
Decide que tem de ligar ao Vieira, fá-lo-á como um simples adepto, perder o Jesus e o Maxi em quinze dias é demais. É intolerável. Não lhe vai dizer, mas perder o Maxi no mesmo dia em que lhe dão 37% e o põem atrás do Passos, é demais para um homem só. Ri-se, um riso amargo, que lhe aviva a úlcera e que o faz engolir em seco e agoniar-se com o sabor ácido que lhe sobe à garganta.
António entra para a cabina de duche, sem despir o pijama, e debaixo do chuveiro corrige a posição do manípulo do misturador, tudo para o azul, “como o Maxi”, lamenta-se.
Esquece-se de tudo imediatamente, quando a água fica gelada.
“AAAHHHH!!!”