O senhor S.
aproximou-se de mim com ar conspirativo, sorriu para as pessoas com que eu
falava, pediu-lhes desculpa sem convicção e, agarrando-me o braço direito,
puxou-me à parte e afastou-nos do pequeno grupo. Então, seguro que ninguém mais
o ouvia, declarou num sussurro:
– O doutor L. está
maluco. – Olhei para o doutor L., que bocejava no meio da sala com ar alheado e
ligeiramente lunático, e depois voltei a fixar-me no senhor S. que, satisfeito
com a minha atenção, continuou no mesmo tom: – Sabes o que ele me disse ainda
agora?
Acenei com a cabeça o
óbvio, que não sabia, e ironizei num lamento:
– No entanto, algo me
diz que vou ficar a saber, mesmo que isso não me interesse nada.
– Lá estás tu –
repreendeu-me o senhor S. e, puxando-me ainda mais para si, reafirmou: – O
homem está maluco. Não brinques.
– O que é que ele lhe
disse? – Perguntei para o apaziguar, enquanto tentava, pelo menos, voltar à
posição inicial: agarrado pelo braço mas sem parecermos siameses colados da
cintura até ao ombro.
– Que a D. anda a
enganar o marido – respondeu o senhor S. de pronto.
Olhei-o perplexo,
enquanto ele abanava lentamente a cabeça para cima e para baixo e me olhava com
os olhos muito abertos e esbugalhados e os lábios firmemente cerrados, provavelmente
numa tentativa – frustrada – de conferir uma acrescida gravidade à frase.
– E eu não lhe
perguntei nada – acrescentou o senhor S., em jeito de justificação. – Cumprimentei-o
e perguntei-lhe como iam as coisas. Só lhe perguntei isso. Dei-lhe um aperto de
mão e perguntei-lhe: "Então, doutor, como vão as coisas?". Ele suspirou,
olhou para mim e disse-me: "Do pior, S., do pior". Eu larguei-lhe a
mão e fiz uma careta de desinteressada compreensão para…
– Desinteressada
compreensão? – Interrompi.
O senhor S. abanou a
cabeça para cima e para baixo com vigor e, sorridente, disse em dois tons:
– É a cara de
"coitadinho...-mas-o-que-é-que-isso-me-interessa?"
– O senhor tem uma
cara para isso? – perguntei. O senhor S. não respondeu mas fê-la. E tinha! –
Também serve para "vai-te encher de moscas" – disse eu.
O senhor S. riu-se.
– Foi mesmo isso que
eu pensei: "Ó doutor, vá-se mas é encher de moscas!"
– E depois? –
perguntei.
– Ele não percebeu ou
fez que não percebeu a minha ostensiva e quase ofensiva desinteressada
compreensão e disse-me: "Ó S., acabei de saber que a senhora D. engana o
marido..."
– Foi?
– É – corrigiu o
senhor S. – Parece que ainda é, ele falou no presente.
– Não era isso –
esclareci. – Estava a perguntar se foi isso que ele lhe disse.
– Ah! – O senhor S.
largou-me o braço, deu-me uma palmada nas costas a acompanhar a interjeição e
sorriu e acenou para o doutor L. que olhava para nós com ar desconfiado mas,
ainda assim, não menos lunático, apenas um pouco mais focado nalguma coisa. –
Disfarça – ordenou-me o senhor S., ainda a sorrir para L. – O gajo não gosta
que falem nele.
– Eu não estou a falar
nele – disse eu.
– Mas estou eu, parvo!
O doutor L.
cumprimentou um indivíduo qualquer que se aproximou dele cheio de salamaleques
e o senhor S., puxando-me para junto de um grande vaso com uma planta enorme e
desproporcionada para o tamanho da sala, preparava-se para continuar quando eu
me antecipei:
– Mas quem é essa D.?
O senhor S. olhou para
mim com um misto de espanto e desconsolo e, num tom ainda mais sofrido do que a
expressão, disse:
– Isso queria eu
saber... – Fez uma pausa e, adequando o tom e a expressão pela mais carregada
das duas, concluiu pesaroso: – Pensava que tu soubesses quem era a adúltera
senhora D. – Nova pausa e, depois, no mesmo tom e cabisbaixo e a abanar a
cabeça na horizontal. – Eras a minha maior esperança, meu rapaz... A minha
maior esperança.
– Para saber quem era
a senhora D.? – Aquilo parecia-me um grande exagero mas com o senhor S. nunca
se sabe.
– Sim, claro… – O
senhor S. levantou a cabeça e deixou-me ver os seus olhos que brilhavam num sorriso
trocista, que eu já conhecia, mas concluiu no mesmo tom e com o mesmo semblante:
– Eu cheio de esperança de conhecer uma adúltera para me animar os dias e tu
não sabes quem ela é... É uma tristeza. Uma tristeza... – No fim, piscou-me o olho
e sorriu. Abanou os ombros e, como se fosse tudo normal, explicou: – Daqui a
nada tenho de ir falar com o doutor C. – apontou com a cabeça para o homem
que ainda não tinha saído de junto da mesa onde serviam as bebidas – e tenho de
pôr este ar de desvalido para ver se ele me faz um favor. Sou convincente, não
sou?
Eu abanei a cabeça na
horizontal mas disse-lhe que sim. – E pode-lhe perguntar se conhece alguma
senhora D. – acrescentei.
O senhor S. olhou para mim e depois para o doutor
C.
– Nã… É melhor não. Eu sei lá se é a mulher dele.
Sem comentários :
Enviar um comentário