“Sinto-me sempre só, Henrique. Sinto-me sempre só. Mesmo agora: estamos
aqui mas parece que não me vês, que nem me estás a ouvir. E isso dói. Custa-me
muito… Passas por mim como se eu não existisse. Falas-me como se falasses com
outra pessoa qualquer. Não me fazes sentir especial, sabes? É isso que sinto...
Parece-me... A verdade é que não me sinto especial… Não me fazes sentir especial.
Mas gostava, Henrique, gostava que me fizesses sentir especial. E era fácil.
Era simples. Bastava que me olhasses, que me visses, que falasses comigo de uma
maneira especial que não usasses para mais ninguém... Sinto-me muito sozinha,
sabes? Mesmo quando estamos juntos. Mesmo quando estamos a conversar ou a fazer
qualquer coisa juntos parece que falta sempre qualquer coisa. Parece que falta
sempre uma parte de ti... É o que eu sinto mas custa-me sentir assim, Henrique.
Custa-me muito mas não o consigo evitar... Henrique. Henrique? Henrique?!”
– E ele estava a dormir. A dormir!... Eu a falar com ele, a abrir o
coração, a tentar que as coisas melhorassem e ele a dormir no sofá... A
dormir!... A dormir e a babar-se. Já devia ter um fio de baba que lhe chegava ao
ombro, que ele tinha a cabeça para trás e ligeiramente para a direita… Mas isso
agora não interessa nada. A verdade é que foi muito triste, senhor juiz, foi um
choque: eu a abrir o coração e ele a dormir!... Eu venho à porta da cozinha,
que dá para a sala, e vejo-o assim… a dormir, de boca aberta, com a cabeça para
trás e o pescoço todo à mostra… Mas, no fundo, foi azar: é que se eu não
estivesse a cortar uns bifes para congelar e se não tivesse aquela faca na mão,
quanto muito tinha-lhe dado uma calduça e ele acordava e discutíamos… Mas não,
tinha de ter a faca na mão e ele o pescoço para trás, todo à mostra como um
galo para a cabidela, e eu tão cansada e tão farta de estar sozinha e de falar
para o boneco e com a faca na mão...