– António! António! – gritou Maria da Conceição,
entrando esbaforida no quarto do filho.
Estremunhado, António ouviu ao longe os gritos
da mãe e viu passar o vulto em passinhos rápidos mas só acordou definitivamente com a mistura do barulho do estore a subir e a luz da manhã a entrar.
– Que horas são?! – guinchou António em pânico,
certo de que estava atrasado para a entrevista que lhe havia de confirmar o emprego no
Ministério.
A mãe em silêncio ficou a olhar pelas vidraças da
janela, persignando-se compulsivamente.
– O que é? – perguntou António, mais calmo, depois de
ter conferido com alivio no despertador da mesa de cabeceira que não estava
atrasado mas inquieto com a fúria maníaca que a mãe aplicava ao fazer o sinal
da cruz. – O que foi, mãe? O que aconteceu?
– É a tropa, Toni – sussurrou a mãe. – É a tropa.
– A tropa? – duvidou o filho, sentando-se na cama.
– A tropa – repetiu Maria da Conceição. – Diz que é
um movimento…
– Um movimento de tropas? – interrompeu o filho,
levantando-se da cama.
– Um movimento das Forças Armadas – respondeu a mãe,
repetindo o que ouvira. – Foi o que disseram na rádio, às um quarto para as
sete e agora às sete e meia…
– E a mãe não me acordou? – queixou-se António,
empurrando a mãe para ver os militares na rua.
– Eu não estava a perceber nada… Sabia lá o que se
estava a passar!
– E agora?
– Agora continuo sem perceber… – confessou Maria da
Conceição, persignando-se a intervalos regulares.
– Não é isso – disse António. – O que é que está a
dar na rádio?
– Musica.
– Musica?!
– Musica.
– Bolas!... Estou tramado!... E agora como é que eu
chego ao ministério?
– Já viste que eles têm metralhadoras... – comentou a mãe, sem o ouvir.
– Mas o que é que disseram na rádio? – perguntou António,
depois de acenar que sim, que via que eles tinham metralhadoras, o que não o
animava, enquanto ia à mesa de cabeceira desligar o barulhento despertador que
começara a tocar.
– Que as Forças Armadas querem libertar o país mas
que não querem derramamento de sangue…
– Derramamento de sangue?!
– Foi o que disseram – respondeu Maria da Conceição,
acenando para a rua por detrás da vidraça. – E, às sete e meia, pediram para a
população se manter calma e que se recolha nas suas residências.
– Mas eu tenho a entrevista no Ministério –
protestou António, de costas para a mãe.
– Não me parece – declarou Maria da Conceição, abrindo a janela.
O filho virou-se e, espantado, viu a mãe a acenar para
a rua.
– O que está a fazer?! – gritou, assustado.
– O soldado estava a dizer-me adeus – disse a mãe,
sem parar os acenos. – São simpáticos… E já vem gente atrás deles – informou com crescente animação. – Isto é mas é uma revolução, Toni. Uma revolução!
António sentou-se na cama, pousou os cotovelos nos
joelhos, enfiou os dedos no cabelo despenteado e suspirou, desanimado:
– Uma revolução… Uma revolução, logo hoje… Bolas! Uma revolução... Não a podiam fazer para a semana?!
– Queres que pergunte? – troçou a mãe, já
empoleirada na janela, virando a cabeça para dentro mas sem deixar de acenar
aos militares e aos populares que os seguiam. – Queres que lhes peça para parar?
2010
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