(Ficção Politica*)
Mário deixou-se cair na cadeira com
um profundo suspiro: a mentira tinha sido desmascarada. Não era a primeira que
vez que era a apanhado a enublar a verdade, como dizia à mulher e aos filhos.
“A politica é a arte de enublar a verdade quando é preciso”, repetia em casa o
mantra que o João lhe ensinara.
“Não se trata de mentir, apenas de
publicitar uma verdade alternativa”, explicara o João, que também deve ter
espalhado a palavra pelo Trump. “Mas nem pensar em dizer-lhe”, pensou para se
distrair, rindo. “Havia de ser bonito se alguém lhe dissesse que ele e o Trump
são parecidos…”. O telemóvel a tremer fê-lo esquecer qualquer louco perigoso em
que estivesse a pensar e obrigou-o a voltar a si. “Se bem que…”, riu-se,
satisfeito consigo próprio, “também podia estar a pensar em mim.”
Agarrou no aparelho e ficou lívido
quando leu o nome no ecrã. Respirou fundo, cerrou os dentes e atendeu.
– Mário! – Gritaram-lhe. – Isto é
horrível, pá. Isto é um desastre completo. Uma bomba antónia. Uma tosta mística.
Um prego no pão, um parafuso no prato!
– António? – interrompeu Mário, a
medo. “Parvo mau”, pensou sem querer, distraído. “Parvo mau é mais correcto que
louco perigoso.” Concentrou-se e voltou ao telefone: – És tu, António?
– Mário, pá, Mário… – O António
suspirou, desalentado. – Quem é que havia de ser, palhaço?! Quem é que ainda te
liga, homem?... Mas quem é que ainda te
liga?!
– Podia ser o João – alvitrou Mário,
titubeante – ou o careca.
– Qual careca?
– Não sei muito bem o nome dele… Aquele
do DN… O gajo adora-me, António. Adora-me. – Mário suspirou. O António
sentiu-se ligeiramente nauseado e não o conseguiu interromper. Mário
interpretou mal o silêncio do outro e continuou, emocionado: – Estava agora a
ler a Opinião… As Cartas Secretas… Até me vieram as lágrimas aos olhos,
António, eu segurei o barco, segui em frente, evitei os escolhos…
O António gargarejou uma espécie de
riso trocista para o interromper: – Não sabes o nome dele…
– Acho que é André – apressou-se
Mário, percebendo o sarcasmo.
– Deixa de te carecas, pá! O que te
safa é o Marcelo. – O António endureceu o tom. – Olha que o Pedro Nuno diz que
já não vales a pena e o João já me disse que está pronto, ainda não sabe é se
quer. Se não fosse o Marcelo já tinhas ido de vela. – O António fez uma pausa
para a mensagem ser absorvida e depois perguntou: – E por falar em Marcelo: ouve
lá, não há mesmo nada assinado por ti?
– São e-mails, António.
– Ah! Pois… Por isso é que o Marcelo
diz que enquanto não houver nada assinado por ti… Mas pode haver?
– Inexiste, António. Inexiste
qualquer documento com essas características físicas.
– E mesmo que houvesse. – O António
deu uma gargalhada. – Se houver ainda têm de provar que é a tua assinatura, que
tenhas sido tu a assinar! Se for preciso vamos por aí.
– Mas não há, António, foi tudo por
mail.
– E, se calhar, tu nem sabes assinar!
Tu sabes assinar?!
– O João diz que está pronto?! –
Interrompeu Mário, acabado de processar a anterior informação e passando,
propositadamente, ao lado do rude gracejo. – Pronto para quê?
– Ele só me disse que já tem um piano
em casa e dois ou três cachecóis e que, agora, por isso, já está pronto. Ainda
não sabe é se vai rapar a cabeça.
– Mas disse isso em que contexto?
– No contexto de tu teres sido
apanhado a mentir com quantos dentes tens na boca, pá, ou queres que te faça um
desenho?
– Mas queres que me demita?
– Quer!
– Quer o quê?
– “Mas quer que me demita?” –
corrigiu o António, duro. – Aliás, foi por isso mesmo que eu te liguei.
– Ah… – Mário engoliu em seco, sentiu
os olhos marejarem e inquiriu em tom formal: – Mas quer que me demita?
– Ainda não, pá, ainda não mas depois
falamos. Abraços – despediu-se o António, que desligou sem dar tempo de
resposta.
Mário pousou o telemóvel, virou-se
para o computador, fixo no Diário de Notícias, e releu As Cartas Secretas até
deixar de conseguir destrinçar as letras com a água que lhe turvava a visão e
encharcava a secretária.
*Os nomes foram alterados para proteger os inocentes