Ela olhou para o
relógio parado da torre da Câmara Municipal e calou-se.
Ele seguiu-lhe o
olhar, percebeu que qualquer coisa estava diferente sem perceber o quê e olhou
para o seu relógio de pulso. O relógio na torre continuava parado.
– Tem luz –
disse ela. Ele olhou para ela sem perceber. Sem expressão, ela acrescentou: – O
relógio da Câmara tem luz.
– Não tinha?
– Não.
– Mas continua
parado – disse ele, constatando o óbvio como se fosse uma descoberta.
Ela pendeu a
cabeça para o ombro direito, que levantou ligeiramente, e anuiu com a cabeça.
Olharam um para
o outro: ela sem perceber o que vira nele; ele sem perceber… ele sem perceber… ele
sem perceber nada.
– Não é o sexo –
deixou ela escapar, sorrindo quando se ouviu.
– O quê? – As
sobrancelhas dele acompanharam a pergunta, sinalizando o desconforto.
Ela sorria e
estranhava o sorriso. Não era um sorriso envergonhado ou embaraçado, era um
sorriso natural, um sorriso satisfeito com a certeza do facto. “Não é o sexo”,
repetiu, agora para si. Olhou para ele: “Não é beleza”. Abriu o sorriso: “Nem o
bom gosto”.
– Se tivesses um
chapéu e pusesses a mão na lapela do casaco…
– Eu não tenho
casaco – interrompeu ele, aborrecido.
– Se tivesses um
chapéu e um casaco – recomeçou ela, ainda a sorrir, depois de juntar a paciência
e o sentido do humor às razões que não justificavam o facto de estar com ele. –
Se tivesses um chapéu e um casaco e pusesses a mão na lapela do casaco, parecias
o Marcelino Mesquita.
Ele olhou para a
estátua e imitou-lhe a postura e o estilo com garbo teatral.
– Falta-me o
bigode – declarou em tom afectado.
Ela riu-se e decidiu não lhe dizer que parecia o Marcelino Mesquita porque era oco. “Tão oco como estátua do homem”.
Ela riu-se e decidiu não lhe dizer que parecia o Marcelino Mesquita porque era oco. “Tão oco como estátua do homem”.
– E o sexo? – Perguntou
ele, sem alterar a rigidez de estátua que assumira.
– Não deve ser
nada bom – respondeu ela com uma gargalhada. – Não me parece que lhe consigas
tirar as calças.
Ele fez uma
careta e depois um esgar com que procurava imitar um sorriso.
Ela riu-se ainda
mais.
– Tu é que
falaste no sexo - reclamou ele e repetiu-lhe a frase: – Não é o sexo.
Ela abanou a cabeça
na horizontal e parou de rir.
– Não é o sexo –
suspirou –, nem sei o que possa ser.
– Estás a falar
de quê?
– De ti, parvo –
Ela olhou-o furiosa. – De nós!
Ele engoliu em
seco e pensou, sem saber porquê – e pensou nisso –, que se tivesse um bigode o
estaria a cofiar com ar superior e enrolar-lhe a ponta enquanto diria… “Enquanto
diria…”
– Não dizes nada?
– Atirou-lhe ela, calando a asneira que lhe entupia a garganta com um “F”do
tamanho do mundo.
– Não tenho
bigode – lamentou-se ele.
Ela ouviu, olhou
para ele, confirmando a falta de pelos abaixo do nariz, e sentiu o impacto da
verdade como se lhe batesse uma porta na cara.
– Isso explica
tudo – murmurou. – Isso explica tudo...
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