Maria, escondida
atrás dos seus óculos escuros, olhou para Rafael e estudou-lhe o rosto: a face
bem escanhoada, os lábios finos a desenharem um sorriso trocista, o nariz
ligeiramente torto que parecia reforçar a troça no sorriso, os olhos castanhos
que não paravam em lado nenhum e uma pequenas rugas na testa que, se ela bem o
conhecia, denunciavam o esforço que ele estava a fazer para se manter calado.
Apesar do sorriso, a expressão de Rafael não escondia o enfado de estar ali, de
estar calado, de estar à espera. “Tenho mais que fazer”, anunciava o rosto do
homem. “Muito mais que fazer.”
Maria olhou para
a esplanada em volta, quase vazia, para as chávenas de café na mesa, para o
papel da conta com moedas em cima e para as suas próprias mãos. Esticou os
dedos como se precisasse de confirmar a cor das unhas e, mantendo os olhos nas
unhas, disse num tom meramente informativo:
– Causas-me
repulsa, Rafael. Esse teu sorrisinho sonso e esse ar de quem não quer saber e
está acima de tudo e de todos. Acho que és um triste, Rafael.
– É a tua
opinião, Maria. – O homem ergueu e baixou o ombro direito, fez uma careta de
quem não quer saber e concluiu calmamente: – E, hoje em dia, toda a gente tem
direito à sua opinião e, o que é pior, a expressá-la em voz alta como se fosse
alguma coisa de jeito e os outros tivessem a obrigação de a ouvir.
A mulher olhou
para lá dele e pensou em como o amara em tempos, em como se sentira morrer e
renascer quando faziam amor, em como precisara dele para ser feliz, para se
sentir mulher, para viver.
– Eu era muito
burra – suspirou Maria com um sorriso triste. Riu-se. – Eu era muito burra e tu
sempre foste um animal. – A mulher gostou da surpresa na cara dele e continuou,
sempre a sorrir: – E eu, burra, não via ou não queria ver o animal que tinha em
casa. Quando tinha… Se é que tinha. O que é que andavas a fazer, Rafael?
– Pelos vistos,
a dar-te tempo e espaço para pores o merdas lá em casa. Para se enfiar dentro
de ti… Primeiro aí e depois aí. – O homem apontou para a cabeça e, depois, para
o sexo dela. – Ou terá sido ao contrário?... Deve ter sido ao contrário:
primeiro comeu-te e só depois é que te fez a cabeça.
Maria fez uma
careta e replicou:
– Quando ele me
comeu tu já não estavas lá.
– Dizes tu.
– Digo eu porque
é verdade. – Maria esboçou um sorriso provocador e triunfante que se foi
desvanecendo. – Podia ter acontecido enquanto tu ainda lá estavas mas nunca
aconteceu. Só depois te termos acabado é que o fizemos.
– Mas ele já
estava enfiado lá em casa. Na nossa casa – reclamou o homem.
– Ele começou a
ir lá por causa do cão. Sabes isso muito bem.
Rafael não
respondeu, fixou-se pensativo no tampo da mesa e, após uns momentos de
silêncio, levantou a cabeça e declarou enfático:
– Uma mentira de
uma mulher vale mais do que cinquenta verdades de um homem.
Maria suspirou.
– E?
– E?
– Sim, e depois?
O que queres dizer com isso?
– Nada… Ouvi
isto no outro dia.
Maria abanou a
cabeça em sinal de desespero e cansaço.
– Continuas na mesma.
– Eu nunca vi o
cão – declarou Rafael, como se se tivesse lembrado da razão porque dissera a
frase anterior e fosse evidente a ligação entre as duas.
– Tu nunca viste
foi a cadela. – Maria tirou os óculos. – O cão era meu, ele tinha era uma
cadela que queria que o Boris emprenhasse.
– O Boris não
pode emprenhar.
– Não era a
cadela que queria que o Boris emprenhasse. – Maria mostrou-lhe a língua:
conhecia-o bem demais para se deixar apanhar. – Era ele que queria que o Boris
emprenhasse a cadela.
