Primeiro, ela
falou e ele ouviu.
Depois, ele
falou e ela ouviu.
Então, começaram a falar os dois. E concentraram-se tanto em falar que deixaram de ouvir e de se ouvirem.
Discutiram. Muito.
Subitamente, ela encaminhou-se para a porta da sala e, serenamente, pôs um ponto final na conversa:
Subitamente, ela encaminhou-se para a porta da sala e, serenamente, pôs um ponto final na conversa:
– Acabou-se, Bernardo. A decisão está tomada, ponto final. O que há para resolver é
só a forma de o fazer, mais nada.
Ele não a contrariou mas grunhiu e esbracejou como um louco furioso numa luta contra um poderoso inimigo
imaginário, provavelmente um polvo gigante muito rápido e com capacidades de
desmaterialização, tal era o empenho anárquico dos seus movimentos e a
desconcertante placidez das suas pausas; no fim, sempre em silêncio, sentou-se.
Ela
manteve-se quieta, em pé de braços cruzados, contemplando o espectáculo.
Ele suspirou ruidosamente e pousou os cotovelos nas pernas, enfiando a cabeça entre as mãos.
A
mulher hesitou entre o silêncio e o ficar calada. Ponderou e decidiu nada
dizer.
–
Sabes… – começou o homem, sem erguer a cabeça – eu esperava muita coisa... Muita coisa. Mas
isto não. Isto, agora, definitivamente não esperava.
A
mulher, encostada ao umbral da porta da sala, ainda não se decidira a entrar na conversa quando ele recomeçou a falar, depois de se certificar, com um olhar furtivo, que ela ainda estava lá para o ouvir:
–
Não sei mas se pensei que isto nos pudesse acontecer… E pensei, reconheço.
Houve alturas em que pensei seriamente nisso. Houve tempos em que achava que tu
tinhas razões, tal como houve outros em que achei que era eu que as tinha. E
fases em que tudo se podia desmoronar e, justificadamente, terminar, não acho
que agora haja… – A voz embargou-se-lhe e levantou a cabeça para a fixar,
respirou fundo, limpou os olhos com as costas da mão direita e concluiu num
repente: – Mas agora não. Agora fui apanhado de surpresa, completamente de surpresa!
–
Foda-se, Bernardo – replicou ela, num tom só ligeiramente irritado, em que os
palavrões só sublinhavam a sua contenção e enfado. – Mas porque é que tu és
sempre tão teatral, caralho!
–
Bolas, Patrícia, sabes que eu não gosto que digas palavrões – censurou o homem.
– Evita, por favor.
–
Vai-te foder – respondeu ela. – Vai-te foder mais a tua educação de merda! Não
queres palavrões não te portes como um miúdo, não te ponhas aos saltinhos como
se estivesses a levar choques eléctricos nos colhões, como se te tivessem atado
o caralho a… a… a sei lá o quê, a uma merda qualquer que não pare, não esteja
quieta e ande para todo o lado… Se não queres palavrões, comporta-te, foda-se!
Deixa de esbracejar como uma menina, deixa de bater nas coisas e de saltar como
se tivesses molas nos pés.
–
Eu estou parado.
–
Agora – suspirou ela. – Agora estás parado. – A mulher virou costas, saiu da sala e parou depois de dar dois passos. Sem erguer a voz, lamentou-se: –
As pessoas felizes brilham, Bernardo. Brilham. Nós não. Nós estamos cada dia mais cinzentos e
baços…
Ele levantou-se e, sem sair do mesmo sítio, gritou-lhe:
–
É porque comem pirilampos!… Essas pessoas não são felizes, Patrícia, essas
pessoas comem pirilampos! São assassinos viciosos e maus! São comedores
compulsivos de pirilampos. São viciados neles e usam-nos para brilharem!… Ninguém brilha por si…
ninguém brilha por si, Patrícia… Não há pessoas felizes… ELES COMEM PIRILAMPOS!
2010
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