Avançou para o espelho e observou-se. Cuidadoso, estudou os pormenores
e, então, ajeitou ligeiramente o nó da gravata, alisou os colarinhos da camisa como
se precisassem, conferiu a perfeita esquadria do risco do cabelo e o rigor
milimétrico da barba aparada, passou a língua pelos lábios, humedecendo-os, e
experimentou o seu melhor sorriso, verificando se se transmitia aos olhos ou se
ficava pelos lábios. Queria sorrir completamente. Desejava do mais fundo de si
que o sorriso se reflectisse em toda a sua expressão, em todo o seu ser; que
todo ele desse a entender a alegria com que a via.
Satisfeito, fechou a porta do roupeiro onde estava o espelho e vestiu
as calças, engomadas e vincadas com minuciosos cuidados, que tirou de um cabide
de pé em madeira, que lhe guardava com formalismos de velho mordomo as calças,
o casaco e, sobre um estrado de cinco finas ripas, os sapatos, lustrosos e
brilhantes.
Enfiou a camisa nas calças e constatou a certeza com que fizera o nó da
gravata, cuja ponta tocava ligeiramente no cinto. “A medida perfeita”,
vangloriou-se. Alisou suavemente as pernas das calças junto aos bolsos, certificando-se,
cautelosamente, que aqueles estavam completamente estendidos e não provocavam quaisquer
inestéticas rugas visíveis.
Baixou-se para pegar nos sapatos, tão formais como o cabide, pegou na
calçadeira de prata que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira e sentou-se no
sofá junto à cama para se calçar. Ajeitou-se, prevenindo a formação de vincos, e
dobrou-se para iniciar a operação.
Em pé, sem recorrer ao espelho, tornou a conferir o perfeito
alinhamento e bem posta rigidez das calças, da camisa e da gravata. Não sorriu
mas, sentindo-se pronto e animado, esfregou as mãos uma na outra.
– Boa tarde – disse, para ouvir a sua própria voz, para a modular, para
lhe ajustar o volume. – Boa tarde – repetiu, fazendo uma pequena vénia com a
cabeça. – Boa tarde – voltou a dizer, enquanto desmiolava o casaco, separando-o
do elegante cabide de ombros largos, bisando a vénia a que acrescentou o
sorriso que treinara ao espelho. – Boa tarde.
Vestiu o casaco, sem levantar os braços, fechou o primeiro e segundo
botões, deixando o terceiro propositadamente fora da sua casa, e abriu a porta
do meio do roupeiro, para uma última análise ao espelho.
– Boa tarde – ensaiou, pela última vez, com uma subtil e delicada vénia
e um sorriso discreto mas luminoso.
Fechou a porta do roupeiro com um suspiro, apesar de tudo receoso, e
caminhou batendo os pés, tanto para os aquecer como para afastar o sentimento
incómodo de dúvida que lhe embaciava o olhar, condicionava a postura e lhe
toldaria a voz se permanecesse.
Olhou para o relógio: 12:55.
“Está na hora” pensou, sentindo formar-se um nó na garganta. Engoliu em
seco. Ajeitou a franja com a mão esquerda. Passou a mesma mão pela barba como
se a conseguisse alisar, aprimorou o nó da gravata e, confiante, dirigiu-se à porta
da rua, passando pela cozinha. Seguiu um trajecto repetido diariamente, com passos
certos, contados e cronometrados, sem pausas, até parar junto da porta da rua,
que não abriu, à espera.
Ouviu a carrinha subir o passeio e imobilizar-se, depois uma porta abrir
e fechar-se. Não evitou um sorriso ligeiro quando reconheceu o som dos passos, curtos
e rápidos mas elegantemente compassados, dirigindo-se primeiro até à porta
traseira da carrinha, que ouviu abrir e, depois, aproximando-se da sua porta.
Ergueu as sobrancelhas num tique nervoso e abriu a porta.
Olharam-se, ela sorria radiosamente, tal como ele antevira, e ele abriu
o seu sorriso, já não o ensaiado mas o espontâneo, que lhe rejuvenescia a face,
a expressão, o corpo. Compenetrado, fez a sua ligeira vénia enquanto a
cumprimentava com o seu mais caloroso tom de voz que, por mais que tentasse, nunca
conseguiria repetir em frente ao espelho:
– Boa tarde, menina.
– Boa tarde, senhor Faria – respondeu ela. – Não sei como é que arranja
isso mas o senhor está cada dia mais bonito.
Ele sorriu como um menino tímido, agradeceu com nova vénia e passou-lhe
o estojo com as três marmitas vazias recebendo em troca as cheias com a sopa, o
almoço e o jantar.
– Até amanhã, senhor Faria. – A funcionária que distribuía as refeições
ao domicílio piscou-lhe o olho. – Amanhã à mesma hora, não se esqueça.
– Doze e cinquenta e cinco!
– Nem mais. Até amanhã!
– Até amanhã, menina.
11/2/2008
2 comentários :
Boa!
Muito bom!
O factor surpresa é essencial,na vida, nos contos...
Brutal!!
Ser feliz até morrer!
ah que saudades do sr faria... :-D
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