sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O Parvo

Apesar de não desviar o olhar do recheio do decote que, graciosamente, a mulher lhe colocara à frente, o homem pôs um ar de sofrimento atroz e, num tom despreocupado que não casava com a cara de desvalido que ostentava com esforçado empenho, informou:
– Não há nada a fazer, querida, não tenho cheta.
Sentindo uma repentina fúria a tomar conta de si, a mulher semicerrou os olhos, mordeu o lábio inferior, inspirou pelo nariz e engoliu em seco para se controlar: o “querida” arranhara-a mas a desarmonia entre a expressão do homem e a frase e o tom em que ele a dissera doeu-lhe como uma bofetada. A “querida” conteve-se, respirou fundo, abstraiu-se do ar aparvalhado com que ele ainda rebolava os olhos nas suas mamas, e perguntou docemente:
– Tens mesmo a certeza que não queres?
O homem queria mas não podia ou podia mas não queria, ele próprio não sabia bem, mas, aparte isso, tinha a certeza da negativa, isso era certo e definitivo, apesar de estar maravilhado com o recheio do decote que lhe ocupava todo o campo de visão, de estar entusiasmado por ter uma mulher pendurada no seu colo e de estar a sentir uma forte pulsão primitiva que procurava justificar e tornar aceitável a rendição a um dos mais básicos ensinamentos cristãos. “Ainda que eu não me fosse multiplicar…”, riu-se o homem para si.
– Tens a certeza que não há nada a fazer? – Insistiu a mulher, em tom menos doce mas ainda agradável.
O homem levantou a cabeça e olhou-lhe para o rosto mas, no meio dos seus pensamentos, dúvidas e certezas, decidiu não vocalizar a resposta, não lhe dirigir a palavra e ser duplamente afirmativo e desagradável, acenando com a cabeça para baixo e para cima ("tenho a certeza que não há nada a fazer!") enquanto encolhia os ombros ("e não me interessas, nem quero saber das tuas expectativas ou acho que mereças que responda com a mesma educação e simpatia com que me estás a tratar"); o que, deu-se conta disso naquele momento, não conseguia fazer ao mesmo tempo.
– Não consigo – disse o homem, perplexo, sem parar de tentar conjugar os movimentos da cabeça e dos ombros, o que lhe saía cada vez mais ridículo e grotesco.
Pasmada, a mulher olhava para o bizarro espectáculo que o homem dava sem saber se havia de rir ou de chorar, se havia de se levantar e fugir ou dar-lhe um estalo e ajudá-lo a recompor-se do que lhe parecia um ataque qualquer.
– És parvo ou quê? – rosnou, por fim, a mulher, sem se mexer, cansada da noite que ainda não começara, farta dos clientes que ainda não tivera, desesperada com as escolhas que fizera na vida e que agora a faziam estar ali, ao colo de um louco furioso, sem dinheiro nem respeito por quem tenta trabalhar.
O homem, assustado com a fixidez penetrante do olhar dela, que achou ter relevância penal se ficasse registado, desistiu, ainda que contrariado, de tentar acenar com a cabeça e encolher os ombros ao mesmo tempo e manteve-se calado e quieto à espera do que ela faria ou diria a seguir. Mas a mulher não fez nem disse nada e acabou por distrair-se, desviando o olhar de forma natural, sem antipatia ou ressentimento, o que deu ao homem um suplemento de parvoíce e mania que se materializou no tom ríspido, antipático e com a barba por fazer com que lhe disse que estava aborrecido por não conseguir mostrar-lhe de duas formas o desinteresse nela e na pergunta que ela lhe fizera.
– Queria abanar a cabeça e encolher os ombros ao mesmo tempo mas não consigo – concluiu, como se isso é que fosse importante.
– Afinal, não és só parvo – A mulher suspirou profunda e ruidosamente e terminou com um esgar de asco que não a favorecia: – És parvo e mal educado e desagradável.
– Porquê, tu consegues? – Perguntou o homem que, na realidade, não a tinha ouvido, julgando tão-só que ela o estava a depreciar por não conseguir coordenar os movimentos que queria.
A mulher esticou-se, pôs os pés no chão (era pequena), levantou-se, saiu do colo do homem, baixou o mais que conseguiu a curta mini-saia que quase trazia vestida, e, abanando a cabeça na horizontal e fazendo ao mesmo tempo toda a espécie de movimentos com os ombros, com a boca e com os olhos sublinhando o seu desagrado e aborrecimento, comentou, sem que o fizesse particularmente para o homem que retomara as tentativas de abanar a cabeça e encolher os ombros:
– Se não querem por que é que nos deixam avançar? Porque é que não dizem nada e, pelo contrário, – a mulher fez uma pausa nas vírgulas que o homem, sem perceber porquê, apreciou – põe-se com conversas como se fossem alguma coisa de jeito e  ainda nos chamam queridas e lindas e…
– Eu não te chamei linda – corrigiu o homem, julgando que ela estava a falar com ele.
A mulher tornou a suspirar:
– Estás-me a chamar feia, é?!... Era só mesmo o que faltava...
Atrapalhado, o homem engoliu em seco, abanou a cabeça sem mexer os ombros (o que fazia com naturalidade) e, pensando ainda que ela falava com ele, que ela falava a sério, que ela ainda sabia que ele existia, justificou-se:
– Não, estou só a dizer que não te chamei linda, só te chamei querida.
O homem acabou a frase a olhar-lhe para os bicudos e brilhantes sapatos vermelhos de salto muito alto, que se viraram e se afastaram num silêncio estrondoso, o que lhe pareceu muito indelicado e rude da parte dela.

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