– As coisas são o que são – disse André, enquanto caminhava, enfiando
as mãos nos bolsos das calças de ganga.
– Nem sempre – discordou Laura, sem olhar para ele. – Às vezes, as
coisas são umas e nós pensamos que são outras.
– Mas não deixam de ser o que são – contrapôs o homem, parando no
passeio junto a um cruzamento. Estava vermelho para os peões.
Laura parou ao lado dele e não respondeu.
O sinal ficou verde e atravessaram a rua em silêncio. Quando chegaram
ao outro lado continuaram a andar e ela recomeçou a conversa:
– Sim, mas se nós não as vemos pelo que são mas como o que queremos
ver…
– Ou não – acrescentou André, olhando para Laura de esguelha.
– Ou não?
– Sim, muitas vezes não vemos as coisas como são verdadeiramente mas
também não as vemos como queríamos que fossem – respondeu André, olhando sempre
em frente enquanto caminhava. Ela ouvia-o com atenção mas com ar pouco
convencido. Ele acrescentou: – Pelo contrário, vemos o que não queríamos ver.
Não vemos as coisas pelo que são mas pelo que não queríamos que fossem.
Laura parou, tocou-lhe no braço para o fazer parar e virou-se para
ele.
– Nós estamos a falar exactamente de quê? – perguntou-lhe, com ar
desconfiado.
André olhou em volta, disfarçadamente como se estivesse com medo de
estarem a ser seguidos mas não quisesse mostrar que procurava alguém, e, quando
os seus olhos se reencontraram com os dela, sussurrou:
– De coisas.
Laura suspirou, de cansaço.
– Que coisas?
André tocou-lhe no braço e recomeçou a andar.
– Sabes que o Google hoje disse-me para sair às sete e quarenta e três
para me encontrar contigo às oito?
Laura não o seguiu logo e quando o fez, caminhou com lentidão,
obrigando-o a parar ao fim de sete passos, a voltar-se para trás e a esperar.
– O Google disse-te o quê? – perguntou ela.
André apontou para uma pastelaria com a cabeça e, sem responder,
sugeriu num tom conspirativo:
– Vamos aqui.
Laura respirou fundo: não estava a perceber, nem a gostar.
– Não íamos jantar? – replicou.
– Eu quero mostrar-te uma coisa – disse ele, abrindo a porta da
pastelaria.
A mulher estacou do lado de fora da porta e insistiu:
– Não me podes mostrar ao jantar?
André fez uma careta de aflição e rolou os olhos de forma estranha. Laura
decidiu entrar pela porta que ele continuava a segurar.
– Estamos fechados – avisou uma voz masculina, quando os passos dos
saltos altos dela soaram no chão de mosaicos do estabelecimento.
Eles entreolharam-se e procuraram o dono da voz, sem resultados. Laura
fez menção de se virar para sair mas André largou a porta que se fechou.
– Já estamos fechados – repetiu a incorpórea voz, quando a porta bateu
levemente.
– Boa noite – disse André, sem saber para onde falar. – É só um minuto
para mostrar uma coisa à minha amiga.
Laura fulminou-o com o olhar: a “minha amiga” não lhe soou nada bem.
– Mostre na rua – replicou a voz.
– Não posso, estamos a ser seguidos…
– Estamos?! – Interrompeu Laura, surpreendida, olhando para a rua. –
Estamos a ser seguidos por quem?
– Isso é que é pior – comentou a voz, num tom interessado. – E estão a
ser seguidos porquê?
André deu um passo para dentro da pastelaria, na direcção de Laura,
que continuava à procura de vislumbrar alguém na rua, quando a voz se elevou
numa ordem:
– Alto! Estamos fechados, já disse!
– Mas… – Laura estava a ficar irritada, não só não via ninguém na rua,
como não via o dono da voz. – Desculpe lá, mas onde é que o senhor está?
André fez-lhe uma careta e sinal com as mãos para ter calma e depois
apontou para cima com um subtil movimento ascendente da cabeça, que as
sobrancelhas erguidas e os olhos imitaram. Laura seguiu-lhe as indicações
encontrou um espelho esférico convexo que se encontrava junto ao tecto, no
canto da sala entre a parede da entrada e a parede atrás do balcão. Num dos
lados do espelho estavam eles, no outro a cabeça de um homem a quem parecia
faltar o corpo. Laura deu um passo para trás.
– Nunca viu? – perguntou a voz, reflectindo no espelho um sorriso
sarcástico e mal-intencionado, que caminhava na direcção deles.
Laura seguia-lhe o reflexo com ar assustado e chegou-se mais para o pé
de André e, quando a cabeça sorridente apareceu acompanhada de um pequeno corpo
por detrás do balcão, gritou:
– Um anão!
O anão parou de sorrir, levantou a cabeça e as mãos, olhou para Laura
e depois para trás de si num frenesim apavorado e, enquanto corria para se
abraçar às pernas de Laura, gritava:
– Onde?! Onde?! Onde é que está o anão?!
2 comentários :
Olá. Já conhecia a anedota do anão(como toda a gente possivelmente) mas tu apresenta-la de uma forma tão amorosa e ternurenta...até parece que estamos mesmo a vê-los.Está fixe.Estou aqui às voltas com aquela frase(mais ou menos a meio do teu texto) aquela que são duas(!) e acho que ambas querem dizer a mesma coisa, não é?
Venho assim esclarecer o meu comentário anterior e deixar claro, que a anedota, não é o texto, mas, sim, apenas, as, quatro, últimas, frases, do, mesmo.
;-)
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