Já ninguém é capaz de dizer nada, queixou-se o homem.
Porquê?, perguntou a mulher, distraída.
As pessoas têm medo.
Medo?
Medo.
Medo de quê?
Do relativismo em que vivemos.
A mulher suspirou. Tinha quase a certeza que não queria saber mais.
Sabia que, se lhe perguntasse o que quer que fosse, até se ainda havia cenouras
no frigorífico ou se ele se lembrava da última vez que tinham saído para jantar
só os dois, ele ia prosseguir com um discurso inflamado contra o relativismo
moral, contra a falta de convicções, contra a impossibilidade de as manter e
defender…
Só se dissermos que somos de esquerda, desabafou o homem, numa
tentativa de que a conversa não terminasse. Se nos anunciarmos de esquerda,
continuou, e nos filiarmos ou nos apresentarmos como simpatizantes de qualquer
coisa de esquerda podemos ter as opiniões que quisermos e anuncia-las quando e
onde quisermos que ninguém nos diz nada.
É?, perguntou ela, apesar de já saber que sim, que era; que, na
opinião dele, aos putativos esquerdistas tudo era permitido: dizer isto e o seu
contrário, ser revolucionário e reaccionário, poder ser e não ser, estar e não
estar. “Para se ser de esquerda basta proclamá-lo, não vivê-lo, nem sequer
fingir. É uma tristeza”, havia ele de dizer se a conversa continuasse. “Eu sou
mais de esquerda que a maioria das pessoas que se dizem de esquerda. Tenho
valores e rejo-me por eles. Eu é que sou de esquerda mas não ando por aí a
dizê-lo.” É?, insistiu ela, com um brilho no olhar que ele não viu.
Claro que é, confirmou ele, iniciando o tal discurso que ela já sabia
que ia acontecer e que, efectivamente, aconteceu.
E, no meio disso tudo, tu achas que jantar fora é uma exploração do
homem pelo homem?, lançou a mulher, inopinadamente, quando ele já ia na fase em
que havia de se afirmar mais de esquerda do que a maioria dos que se dizem de
esquerda.
Jantar fora?, inquiriu ele, surpreendido. Ela acenou que sim com a
cabeça. Ele aproveitou o movimento ascendente e descendente da cabeça da mulher
para pensar no que pretenderia ela com aquela pergunta. Se eu acho que jantar
fora é a exploração do homem pelo homem?, repetiu ele, alto mas como se falasse
para si próprio.
Ela continuou a balançar a cabeça e não o deixou continuar a fazer
tempo: Achas?
Não, disse ele, peremptório, não acho. Ela lançou-lhe um sorriso
interessado e bajulador, ele empolgou-se: É verdadeiramente um serviço em que deve
imperar o mercado livre, regulado, claro, mas livre. Apesar de a restauração
ser uma das actividades mais emblemáticas do capitalismo, é, se deixada actuar
num mercado livre e concorrencial, um paradigma do funcionamento da lei da
oferta e da procura. É uma actividade que premeia a qualidade, que recompensa o
trabalho. O bom trabalhador é reconhecido e o valor do seu trabalho…
É devidamente valorizado, concluiu ela.
Sim, concordou ele, animado. O factor trabalho na restauração, pela
sua proximidade ao consumidor final e pela instantaneidade dos seus resultados,
é normalmente mais valorizado do que noutras actividades. Um bom cozinheiro ou
um bom empregado…
E, no entanto, interrompeu a mulher, usando um tom assertivo e seco,
nós nunca vamos jantar fora. Nunca. Nunca valorizamos cozinheiros, nem
empregados de mesa.
O homem baixou a cabeça e olhou para os seus sapatos. Cruzou as mãos,
entrelaçando os dedos e, danado, mordeu o lábio inferior. Reflectiu na
armadilha que a mulher lhe lançara e, por fim, recomeçou num tom crítico e rígido,
enquanto, derrotado, reparava no cabelo arranjado, na roupa de sair e nos
sapatos de salto que a mulher apresentava. A formulação da tua pergunta não foi
a mais correcta e foi, até, demasiado simplista. Na realidade…
Na realidade, eu hoje não fiz jantar, completou a mulher, olhando
ostensivamente para o relógio de pulso. E não vou fazer, anunciou, antes de se levantar,
sorrir-lhe e começar a andar. Vens?, perguntou, passando por ele lentamente, num
andar estudado para fazer estragos.
Eu… Eu…, balbuciou o homem, seguindo-a com o olhar.
A mulher parou antes de sair da sala, ajeitou a saia e baixou-se para
a frente, sem que ele percebesse para fazer o quê. O resultado do movimento fê-lo
esquecer a dúvida.
Eu acho que hoje é um dia bom para começarmos a valorizar o factor
trabalho das pessoas da restauração, declarou o homem, levantando-se. Um dia
muito bom.
1 comentário :
"Um dia muito bom"?
Diria mais...um texto muito bom!
;-)
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