A mesa estava posta com o requinte que a quadra
exige: toalha de pano com motivos natalícios; os melhores talheres e loiças,
vindos das profundezas do tempo, de uns medievos quaisquer que os haviam
vendido na feira da ladra, ainda que isso não fosse para se saber; copos de pé alto com ar encardido e de
proveniência igualmente duvidosa "mas ilustre", frisava a sogra
constatando os trejeitos de desconfiança que qualquer utilizador fazia quando,
a medo, os levava à boca; e uma enorme vela vermelha acesa no centro da mesa.
De guardanapos no colo, o pai, a mãe, a filha e o genro preparavam-se para o almoço de Natal, de sorrisos em
formol e palavras em surdina.
O genro sentia uma inusitada e inexplicável
frieza desde que tinham chegado mas só quando o sogro lhe serviu um vinho tinto
corrente de uma marca de supermercado teve a certeza que algo não estava bem. Nada
bem. O ambiente e o vinho não enganavam.
Quando a sogra se levantou para servir a sopa,
ele procurou os olhos da mulher tentando obter uma justificação, uma pista que
lhe permitisse ter uma ideia do que se estava a passar. A mulher ostensivamente
baixou os olhos, evitando qualquer contacto. Resignado, agradeceu a sopa, pegou na pesada e
amarelecida colher e começou lentamente a comer, calculando a qualidade e
quantidade de elementos químicos que iria absorver no contacto com os talheres.
Todos comiam em respeitoso silêncio até que,
entre duas colheres de sopa, a mulher murmurou:
– Nunca me bates nas nádegas.
Ele engasgou-se, tossiu, olhou para os sogros, que não deram sinais de ter ouvido a queixa da filha e olhou-a para perceber se
estava doido e a ouvir coisas – tinha a secreta esperança que fosse o caso – ou
se, efectivamente, ela dissera o que ele ouvira. Quando os seus olhares se
cruzaram, ela acenou ligeiramente com a cabeça, confirmando a afirmação.
Ele sentiu as sobrancelhas erguerem-se, os
olhos arremelgarem-se e o maxilar inferior descair, deixando-lhe a boca aberta.
A consciência do seu ar apalermado levou-o a pôr outra colher de sopa à boca,
procurando na normalidade do movimento algum consolo e segurança.
– Nunca me bates nas nádegas – tornou ela a
lamuriar-se.
Sem levantar a cabeça, ele abafou um risinho nervoso que lhe tomava
conta do peito, pousou a colher no prato e agarrou no
copo de vinho. Acabara de levantar o copo, quando o sogro lhe perguntou de chofre:
– Não estás a ouvir, João?
A pergunta do sogro provocou-lhe uma vertigem,
que o fez entornar o copo cheio de vinho tinto. A mulher e os sogros
levantaram-se de um salto, afastando-se da maré vinícola que se espalhava em
todas as direcções. Ele olhou a mesa que escorria, balbuciou um abafado pedido
de desculpas, pousou o copo e erguendo-se devagar, apoiado na mesa,
reafirmou:
– Desculpem, não sei o que se passou.
– Nós é que não sabemos o que se passa, João!
– Recriminou a sogra, ríspida. – A Luísinha
diz que tu não lhe bates nas nádegas!
Ele tornou a sentar-se, incrédulo.
O sogro, ainda em pé, tomou a palavra:
– Sim, a Luísa tem-se queixado à mãe que,
desde que vocês se casaram, tu nunca mais lhe bateste nas nádegas.
A Luísa e a mãe assentiram com a cabeça,
confirmando a acusação.
– Eu nunca lhe bati nas nádegas – respondeu
ele, num fio de voz.
– Pior – gritou o sogro. – É verdade, Luísa,
este animal nunca te deu umas boas palmadas nas nádegas?!
– Não, paizinho, nunca... – choramingou a
Luísa.
– Ó meu Deus – invocou a sogra, juntando as
mãos no peito –, isso é que tu nunca me tinhas dito, filha...
A mãe aproximou-se da filha e abraçou-a.
– Eu pensava que depois de casarmos, o João...
– começou a Luísa.
– Não, não! – Interrompeu o pai aos gritos. –
Casaste com um banana, filha! Um banana!
