A mulher mergulhou a
colher na sopa e disse:
– Há uma universidade no Japão em que as mesas da
cantina têm um separador no meio para que as pessoas que estão frente a frente
nas mesas não se vejam. – O homem olhou para ela e arqueou as sobrancelhas: “E
eu com isso?”. A mulher, antes de levar uma colher cheia de sopa à boca e
engoli-la, esclareceu: – Se calhar era o que nós precisávamos. Uma mesa
“forever alone”.
O homem pousou os
cotovelos na mesa, juntou as mãos sobre o prato vazio, unindo as pontas dos
dedos, levou as pontas dos indicadores à ponta do nariz e, no fim, olhando para
a ponta da colher, perguntou, levantando a hirsuta sobrancelha esquerda (a
direita, menos peluda, era mais recatada):
– O que é isso?!
A mulher, que mantinha
a cabeça levantada como se estudasse o tecto, levou a mão direita à boca, onde
introduziu o indicador e o polegar e puxou lentamente a colher, que reapareceu
intacta mas vazia.
– Há quem o faça com
espadas – disse a mulher.
O homem pensou que
havia quem o fizesse com outras coisas mas não o disse, ao mesmo tempo que se imaginava
como objecto daquele súbito e inesperado talento da mulher.
– Sabes o que era de
valor? – Perguntou o homem, com maus modos, aborrecido por ter a certeza de que
nunca estaria envolvido naquele número. A mulher, que voltara a introduzir
parte da colher na sopa, acenou com a cabeça negativamente. O homem disse: –
Que a colher viesse cheia quando saísse.
A mulher, procurando
reter a resposta que lhe apetecia dar mas que não pretendia emitir, mordeu o
lábio inferior e fixou-se no prato de sopa. O homem levantou-se, pegou no seu prato vazio, que não chegara a
utilizar, e devolveu-o ao móvel da cozinha onde estavam os copos, o que fazia diariamente
para afrontar a mulher.
– E a mesa? –
perguntou a mulher.
– A mesa?
– Sim, a mesa “forever
alone”.
– Nós não precisamos
de uma mesa dessas – respondeu o homem. – Já comemos os dois a olhar para a
parede.
– Tu não comes – disse
a mulher.
– Às vezes, como –
replicou o homem, num tom que insinuava um outro sentido para o verbo.
A mulher riu para si.
– Já ouviste uma música
dos Passion Pit?
– Quem?
– Um grupo, Passion
Pit.
– Não conheço.
– Take a walk.
– Take a walk?
– Sim, Take a walk. É o
que deves fazer.
– Ah!
– Mas antes tiras o
prato do sítio dos copos.
O homem, sorrindo satisfeito porque o seu acto fazia efeito, retorquiu:
– Tira tu os copos do
sítio do meu prato.
A mulher levantou-se, pegou no seu prato de sopa vazio, com a colher lá dentro, olhou para o homem e explicou:
– Sabes, quando eu
comecei a treinar o truque da colher fi-lo para outros fins. A minha ideia não
era enfiar colheres pela garganta abaixo. – A mulher pousou o prato no
lava-loiças. – Fi-lo para ti, ou melhor, fi-lo com o propósito de o vir a fazer
contigo… – A mulher fez uma pausa e emendou, com um sorriso resignado e triste: – Fi-lo com
o propósito de o vir a fazer em ti.
Junto à porta
do móvel da cozinha onde estavam os copos arrumados e o seu prato desarrumado,
o homem ouvia imóvel e em silêncio, sem saber o que responder.
A mulher aproximou-se
dele e pediu-lhe licença com um gesto. Ele afastou-se.
– Mas isso nunca vai
acontecer – continuou a mulher, abrindo a porta de onde estavam os copos e o
prato. Tornou a sorrir, um sorriso ainda resignado mas menos triste. – Ou, pelo
menos, não vai acontecer contigo.
O homem sentiu a frase
como um murro na barriga, que lhe doeu fisicamente, que o fez encolher num acto reflexo e ficar mesmo com falta de ar.
A mulher viu-o encolher-se ligeiramente mas isso não lhe interessava e, certa do que queria
fazer, ergueu o braço, esticou os dedos da mão que enfiou entre os copos e a
madeira do móvel, pôs os dedos num ângulo de quase 90º em relação à palma da mão
e puxou a mão e o braço para si evitando o prato em que não tocou e trouxe
todos os copos de uma vez até ao fim da prateleira do móvel, fazendo com que se
estatelassem com estrondo no chão da cozinha. Então, anunciou, com expressão
de dever cumprido:
– Já tirei os copos do sítio do teu prato. – A mulher sorria enquanto
saía da cozinha, com cuidado, evitando os pedaços maiores dos vidros e, junto à porta
do apartamento, disse: – Vou fazer uma caminhada. A walk.
1 comentário :
Realmente, a língua portuguesa e a sua utilização, tem muito que se lhe diga. E quando se come um prato de sopa em vez de uma colher de sopa? Devia ser divertido devia!! Muitos parabéns, está muito giro!! Bjo.
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