– Há um ano que não temos
relações – anuncia a mulher. Ao seu lado, o homem abana a cabeça, olha-me e sorri, um
sorriso bovino, sem conteúdo.
– Foi nas férias, em Porto
Santo, lembras-te? – pergunta o homem, ainda a sorrir mas com a expressão de
quem pensa nisso todos os dias.
A mulher encolhe os ombros,
olha para mim e depois para ele, com ar enjoado, e responde-lhe, displicente:
– É capaz…
– Um ano, vinte e um dias…
– diz o homem que, após uma pausa para olhar para o relógio de pulso, completa:
– Um ano, vinte e um dias e trinta e oito minutos.
A mulher torna a encolher
os ombros mas agita a cabeça, concordando com a estimativa.
– Não é uma estimativa –
corrige o homem. – É exactamente o tempo que passou desde que saí de dentro
dela.
A mulher acena a cabeça com
vigor, apoiando-o.
Respiro fundo e penso no
que dizer pois eles calaram-se e olham-me como se esperassem um comentário
qualquer. Sem saber o que dizer, repito:
– Um ano, vinte e um dias
e… – interrompo-me para olhar para o meu relógio de pulso.
– E trinta e nove minutos –
conclui o homem, com um ar de quem sabe do que está a falar.
– E trinta e nove minutos –
repito como se fizesse diferença.
– Faz diferença – censura o
homem, que se vira para a mulher e lhe pergunta: – Não achas que faz diferença?
A mulher suspira:
– Muita diferença.
– E este ano vamos de
férias para Cabo Verde – diz o homem, com um sorriso radioso, na expectativa
dos amanhãs que cantam. – O voo é agora às onze horas.
Eu abano a cabeça sem saber
o que dizer. São quase nove horas e estamos a chegar ao aeroporto.
– Só espero que não esteja
muito calor – avisa a mulher, virando-se para ele. – Sabes que eu não gosto de
foder com muito calor…
– Nem eu – diz ele, que
olha para mim e pergunta: – Ninguém gosta de o fazer com muito calor, pois não?
Abano a cabeça em silêncio
– “Acho que não” – e aproveito o sinal vermelho à entrada da Rotunda do
Relógio, que me obriga a parar o táxi, para os ver pelo espelho retrovisor: têm
cerca de trinta anos, normais e aparentemente saudáveis; a mulher é bonita mas
ligeiramente afectada e ele tem estilo, veste roupas de marca mas com um ar
excessivamente cuidado.
Cismo no “um ano, vinte e
um dias e…”, olho para o relógio no tablier, “quarenta e um minutos” e não
consigo conter a curiosidade:
– Os senhores desculpem mas
têm estado separados?
A mulher olha-me como se
nunca me tivesse visto.
O homem fulmina-me a nuca.
– O senhor taxista é muito
curioso, não acha? – Reprova o homem, cruzando o olhar com o meu no espelho. O
sinal muda, arranco e olho em frente. Ele continua no mesmo tom: – O que tem o
senhor que ver com isso?
“Nada, na verdade, não
tenho nada que ver com isso”, penso, arrependido de ter perguntado.
– Nada – reconheço. – Não
tenho nada que ver com isso. Desculpem.
Paro o táxi.
– Chegámos – informo, carregando no taxímetro.
– E o título? – Pergunta,
ácida, a mulher.
– Sim, e o título? – Apoia
o homem. – “Que esteja a ferver em Cabo Verde”?
O homem paga-me e eu dou-lhe o troco.
– O texto é meu,
o título sou eu que escolho.
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