quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Palavra

"A palavra chegava-lhe aos lábios, enchia-lhe o olhar e desabava na expressão do rosto e do corpo mas nunca era dita. Nunca.
A palavra estava ali e era ele e ele era a palavra mas não a dizia.
Os seus olhos, o seu rosto e o seu corpo eram o reflexo da palavra. Um espelho era o que ele era naqueles momentos. Apenas um espelho que reflectia uma única palavra. Uma palavra muda, sem som, sem corpo, sem existência.
E as palavras que não se dizem não existem, nem os espelhos são o que reflectem."
A mulher calou-se, baixou a cabeça, engoliu em seco e tentou normalizar a respiração; então, quando se sentiu segura de si, olhou em frente e continuou: 
"Depois, depois da palavra não dita mas representada, vinham as explicações, as justificações, as tergiversações, as promessas e as juras. Tudo, tudo como se se abrissem as comportas de uma barragem, como se, por milagre, o mudo ganhasse voz. Ele seria outro e a palavra que não fora dita jamais seria necessária. Jamais!
Até que acontecia tudo outra vez e a palavra lhe chegava de novo aos lábios, lhe enchia mais uma vez o olhar e se repetia para lhe desabar a expressão do rosto e do corpo sem, como sempre, ser dita. Nunca foi. E era tão fácil, doutor, tão fácil.” A arguida suspirou e calou-se, correndo o olhar pelo colectivo de juízes que a julgavam. Por fim, fixou-se no juiz-presidente e concluiu: “E o que é que lhe custava, doutor? O que é que lhe custava, nem que fosse por uma vez, pedir desculpa?”
“Agora já não pode”, deixou escapar o magistrado, num tom resignado e sem censura.
“Agora já não”, concordou a arguida.

1 comentário :

Teresula disse...

Gosto de ler.
Gosto de te ler.
<3