terça-feira, 7 de abril de 2015

um

– As coisas são o que são – disse André, enquanto caminhava, enfiando as mãos nos bolsos das calças de ganga.
– Nem sempre – discordou Laura, sem olhar para ele. – Às vezes, as coisas são umas e nós pensamos que são outras.
– Mas não deixam de ser o que são – contrapôs o homem, parando no passeio junto a um cruzamento. Estava vermelho para os peões.
Laura parou ao lado dele e não respondeu.
O sinal ficou verde e atravessaram a rua em silêncio. Quando chegaram ao outro lado continuaram a andar e ela recomeçou a conversa:
– Sim, mas se nós não as vemos pelo que são mas como o que queremos ver…
– Ou não – acrescentou André, olhando para Laura de esguelha.
– Ou não?
– Sim, muitas vezes não vemos as coisas como são verdadeiramente mas também não as vemos como queríamos que fossem – respondeu André, olhando sempre em frente enquanto caminhava. Ela ouvia-o com atenção mas com ar pouco convencido. Ele acrescentou: – Pelo contrário, vemos o que não queríamos ver. Não vemos as coisas pelo que são mas pelo que não queríamos que fossem.
Laura parou, tocou-lhe no braço para o fazer parar e virou-se para ele.
– Nós estamos a falar exactamente de quê? – perguntou-lhe, com ar desconfiado.
André olhou em volta, disfarçadamente como se estivesse com medo de estarem a ser seguidos mas não quisesse mostrar que procurava alguém, e, quando os seus olhos se reencontraram com os dela, sussurrou:
– De coisas.
Laura suspirou, de cansaço.
– Que coisas?
André tocou-lhe no braço e recomeçou a andar.
– Sabes que o Google hoje disse-me para sair às sete e quarenta e três para me encontrar contigo às oito?
Laura não o seguiu logo e quando o fez, caminhou com lentidão, obrigando-o a parar ao fim de sete passos, a voltar-se para trás e a esperar.
– O Google disse-te o quê? – perguntou ela.
André apontou para uma pastelaria com a cabeça e, sem responder, sugeriu num tom conspirativo:
– Vamos aqui.
Laura respirou fundo: não estava a perceber, nem a gostar.
– Não íamos jantar? – replicou.
– Eu quero mostrar-te uma coisa – disse ele, abrindo a porta da pastelaria.
A mulher estacou do lado de fora da porta e insistiu:
– Não me podes mostrar ao jantar?
André fez uma careta de aflição e rolou os olhos de forma estranha. Laura decidiu entrar pela porta que ele continuava a segurar.
– Estamos fechados – avisou uma voz masculina, quando os passos dos saltos altos dela soaram no chão de mosaicos do estabelecimento.
Eles entreolharam-se e procuraram o dono da voz, sem resultados. Laura fez menção de se virar para sair mas André largou a porta que se fechou.
– Já estamos fechados – repetiu a incorpórea voz, quando a porta bateu levemente.
– Boa noite – disse André, sem saber para onde falar. – É só um minuto para mostrar uma coisa à minha amiga.
Laura fulminou-o com o olhar: a “minha amiga” não lhe soou nada bem.
– Mostre na rua – replicou a voz.
– Não posso, estamos a ser seguidos…
– Estamos?! – Interrompeu Laura, surpreendida, olhando para a rua. – Estamos a ser seguidos por quem?
– Isso é que é pior – comentou a voz, num tom interessado. – E estão a ser seguidos porquê?
André deu um passo para dentro da pastelaria, na direcção de Laura, que continuava à procura de vislumbrar alguém na rua, quando a voz se elevou numa ordem:
– Alto! Estamos fechados, já disse!
– Mas… – Laura estava a ficar irritada, não só não via ninguém na rua, como não via o dono da voz. – Desculpe lá, mas onde é que o senhor está?
André fez-lhe uma careta e sinal com as mãos para ter calma e depois apontou para cima com um subtil movimento ascendente da cabeça, que as sobrancelhas erguidas e os olhos imitaram. Laura seguiu-lhe as indicações encontrou um espelho esférico convexo que se encontrava junto ao tecto, no canto da sala entre a parede da entrada e a parede atrás do balcão. Num dos lados do espelho estavam eles, no outro a cabeça de um homem a quem parecia faltar o corpo. Laura deu um passo para trás.
– Nunca viu? – perguntou a voz, reflectindo no espelho um sorriso sarcástico e mal-intencionado, que caminhava na direcção deles.
Laura seguia-lhe o reflexo com ar assustado e chegou-se mais para o pé de André e, quando a cabeça sorridente apareceu acompanhada de um pequeno corpo por detrás do balcão, gritou:
– Um anão!
O anão parou de sorrir, levantou a cabeça e as mãos, olhou para Laura e depois para trás de si num frenesim apavorado e, enquanto corria para se abraçar às pernas de Laura, gritava:
– Onde?! Onde?! Onde é que está o anão?!

2 comentários :

Teresula disse...

Olá. Já conhecia a anedota do anão(como toda a gente possivelmente) mas tu apresenta-la de uma forma tão amorosa e ternurenta...até parece que estamos mesmo a vê-los.Está fixe.Estou aqui às voltas com aquela frase(mais ou menos a meio do teu texto) aquela que são duas(!) e acho que ambas querem dizer a mesma coisa, não é?

Teresula disse...

Venho assim esclarecer o meu comentário anterior e deixar claro, que a anedota, não é o texto, mas, sim, apenas, as, quatro, últimas, frases, do, mesmo.

;-)