Com ar
encalorado e estafado, o homem deixou-se cair no cadeirão da sala, grunhiu um
boa tarde abafado e encarou a mulher com um sorriso amarelo.
– Então, valeu a
pena? – perguntou a mulher, depois de lhe sorrir com compaixão.
O homem encolheu
os ombros, abriu os terceiro e quarto botões da camisa (os outros já estavam
abertos) e suspirou:
– Sei lá… Acho
que não.
A mulher tornou
a sorrir.
– Mas tinhas de
ir – disse a mulher, num tom tão compreensivo como o sorriso –, se não fosses
arrependias-te.
– Arrependi-me
na mesma – lamentou-se o homem, que já abrira a camisa e agora trabalhava no
cinto e no botão das calças. – Estava muito calor…
– Este ano
puseram uns tubos a deitar umas nuvens de água para refrescar… – A mulher via-o
de esguelha a despir as calças.
– Pois foi, mas
não era suficiente e não era na feira toda. – O homem levantou-se para tirar as
calças que pousou no chão ao lado do cadeirão e tirou a camisa que dobrou sem
cuidado e colocou em cima das calças. – E, ainda por cima, era nas zonas que
tinham alarmes e guardas. Parei lá pouco – concluiu o homem, aborrecido.
A mulher deu uma
gargalhada. Havia algo no marido, semi-nu, com ar afogueado a queixar-se de
alarmes e guardas que a divertiu sem que percebesse porquê. O homem fez-lhe uma
careta e mostrou-lhe a língua.
– E,
provavelmente, era onde devias ter ido mais – picou-o a mulher ainda a rir.
Em silêncio mas
concordando com a cabeça, o homem levantou-se e saiu da sala. Da cozinha gritou
se a mulher queria alguma bebida fresca. Ela respondeu-lhe que não. Quando
reentrou na sala, o homem trazia uma cerveja numa mão e vários sacos noutra.
Levantou os sacos como um troféu. Pousou a cerveja na mesa de apoio ao cadeirão
e com ar triunfante despejou os sacos cheios de livros em cima do sofá de três
lugares onde a mulher continuava sentada.
A mulher olhou
para os livros com desdém, eram mais de vinte, e perguntou com secura:
– Quantos é que
estão autografados?
– Ou sete ou
oito.
– Só?
– O resto não
interessava ao menino Jesus.
– Assim, tens
quantos autografados?
– Vinte e sete
ou vinte e oito. – O homem foi buscar a cerveja e sentou-se no cadeirão de onde
saíra.
A mulher mexia
nos livros como se estivessem contaminados, afastando-os uns dos outros apenas
o suficiente para lhes ler os títulos, fazendo caretas de desagrado ou de troça
a quase todos eles.
– Tinhas razão –
disse, virando-se para a televisão, depois de lançar o único livro que agarrara
e abrira, para confirmar se estava autografado, para cima dos outros. – Não
valeu a pena.
O homem suspirou
agastado e despejou a garrafa de uma golada. No fim, encolheu os ombros e
constatou com pesar:
– São poucos mas
entre o calor, as filas, os alarmes e os que não mereciam, foi o que se
arranjou… O que é que queres que eu te faça?
– Tens de ir
tomar banho primeiro – sussurrou a mulher, semicerrando os olhos e esboçando um
sorriso ténue.
– Eu estava a
falar dos livros.
– Eu não.
– Eu percebi.
– E?
– E, o quê?
– Vais tomar
banho?
O homem pôs as
mãos nas pernas junto aos joelhos. Baixou a cabeça e abanou-a para um lado e
para o outro. Suspirou ruidosamente. Levantou a cabeça e encarou a mulher.
Sorria. Ela estranhou-lhe o sorriso mas, olhando-o com atenção, notou um início
de erecção; ele já a tinha sentido.
– Arrumas os
livros? – Perguntou o homem, pondo-se de pé.
Satisfeita, ela
anuiu com a cabeça.
Ele foi-se
lavar.
– Pagaste algum?
– gritou a mulher, enquanto os empilhava.
– Achas?! –
berrou ofendido o homem, já debaixo do chuveiro. – Eu estou a salvar leitores,
Maria! A salvá-los dessas obras magníficas. A salvá-los de si próprios. A salvá-los
desses autores manhosos – proclamou o homem entre gargalhadas.
A mulher
encostou-se à ombreira da porta da casa de banho e disse-lhe:
– Sempre quero
ver as caras deles quando lhes devolveres os livros. Ainda por cima
autografados.
O homem fechou o
chuveiro, abriu a cabine de duche e sentenciou:
– É para
aprenderem a não escrever porcarias.
A mulher
lançou-lhe uma toalha de bidé lavada para se limpar.
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