quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Periferia

Júlia fixou-se nos olhos de Marco e disse-lhe:
- Entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer, podia escrever-se um livro.
Marco cerrou os lábios, abanou resignadamente a cabeça, concordando, e perguntou:
- Não é sempre assim?
- Não sei - respondeu Júlia, levantando os ombros. - É provável que sim. Há sempre coisas que não se conseguem dizer, outras que achamos não valer a pena serem ditas e outras que não queremos dizer.
Marco afastou o seu olhar do dela e olhou em volta, para as outras mesas da esplanada mas não pensou em nada, nem, na realidade, viu o que quer que fosse, precisava apenas de se afastar dos olhos dela, de deixar de sentir que estava a ser lido, que ela o estava a perceber mais do que ele se percebia a si próprio. Quando voltou a olhar para ela, Júlia olhava para o tampo da mesa, absorta nos seus pensamentos. Marco esperou uns segundos e, depois, disse num sussurro quase inaudível:
- Também há coisas que não sabemos dizer. - Júlia levantou a cabeça e tornou a fixá-lo, Marco continuou no mesmo tom: - E há coisas que não dizemos no tempo certo e por muito que nos martirizem, pelo menos durante um tempo - relativizou, achando que estava a ser sério demais -, acabamos por nunca dizer.
- É?
Marco acenou com a cabeça que era, voltando a cerrar os lábios como a dizer que não só era como era evidente que sim.
- Houve coisas que não me disseste... - Júlia parou para se lembrar da frase exacta e adaptando-a, recomeçou: - Houve coisas que não me disseste no tempo certo e que, apesar de te martirizarem, acabaste por nunca me dizer?
- Tu não?
- Que me lembre, não. - Júlia baixou os olhos para um ponto indefinido da mesa e, após um momento, corrigiu: - Não, de certeza que não. Ainda por cima se ficasse a pensar nisso, a martirizar-me - sorriu com a palavra -, a martirizar-me por não te dizer, dizia-o. Tu não? - Júlia repetiu a pergunta que ele lhe fizera, bem sabendo que não: não só porque ele lhe dissera mas porque, conhecendo-o, sabia que quanto mais o tempo passasse, com martirização ou não, menos ele o diria.
- Eu não - reconheceu Marco que, sem se querer alongar por esse caminho, voltou ao inicio desta parte da conversa. - Achas que o que ficou por dizer dava para escrever um livro?
Júlia mantinha o sorriso que lhe surgira com o “martirizar-me”, ainda que na maior parte do tempo, o sorriso permanecesse confinado aos lábios, não alastrasse a qualquer outro elemento do seu rosto, como se simplesmente se tivesse esquecido que estava a sorrir.
- Acho mais do que isso... -  Júlia engasgou-se nas palavras e o sorriso triste, infrutífero, desalentado em que a frase se esgotou deu lugar a um sorriso maroto, quase infantil, com que recomeçou a falar: - Eu não disse isso. Eu disse mais do que isso: disse que o que dava para escrever um livro foi o que está entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer; não foi só com o que ficou por dizer. O que ficou por dizer também dava para escrever um livro, se calhar maior, mais completo, mais volumoso, mas... - Júlia sorria com todo o rosto e com um particular brilho nos olhos - mas, de certeza, de certeza mesmo, não teria nem metade do interesse do livro que tivesse tudo o que está entre aquilo que dissemos e o que ficou por dizer.
Em fundo, das colunas presas à parede da pastelaria, começaram ambos a ouvir uma musica que reconheceram: Periphery de Fiona Apple.
- É por isso que gosto de vir aqui - disse Júlia, referindo-se à musica, a olhar para as colunas e, subitamente, levantou a mão direita para chamar o empregado, a quem, como se escrevesse no ar, pediu a conta. Olhou para Marco, que lhe devolveu um olhar interrogativo, e anunciou-lhe: - Tenho de me ir embora.
- Já? - repetiu Marco o que os seus olhos já haviam dito.
Júlia acenou com a cabeça.
- Agora.
Marco olhou para o relógio.
- Não é por causa das horas… - Júlia hesitou e emendou: - Não é só por causa das horas, é que esta é a banda sonora perfeita para terminarmos esta conversa. Não quero ouvir mais nada.
O empregado aproximou-se com a conta e perguntou:
- É junta?
Julia levantou-se, ficou entre a mesa e a cadeira, olhou para Marco, que lhe devolveu um olhar em que ela não encontrou qualquer significado, e, ainda a sorrir, o tal sorriso esquecido, disse:
- A conta é.

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