– E o Boris?
– O Boris, o
quê?
– Queria
emprenhar a cadela?
– Desculpa lá! -
A mulher forçou-se a fazer uma pausa e respirou fundo e olhou em volta. Estava
mais calma quando recomeçou: - Porque é que estamos a falar do Boris?
– Tu é que
falaste nele. Tu é que disseste que o interesse do merdas não era comer-te mas
que o teu cão lhe comesse a cadela.
– És muito
desagradável…
– Não foi isso?
Maria fez uma
careta, encolheu os ombros e concordou:
– Sim, foi isso.
Ele queria que o Boris lhe emprenhasse a cadela. – A mulher deixou a cabeça
descair para o lado direito e soltou um risinho desafiador. – Só depois é que
me quis comer.
– Depois de eu
ter saído…
– Sim, também
não dava muito jeito que lá estivesses. – A mulher riu-se, divertida. – Era um
bocadinho estranho: o Boris e a cadela no quintal, eu e o merdas no quarto e tu
na sala a veres a Benfica TV… Não era um quadro muito bonito.
– Podia estar a
ver outro canal.
– Ah… Pois! Isso
é verdade, escusava de ser tudo tão mau.
– O Boris não
gostou?
– Sei lá se o
Boris gostou. Eu não gostei.
– Eu não quero
saber.
– Pensei que
quisesses. Quiseste vir tomar café comigo.
– Sim mas…
– Quiseste
esclarecer certas coisas e disseste que gostavas que tivéssemos mais contacto. Afinal…
Rafael respirou
fundo e passou a mão direita com força pela testa como se quisesse esfoliá-la.
Tornou a respirar fundo, no que pareceu mais um suspiro que outra coisa, o que
0 aborreceu por sair assim, e fixou-se nas moedas em cima do papel da conta.
– Queres
factura, Maria Luís?
A mulher olhou-o
com furioso e bélico desprezo: era de esquerda, uma esquerda baixa e
trauliteira, avançada nos costumes dos outros e distribuidora dos bens alheios;
que troçava, gozava, injuriava e insultava à boca cheia e por dá cá aquela
palha mas que só a si se reconhecia esses direitos e para quem o sentido do
humor só o era se saísse da sua boca, da sua pena ou de alguns dos da sua cor.
Satisfeito com a
reacção provocada, Rafael agarrou nas moedas com outro ar e levantou-se.
– Não queres? –
insistiu.
– Continuas o
mesmo porquinho reaccionário, Rafael. – Maria também se levantou.
– Não te chamas
Maria Luís?
– Com muito
gosto – rosnou a mulher.
Rafael arrumou a
cadeira, acenou ao empregado com o polegar erguido e sorriu beatificamente na
direcção de Maria.
– Não percebi
uma coisa… – disse ele, depois de ela sorrir para o empregado que viera
levantar as chávenas de café e despedir-se dela.
“Já não via há
tanto tempo, Menina. Gostei muito de a ver. Dê cumprimentos ao senhor professor
doutor. Ele está bem, o seu paizinho?”
“Vai andando,
Joel, vai andando. Também gostei muito de o ver, Joel. Gostei muito.”
– Uma?! Não
percebeste uma coisa? – troçou ela, depois do empregado se ir embora e eles
começarem a caminhar lado a lado em direcção ao parque subterrâneo onde tinham
os automóveis. – Deves andar a tomar alguma coisa para o cérebro. Uma conversa
de quase meia hora e só não percebeste uma coisa?
– Podias ter
beliscado a bochechinha do Joel – replicou ele, juntando os lábios numa boca
pequenina e, imitando a voz dela mas num registo excessivamente ternurento,
declamou, enquanto agitava a mão como se beliscasse a bochecha de alguém: –
“Gostei tanto de o ver, Joel. Gostei muito, meu querido proletariozinho, se
pudesse levava-o para casa, dava-lhe um banhinho e punha-o ao pé do Boris…”
Maria deu-lhe um
murro no ombro mas não evitou um sorriso, enquanto lhe chamava parvalhão e lhe
dizia pela centésima vez, ainda que há muito não lho dissesse, que não gostava
do velho lambe-botas do Joel, esse proletário desnaturado e reaccionário que
não sabia o que era bom para si e que acompanhara o paizinho no tempo em que
ele era de um partido de direita que ele se recusava sequer a nomear. Mas o pai
tinha visto a Luz e caminhado para ela, enquanto o Joel, esse velho patarata,
continuava com o mesmo ar desenxabido e apatetado que têm os velhos de direita.
