sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

A polícia cercara-os e os dois homens faziam as suas preces prontos a morrer como mártires quando tiveram ambos uma dúvida que lhes toldou a até aí animada perspectiva da morte. Remoíam na súbita e perplexa incerteza quando, sem que sentissem fisicamente o que quer que fosse, se viram na presença do profeta.
Entreolharam-se assustados, o profeta – eles sabiam que era ele que estava à sua frente – parecia uma caricatura; ou melhor, petrificados de espanto, ambos concluíram que a figura do profeta era a de uma das caricaturas.
– Vocês nunca me viram, não sei qual é o espanto – resmungou o profeta, olhando-os com desprezo. Os homens baixaram os olhos, lembrando-se que não podiam olhar para ele. O profeta ia-lhes dizer que o podiam olhar mas limitou-se a encolher os ombros.
– Foi por vós – disse o mais baixo dos homens, depois de se ajoelhar e prostrar-se ritualmente. O irmão imitou-o. – Foi tudo por vós.
– E alguém lhes pediu? – vociferou o profeta, mal-disposto. – Alguém lhes encomendou alguma coisa ou lhes passou alguma procuração?!
– Morremos? – Perguntou o irmão. – Estamos mortos?
– Não, a morte não é isto.
– Foi por vós – repetiram os homens, com as vozes abafadas pela proximidade do chão. – Fizemo-lo por vós. Vingámo-lo!
– Têm-me em muito pouca consideração. Muito pouca. – O profeta suspirou ruidosamente. – Pobre profeta, pobre Deus, pobre qualquer um, que precisasse de tipos como vós para o que quer que fosse… O que quer que fosse. Vocês cansam-me… Doem-me. – Os homens viam-lhe os pés, que se viraram e se começaram a afastar lentamente. – Ah… – Os pés pararam. O profeta rodou sobre os calcanhares, virando-se para os homens, baixou-se para que eles o encarassem e, então, anunciou-lhes: – E para que saibam, se é que não perceberam pela figura em que me vêem: Je suis Charlie.

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