quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Cartaz

O recluso aproximou-se do 44, saudou-o com um respeitoso “Engenheiro” e uma ligeira vénia como ele gostava, e entregou-lhe uma folha de papel dobrada. O 44 agarrou a folha e ficou a olhar para o homem com ar desconfiado.
“Não é nada, engenheiro”, disse o homem. O 44 olhou em volta e voltou a fixar-se no colega recluso que lhe assegurou tranquilamente: “É só para ver o que lhe andam a fazer lá fora, não é nada de mal. É dos seus camaradas.”
O 44 abriu a folha e leu o seu conteúdo. Olhou embasbacado para o recluso que estava à sua frente, que abanava a cabeça com cara de caso e tornou a baixar os olhos. “Isto é uma montagem?”, perguntou, sem levantar os olhos da folha.
“Acho que não. Pelo menos, deram-me como bom”, respondeu o recluso.
“Há 5 anos é em 2010, pá. Que porcaria é esta?”, rosnou o 44, fixando o outro recluso, que encolheu os ombros em silêncio. “A mulher ficou desempregada no meu governo!”, vociferou o engenheiro, furioso a olhar para a reprodução do cartaz. “Os gajos mandaram isto para a rua?”
“Eu também perguntei isso”, disse o recluso.
O 44 arremelgou-lhe os olhos, “E?”
“Parece que estes são para substituir o da tipa a virar o céu.”
“Mas que merda é esta?!” O 44 encostou-se à parede exterior da cela. Vários reclusos aproximaram-se. Irritado, ele levantou a folha, virou-se e, com uma palmada, pô-la na parede. “Mas quem é que autorizou esta merda?!”, gritou. “O Costa anda a dormir ou anda armado em sonso… ou pensa que brinca comigo?!”
Os reclusos rodearam-no para ler a folha que ele prendia contra a parede. Ele recomeçou:
“A mulher ficou desempregada quando eu era governo. Em 2010. Comigo ninguém ficou desempregado! Ninguém!” O 44 olhou em volta. “Algum de vocês ficou desempregado em 2010?” Os homens negaram prontamente com a cabeça. “Ninguém ficou desempregado em 2010! Ninguém!”, bufou o 44.
“E, ainda por cima falta uma vírgula, engenheiro”, disse um dos reclusos.
Temendo a reacção do 44, os que estavam encostados ao que falara afastaram-se, deixando-o sozinho ante o olhar maníaco do engenheiro.
“Que vírgula, pá. Falta uma vírgula onde?!”
“Aí”, o recluso deu um passo em frente e apontou para “anos” enquanto lia alto: “Estou desempregada há 5 anos sem qualquer subsídio ou apoio.” Fez uma pausa e explicou: “E, com esta frase, nem sei se a vírgula era suficiente, parece-me que não. Mais valia porem: “Estou desempregada há cinco anos e há um ano, ou dois ou o que fosse, sem qualquer subsídio ou apoio… E a segunda frase…”
“O que tem a segunda frase?”
“Devia ter pessoas, não é só um número, 353 mil. São 353 mil pessoas. Podiam ter posto: Somos mais de 353000 pessoas.”
“Tem ali um asterisco no número”, indicou um recluso.
“Um asterisco nunca é bom”, respondeu o que estava a falar. “E depois não podem dizer, não brinquem com os números, respeitem as pessoas quando é o cartaz que as despersonaliza…”
“Mas temos aqui um analista de publicidade?!”, interrompeu o 44, furibundo. “Qual asterisco, quais números, quais pessoas! Isso não interessa nada. As pessoas não interessam nada! O que interessa é que eu há 5 anos era o primeiro-ministro e o PS era o governo.”
O 44 calou-se, amarfanhou a folha com raiva, lançando-a numa bola para dentro da cela, levou as mãos à cabeça, que abanava desesperado e, por fim, abrindo as mãos em prece, recomeçou:
“O PS põe um cartaz na rua com uma mulher que se diz desempregada desde quando eu era primeiro-ministro e o PS governo, e, ainda por cima, segundo o que a mulher diz e eles escrevem, nunca recebeu nenhum subsídio ou apoio. Desempregada há 5 anos sem qualquer subsídio. 5 anos! Mesmo quando nós éramos governo. Um ano e meio… Mas que merda de cartaz é este?!... O que é isto, pá?!... O que é isto?”
Os reclusos abanavam as cabeças como os cães de plástico com uma mola em vez do pescoço que se viam antigamente em automóveis seleccionados.
O 44 olhou em volta, semicerrou os olhos numa expressão maléfica e sussurrou para os reclusos: “Quem é que tem um telemóvel?”

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O Interior

O Costa encostou-se à janela a olhar para a rua. Cruzou os braços, descruzou-os e passou as mãos pela face, esfregando os olhos. Após uns momentos de reflexão decidiu voltar-se para o interior.
– Não vale a pena – disse o Galamba, peremptório.
– O quê? – inquiriu o Costa, virando as costas à janela.
– Virar-mo-nos para o interior – respondeu o Galamba. – Há pouca gente, poucos votos.
O Costa olhou para ele como se o estivesse a ver pela primeira vez e perguntou:
– Mas quem é que disse que nos íamos virar para o interior?
– Diz ali – apontou o Galamba.
O Costa olhou para ele outra vez como se o estivesse a ver pela primeira vez e explicou:
– Aquilo é o narrador a dizer que decidi voltar-me para dentro da sala, João. O interior é a sala.
– Ah… – O Galamba não parecia convencido e tornou a ler a frase. – É capaz, mas também se pode ler que te decidiste virar para o interior – teimou.
O Costa encolheu os ombros e encaminhou-se para o seu lugar, sem lhe ligar.
Ressentido, o Galamba engoliu em seco, respirou fundo e insistiu:
– Também se pode ler que estavas a reflectir e decidiste aprofundar essa reflexão interior.
O Costa abanou a cabeça, desesperado.
– E porque é que havia eu de cometer esse erro? – resmungou, já no seu lugar, no topo da mesa, mas sem se sentar. – Achas que isso me dá alguns votos, João?!... Uma introspecção?
– Acho que uma introspecção nunca fez mal a ninguém – replicou o Galamba, sem convicção. – Eu, pessoalmente, nunca fiz nenhuma – hesitou. – Quero dizer, tipo, eu acho que nunca precisei mas… um líder.
O Costa deu uma gargalhada. O Galamba encarou-o com um sorriso forçado.
– Havia de ser bonito… – disse o Costa, todo sorrisos. – E dizia o quê, João: Prometo que, se for primeiro-ministro, paro para pensar? Que, quando for primeiro-ministro, faço introspecções periódicas? Ou que, se for primeiro-ministro, me avalio e avalio o que ando a fazer? – A sala ria com o líder. – Achas que alguém acreditava, João? Achas?
O Galamba abriu um sorriso bovino e assentiu com a cabeça.
Satisfeito, o Costa sentou-se.
– Se é para continuar a prometer coisas à parva, ao menos que sejam coisas minimamente verosímeis, João. Minimamente… agora, introspecções… – O Costa deu uma gargalhada e concluiu absolutamente divertido e deliciado consigo próprio: – E ia olhar para o meu interior, para o ver o quê? Para ver o quê?