Para Maria, o
paizinho era uma espécie de Benjamim Button: tinha rejuvenescido a caminho da
velhice e estava hoje muito mais moderno e arejado do que alguma vez fora. As
ideias de esquerda que o velho hoje debitava com a mesma certeza e iluminada lucidez
com que debitara as de direita quase até aos oitenta anos pareciam ter
propriedades miraculosas que lhe davam saúde e força.
“Nunca é tarde
para ver a Luz”, dissera-lhe uma vez o merdas, com ar de quem perdoa.
“Nem todos, Luís
Augusto, nem todos têm a capacidade que o meu pai teve de se redimir. De
ponderar e pensar”, respondera-lhe ela, enquanto viam o Boris desajeitamente a
tentar montar a cadela sem sucesso.
“É preciso
tempo…”, dissera ele.
“Só o tempo não
chega”, replicara ela, que ultimamente admirava o pai acima de quase todos os
homens. “É preciso mais qualquer coisa. É preciso ter mais do que tempo. É
preciso estar preparado, ter um espírito forte e uma boa natureza.”
“Isso é tudo verdade
mas uma boa erecção e jeito para saltar para a espinha também faz muita falta.”
“Eu ainda estava
a falar do meu pai, Luís Augusto.”
Maria riu-se,
lembrando-se do ar de parvo do merdas ao dizer embaraçado:
“Eu estava a
falar do Boris.”
– És um parvalhão
– repetiu Maria, ainda a rir, empurrando Rafael com o ombro. – E afinal, o que
é que não percebeste?
Rafael hesitou e,
de repente, parou e ficou a olhar para ela.
– Ah… – lembrou-se.
– Foi impressão minha ou chamaste-lhe merdas?
Maria parou um
passo à frente, virou-se de lado e olhou-o com excessivo e teatral desdém até
se desfazer num enorme sorriso, que acompanhou com um encolher de ombros que
afastava qualquer arrependimento.
Ele riu-se mas,
quando continuou, tentou fazê-lo com ar sério:
– Chamaste
merdas ao grande Luís Augusto, esse farol da esquerda que tudo alumia com o seu
saber e probidade? Merdas, o Luís Augusto?! Pensava que era só eu que achava
isso.
– O tipo é um
merdas – reconheceu Maria, tornando a encolher os ombros e baixando
ligeiramente a cabeça, com ar de gozo – e a cadela, coitadinha, era um pãozinho
sem sal. Estavam bem um para o outro: não se aproveitava nada.
– E o Boris?
– O Boris?! –
Ela recomeçou a andar. Ele seguiu-a. – O Boris era como tu: muito entusiasmo e
fanfarronice mas pouca aptidão natural para a coisa.
– Ai é?
– Sim, é – Maria
encostou-se ao seu automóvel. Rafael pôs-se à sua frente, esticou o braço
direito e apoiou a mão no friso da porta. Maria, passou a ponta do indicador e
do dedo médio direitos pela sobrancelha e rematou: – Mas quando apanhou a
cadela certa aprendeu e é um espectáculo digno do National Geographic…
– Eu? –
interrompeu Rafael, olhando-a nos olhos.
– Não, o Boris –
respondeu ela, com implacável frieza, mantendo o olhar.
Sorriram um para
o outro.
Maria beijou-o
na bochecha esquerda e saiu pela sua direita. Mostrou-lhe o comando do
automóvel, enquanto os piscas piscavam e as portas se destrancavam e
despediu-se.
– Outro dia, Rafael.
Outro dia.
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