Ele abanou a cabeça e fez uma careta de desagrado.
– Não sei – acabou por dizer.
Ela olhou para ele com os olhos muito abertos e perguntou:
– Não gostas?
– Não sei – repetiu, hesitante –, estava à espera de melhor.
– Desculpa?
– Estava à espera que fosse melhor – adornou ele, após nova hesitação.
– Entre estares à espera que fosse melhor e um “não sei” com uma
careta horrível vai uma grande distância, não achas?
– Não foi horrível.
– Se não foi, foi por pouco. – Ela esticou a mão para a torta. – Não
queres mais?
Ele olhou para ela, depois para a torta, novamente para ela e
acabou por se fixar na torta, com ar contemplativo.
– Queres mais? – inquiriu ela, incrédula.
– Pode ser só um bocadinho.
– Então, mas… – A incredulidade dava lugar a uma súbita fúria, que
lhe atabalhoava o raciocínio. Respirou fundo e insistiu: – Queres mais?
– Posso ter-me precipitado.
Ela suspirou, agarrou na torteira, levantou-se da mesa e levou a torta com ela.
– Então?! – protestou ele, franzindo o sobrolho.
– A próxima sai melhor – disse ela. – Esta vai para o cão.
Percebendo que ela falara nele, o animal levantou o focinho e olhou-a,
expectante. Ela sorriu-lhe e o cão levantou-se de um salto.
– Ele quer – constatou ela.
– Eu também – replicou ele.
– Ele não está à espera de melhor – retorquiu ela.
O cão abanava a cauda furiosamente e olhava-a animadíssimo.
Nero, o irritante Pinscher do 4.º esquerdo, andara meses a anunciar
os tempos de leite e mel que vivera enquanto os seus humanos não se separaram mas
ele, até há três maravilhosas e surpreendentes experiências gastronómicas
atrás, não só não acreditara como desdenhara sempre com uma rosnadela
intimidatória, o que, se a torta lhe viesse agora a cair no prato esmaltado,
estava pronto a reconsiderar e a aceitar, por uma vez, “uma vez sem exemplo”,
determinou, a aceitar algo do que o Nero lhe ladrava como um louco furioso
sempre que se encontravam no parque.
– Não acredito!
– Estou-te a dizer, foi uma torta de laranja inteira. Uma torta de
laranja in-tei-ra.
– Se calhar já não estava boa.
– Estava boa e era fresquíssima. Acabadinha de fazer.
– Não acredito. Toda?
– Toda!
– Alguma coisa devia ter.
– Não tinha nada. Estava boa.
– Não pode ser.
– Estou-te a dizer. Não sei quantos ovos, não sei quantas laranjas,
não sei quando tempo na Bimby e no forno e no fim…
– Cão.
– Sim.
– Toda?
– Toda.
– Não se acredita.
– Eu comi uma fatia e ela nem sei se provou… Foi toda para o cão.
– É de cortar os pulsos!
– E o pior…
– Há pior?
– Talvez não seja pior mas é tão mau como…
– Tu não comeste.
– Comi uma fatia.
– E o cão comeu o resto.
– Não, o cão comeu tudo, não foi resto nenhum. E o pior é que o
sacana parecia que estava a gozar. No fim, veio-me dar uma pancadinha com o
focinho como se estivesse a gozar comigo ou a agradecer a minha parvoíce, nem
percebi.
– Era a mesma coisa.
– O quê?
– Agradecer a tua parvoíce também era gozar contigo.
– Ontem, fiz-lhe a torta, Neide. A torta de laranja.
– Ao Rodolfo?
– Não, ao Varela.
– E?
– Fez uma careta como se estivesse horrível. Só comeu uma fatia.
– Não estava boa?
– Estava óptima.
– Então porque é que ele só comeu uma fatia?
– Eu não lhe dei mais. A careta ia-me matando.
– Tem que ter mais paciência, senhora.
– Porquê ao Rodolfo?
– Porquê ao Rodolfo, o quê?
– Quando eu disse que fiz a torta, perguntaste se a tinha feito
para o Rodolfo.
– Ah! Sim… É que ele hoje fez um cocó amarelo vivo e um pouco
deslaçado quando foi ao parque.
– E achas que eu ia fazer uma torta para o cão?
– Ele não comeu?
– Comeu, comeu toda menos uma fatia. Deslaçado?
– Meio liquido mas sem ser bem. – A mulher riu-se da sua própria explicação. – Acho que os cães não estão muito preparados para comer tanta laranja. Ah!... e havia de ver os outros
cães a cheirarem, estavam doidos.
– Eu é que estou a ficar doida, Neide. Doida. E nem sequer provei a
torta!
1 comentário :
Voltei a ler sobretudo porque me apetecia mesmo rir! Brutal de tão caricata que é a situação! ;-)
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