quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Protector

Com ar encalorado e estafado, o homem deixou-se cair no cadeirão da sala, grunhiu um boa tarde abafado e encarou a mulher com um sorriso amarelo.
– Então, valeu a pena? – perguntou a mulher, depois de lhe sorrir com compaixão.
O homem encolheu os ombros, abriu os terceiro e quarto botões da camisa (os outros já estavam abertos) e suspirou:
– Sei lá… Acho que não.
A mulher tornou a sorrir.
– Mas tinhas de ir – disse a mulher, num tom tão compreensivo como o sorriso –, se não fosses arrependias-te.
– Arrependi-me na mesma – lamentou-se o homem, que já abrira a camisa e agora trabalhava no cinto e no botão das calças. – Estava muito calor…
– Este ano puseram uns tubos a deitar umas nuvens de água para refrescar… – A mulher via-o de esguelha a despir as calças.
– Pois foi, mas não era suficiente e não era na feira toda. – O homem levantou-se para tirar as calças que pousou no chão ao lado do cadeirão e tirou a camisa que dobrou sem cuidado e colocou em cima das calças. – E, ainda por cima, era nas zonas que tinham alarmes e guardas. Parei lá pouco – concluiu o homem, aborrecido.
A mulher deu uma gargalhada. Havia algo no marido, semi-nu, com ar afogueado a queixar-se de alarmes e guardas que a divertiu sem que percebesse porquê. O homem fez-lhe uma careta e mostrou-lhe a língua.
– E, provavelmente, era onde devias ter ido mais – picou-o a mulher ainda a rir.
Em silêncio mas concordando com a cabeça, o homem levantou-se e saiu da sala. Da cozinha gritou se a mulher queria alguma bebida fresca. Ela respondeu-lhe que não. Quando reentrou na sala, o homem trazia uma cerveja numa mão e vários sacos noutra. Levantou os sacos como um troféu. Pousou a cerveja na mesa de apoio ao cadeirão e com ar triunfante despejou os sacos cheios de livros em cima do sofá de três lugares onde a mulher continuava sentada.
A mulher olhou para os livros com desdém, eram mais de vinte, e perguntou com secura:
– Quantos é que estão autografados?
– Ou sete ou oito.
– Só?
– O resto não interessava ao menino Jesus.
– Assim, tens quantos autografados?
– Vinte e sete ou vinte e oito. – O homem foi buscar a cerveja e sentou-se no cadeirão de onde saíra.
A mulher mexia nos livros como se estivessem contaminados, afastando-os uns dos outros apenas o suficiente para lhes ler os títulos, fazendo caretas de desagrado ou de troça a quase todos eles.
– Tinhas razão – disse, virando-se para a televisão, depois de lançar o único livro que agarrara e abrira, para confirmar se estava autografado, para cima dos outros. – Não valeu a pena.
O homem suspirou agastado e despejou a garrafa de uma golada. No fim, encolheu os ombros e constatou com pesar:
– São poucos mas entre o calor, as filas, os alarmes e os que não mereciam, foi o que se arranjou… O que é que queres que eu te faça?
– Tens de ir tomar banho primeiro – sussurrou a mulher, semicerrando os olhos e esboçando um sorriso ténue.
– Eu estava a falar dos livros.
– Eu não.
– Eu percebi.
– E?
– E, o quê?
– Vais tomar banho?
O homem pôs as mãos nas pernas junto aos joelhos. Baixou a cabeça e abanou-a para um lado e para o outro. Suspirou ruidosamente. Levantou a cabeça e encarou a mulher. Sorria. Ela estranhou-lhe o sorriso mas, olhando-o com atenção, notou um início de erecção; ele já a tinha sentido.
– Arrumas os livros? – Perguntou o homem, pondo-se de pé.
Satisfeita, ela anuiu com a cabeça.
Ele foi-se lavar.
– Pagaste algum? – gritou a mulher, enquanto os empilhava.
– Achas?! – berrou ofendido o homem, já debaixo do chuveiro. – Eu estou a salvar leitores, Maria! A salvá-los dessas obras magníficas. A salvá-los de si próprios. A salvá-los desses autores manhosos – proclamou o homem entre gargalhadas.
A mulher encostou-se à ombreira da porta da casa de banho e disse-lhe:
– Sempre quero ver as caras deles quando lhes devolveres os livros. Ainda por cima autografados.
O homem fechou o chuveiro, abriu a cabine de duche e sentenciou:
– É para aprenderem a não escrever porcarias.
A mulher lançou-lhe uma toalha de bidé lavada para se limpar.

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