– Ó paizinho, não diga isso. – A Luísa largou
a mãe, que chorava olhando fixamente o genro, e, virando-se para o pai,
continuou: – Eu pensava que se me pusesse a jeito ele se entusiasmasse, paizinho,
se entusiasmasse e me desse umas palmadas nas nádegas...
– Ó filha, te pusesses a jeito, filha... –
soluçou a mãe. – És um anjo, minha filha. Um anjo. Mas o teu pai
tem razão, Luísa. Infelizmente tem razão: ele é um banana.
– Um banana! – Tornou o sogro, satisfeito com
a escolha da fruta. – Nem umas palmadas nas nádegas da mulher sabe dar, o
banana! Que tristeza... Que pouca sorte...
– Mas eu não sabia que ela gostava –
justificou o banana, a meia voz.
– Não gostava? – Rosnou a sogra. Ele olhou-a
espantado. Ela olhava-o mas não o via. – Não gostava?! Mas há lá alguma mulher
que não goste de levar umas boas palmadas nas nádegas?!
Ele sentiu a boca abrir e fechar sem produzir
nenhum som, como um peixe fora de água, viu a sopa coalhada, o vinho entornado
ensopando a toalha agora arroxeada e até lhe pareceu que o cabrito assado no
tabuleiro se estava a rir dele.
– És um banana – repetia o sogro, abanando a
cabeça e olhando-o com absoluto desgosto e desânimo. – Um banana.
– Ela nunca me disse nada – gemeu ele. – Podia
ter dito.
– Podia ter dito?! – A sogra estava
completamente descontrolada. – Podia ter dito?!
– Calma, mãezinha, calma.
– Mas quem é que o senhor pensa que a minha
filha é? – Gritou a sogra, lançando perdigotos em todas as direcções. – Pensa
que ela é o quê?!
– Calma, mulher – recomendou o sogro, já
sentado mas afastado da mesa. – Calma.
– Calma, nada! – A sogra impôs-se, baixou o
tom de voz, tornando-o mais ameaçador e continuou: – Então, o senhor queria que
a minha filhinha lhe pedisse – fez voz de coitadinha – "Ó Joãozinho,
bate-me, bate-me nas nádegas, que eu gosto"? Queria?! Era isso que queria que ela dissesse?
Ele olhou a sogra sem saber se havia de dizer
alguma coisa, pensou em dizer que sim, que se ela gostava devia tê-lo dito mas
em boa hora não o fez e manteve-se calado.
– A minha filha não é nenhuma rameira! –
Exclamou a sogra, respondendo a si própria, de punhos cerrados. – A Luísa pode gostar que lhe batam nas nádegas mas não o diz. É uma mulher séria e recatada. Não o diz, ouviu?! É educada! Séria, recatada e educada!
A filha abraçou a mãe que chorava baba e ranho
– mais ranho que baba mas isso é irrelevante – e fez sinal ao pai para dizer
qualquer coisa.
O pai compreendendo o melindre da situação e
temendo que o cabrito ficasse rijo ou mesmo que encarquilhasse com o frio – as
personagens pensam assim, o que pode um narrador fazer? –, encheu o copo do genro e disse:
– E agora, o que é que tu pensas da vida, meu rapaz?
A filha acenou-lhe agradecida, a mãe fungava e
o genro sentiu que tudo se podia ainda compor.
– Achas que consegues dar conta do recado? – Perguntou o sogro.
– Deixe-me comer o cabrito – disse o genro,
cheio de valentia, – que eu logo lhe dou o que ela quer.
A sogra suspirou e assoou-se ruidosamente,
desanuviando o ambiente.
– Amanhã nem te sentas! – Berrou o pai, com
uma gargalhada.
– Ó paizinho... – disse a filha, embevecida
perante a perspectiva.
– Também não é preciso exagerar – aconselhou a
mãe enquanto limpava o nariz. – As nádegas precisam de habituação e cuidado...
É preciso jeitinho...
– Com jeito vai... – berrou o sogro, rindo. –
Com jeito!
Ela piscou o olho e lançou-lhe um beijo, ele
respondeu mordendo o lábio inferior e com ambas as mãos deu, com empenho e
desembaraço, palmadas em nádegas imaginárias.
– Tem jeito, o gajo – lançou o sogro, fazendo
um brinde com o genro: – Que nunca nos faltem nádegas, meu rapaz!
– Que falta de educação, Francisco –
recriminou a sogra, com ar afectado, enquanto eles batiam com os copos. – Que
falta de educação.
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